Processo de acompanhamento de maior;
audição do beneficiário; decisão contra legem*
1. O sumário RC 3/3/2020 (858/18.7T8CNT-A.C1) é o seguinte:
I- Entre os vários princípios que orientam/norteiam o processo especial de acompanhamento de maiores encontra-se o da imediação (pelo tribunal/juiz) na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário.
II- Princípio esse que impõe obrigatoriamente ao juiz que, em qualquer caso e circunstância, proceda (direta e pessoalmente) à audição do beneficiário, sem que a possa dispensar.
III- A omissão dessa audição é geradora de nulidade processual.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"De entre os vários princípios que passaram a orientar/nortear o processo especial de acompanhamento de maiores destaca-se o da imediação (pelo tribunal) na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário.
Princípio esse que se extrai da conjugação dos seguintes normativos legais:
Artigo 138º Código Civil (na redação dada pela citada Lei nº 49/2018, de 14/08, o mesmo sucederá com a redação dos demais normativos a seguir citados) onde, sobre a epígrafe “Acompanhamento”, se dispõe que “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”
Artigo 139º do mesmo diploma, onde, sob a epígrafe “Decisão Judicial”, se dispõe que “O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.” (sublinhado nosso)
Artigo 897º do Código de Processo Civil (onde de disciplina a tramitação processual do referido processo especial), que, sob a epígrafe “Poderes Instrutórios”, dispõe:
1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre. [...]
Artigo 898º do mesmo diploma, onde, sob a epígrafe “Audição pessoal”, se dispõe que
1- A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.2- As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas.3- O juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário. [...]
Decorre, assim, claramente da leitura tais preceitos legais, não só a consagração do sobredito principio da imediação na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário, como também que ele se concretiza com obrigatoriedade imposta ao juiz de, em qualquer circunstância, dever proceder de forma pessoal e direta à audição do beneficiário.
Imediação essa que terá uma dupla finalidade: por um lado permitir ao juiz inteirar-se da real situação em que se encontra o beneficiário e, por outro, ajuizar, perante tal situação, e daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em prol daquele.
A expressões “em qualquer caso” e “sempre” empregues pelo legislador (vg. no nº 2 do citado artº. 897º o CPC), não deixam, a nosso ver, qualquer margem dúvidas sobre a intenção determinada do legislador em tornar obrigatório que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais de acompanhamento de maior seja sempre precedida da obrigatória audição do beneficiário pelo juiz, respondendo, assim a algumas criticas feitas ao pretérito regime da interdição ou da inabilitação em que essa audição só se tornava obrigatória se fosse deduzida contestação (cfr. nº. 2 do artº. 896º do CPC, na sua versão anterior). Ao contrario, neste novo regime criado, e ao contrário do que sucedia no anterior, a nomeação de peritos e a realização de relatório pericial deixou de ser obrigatória (cfr. artºs 897º, nº. 1- fine -, e 899º, nº. 1, do CPC, na sua atual redação).
Diga-se ainda que, sendo assim, e visando, como vimos, a audição direta e pessoal não só permitir ao juiz inteirar-se da real situação em que se encontra o beneficiário mas também ajuizar, daquilo que observar, das medidas mais adequadas de acompanhamento que deverão ser tomadas em prol do último, e sem perder de vista que o novo regime instituído de acompanhamento dos maiores visa tão só salvaguardar e reforçar a defesa dos seus interesses, não colhe o argumento aduzido pela sra. juíza a quo de que, face ao teor do relatório pericial junto aos autos, a audição da aqui beneficiária se mostra não só inexequível, inútil e desnecessária (note-se ainda que do teor desse relatório apenas se refere haver limitações de comunicação com a beneficiaria decorrentes da doença de demência de que padece), como também atentatória da sua integridade pessoal e do direito à reserva da intimidade da sua vida privada (o não vislumbramos sequer, como tal possa ocorrer, e tanto mais que o juiz pode determinar que parte dessa audição possa ter lugar apenas na presença da beneficiaria- nº. 2 do artº. 898º do CPC).
Por outro, constituindo, como vimos, a audição direta e pessoal do beneficiário por parte do juiz, a concretização de um principio estruturante em que assenta o novo regime de acompanhamento dos maiores, e decorrendo ela ainda de uma norma de cariz imperativo, fica vedada ao juiz a possibilidade de (através de invocação das regras do processo de jurisdição voluntaria, para a qual remete, com as devidas adaptações, o artº. 891º, nº. 1, do CPC, na sua atual redação data pela citado Lei nº. 49/2018) de prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como vimos, como um autêntico dever.
Em conclusão, e respondendo à questão acima colocada, a sra. juiz a quo não disponha de poder para dispensar (como dispensou) a audição pessoal e direta da beneficiária, e ao fazê-lo, através do despacho recorrido, tal conduz à nulidade deste e bem assim dos atos subsequentes que porventura tem sido praticados e de que dele dependam absolutamente (artºs. 195º, nºs. 1 e 2, do CPC)."
*3. [Comentário] Importa fazer duas observações:
-- O acórdão afirma que o despacho recorrido, porque dispensou indevidamente a audição do beneficiário, é nulo; esta qualificação não é, salvo o devido respeito, correcta: uma decisão que decide contra legem não é uma decisão nula (não há hipótese de a enquadrar em nenhuma das alíneas do n.º 1 do art. 615.º CPC); é uma decisão errada e ilegal, mas não é uma decisão nula; se, por exemplo (meramente académico), numa decisão se disser que a simulação não gera a invalidade do negócio, a decisão é ilegal, mas não é uma decisão nula; aliás, na história dos desvalores da decisão, um dos avanços significativos foi precisamente a distinção entre a decisão recorrível e a decisão nula;
-- É correcta a conclusão de que são nulos todos os actos processuais que tenham sido praticados depois da dispensa ilegal da audição do beneficiário.
MTS