"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/09/2020

Jurisprudência 2020 (58)


Despacho de aperfeiçoamento; omissão;
excesso de pronúncia


1. O sumário de RG 19/3/2020 (20175/19.0T8VNF-E.G1) é o seguinte:

I- O princípio do contraditório é hoje entendido um direito de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.

II- O exercício e a concretização deste princípio, numa concreta situação, não está dependente ou sujeita a um qualquer e prévio julgamento incidente sobre a solidez ou consistência substancial do eventual direito que, com a sua consagração e em decorrência do seu cumprimento, se pretendeu salvaguardar ou exercer.

III- O despacho de aperfeiçoamento previsto no n.º 2 do art.º 590.º é um despacho vinculado, com o significado de o juiz só poder retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos ou da falta de junção de documento probatório depois de facultar à parte, através do pertinente convite, a possibilidade de suprir as falhas detectadas ou de proceder à junção do documento em falta.

IV- Por decorrência do princípio geral da descoberta da verdade material, que sobressai do dispostos nos artigos 411º e 436º, do CPC, é permitido ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, e designadamente, ordenar a junção de documentos ao processo, que repute de relevante utilidade para esse efeito.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na situação vertente, e como se constata do conteúdo da decisão recorrida, os crédito[s] foram considerados caducados ou prescritos em razão de “a credora impugnada não logrou fazer prova de ter citado o insolvente devedor da liquidação do imposto nem da execução coerciva do crédito” ou por não ter “a credora impugnada provado que ocorreu qualquer facto que tivesse por virtualidade interromper o prazo de prescrição”, respectivamente.

E assim sendo, estando-se perante a não junção de prova documental como será aquela que, a existir, demonstrará a factualidade alegada pelo Recorrente, impeditiva das invocadas excepções de caducidade e prescrição, deveria este último ter sido notificado para proceder à junção de tal prova documental, ao abrigo do disposto no artigo 590, nº 1, al. c), do C.P.C., o que, contudo, assim não sucedeu, não tendo sido proferido qualquer despacho de convite ao aperfeiçoamento.

Como se refere no Acórdão da Relação de 19/12/2012, “(…) o n.º 2 do art.º 508.º - actual nº 3 - prevê a prolação de um despacho de aperfeiçoamento vinculado, com o significado, para o que ora importa considerar, do juiz só poder retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos depois de facultar à parte, através do pertinente convite, a possibilidade de suprir a falha detectada. A expressão legal utilizada, de sentido impositivo (…), leva-nos a concluir que se trata de uma verdadeira injunção que é dirigida ao juiz do processo e que não deve confundir-se com um poder discricionário que o conduza a proferir ou não, segundo o seu critério, a decisão interlocutória” (Cfr. A. Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., pág. 77).

Por outro lado, como resulta claro do preceito em análise, estão em causa ambas as partes, valendo a imposição tanto para a petição inicial, como para a contestação, o que, para além do mais, é decorrência do princípio da igualdade de armas, “manifestação do mais geral princípio da igualdade das partes, que implica a paridade simétrica das suas posições perante o tribunal. No que particularmente lhe respeita, impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses (…)” ( Cfr. José Lebre de Freitas, “Introdução ao processo Civil, conceito e princípios gerais”, 2.ª ed., reimpressão, págs. 118/119). E, por assim ser, a omissão, pelo juiz, de tal decisão interlocutória configura uma nulidade processual, nos termos no art.º 201.º do CPC.

Na previsão da norma cabem assim, entre outras situações que se poderão configurar, precisamente a “falta de cumprimento das regras que o art.º 501.º prevê para a dedução da reconvenção, designadamente procedendo à sua autonomização formal e à indicação do valor do pedido reconvencional” (Cfr. A. Geraldes, ob. cit., pág. 78).

Destarte, de tudo o exposto decorre com linear evidência assistir inteira razão ao Recorrente, pois que, não poderia o tribunal a quo julgar procedentes a excepções e prescrição e caducidade sem que antes tivesse convidado ou dado a possibilidade ao Recorrente/Mª Pº, de proceder à junção dessa prova em falta, que, integrando a omissão da prática de uma acto vinculado, a que o tribunal estava obrigado.

E, embora em nosso entender não se revista de autonomia face à omissão do proferimento do, como se deixou dito, despacho de aperfeiçoamento vinculado, sem o qual o juiz não poderia retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos depois de facultar à parte, implicitamente a esta omissão existe, de facto, também uma violação do princípio do contraditório.

Como é consabido, o princípio do contraditório é hoje entendido “como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirectamente, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. (Cfr. Lebre de Freitas/João Redinha/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 7-8)

Logo, por decorrência do princípio do contraditório, entendido, não no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, mas no sentido positivo, de direito de participar activamente no desenvolvimento e no êxito do processo, como necessária consequência resulta que qualquer das partes tenha sempre de ser notificada de toda e quaisquer excepções invocadas, bem como das omissões de apresentação de meios probatórios de quaisquer delas e, por maioria de razão, daquelas que, no seu citério, o tribunal considere ou venha a conferir relevância.

Assim, por decorrência desta acepção do princípio do contraditório, como necessária consequência resulta que qualquer das partes tenha sempre de ser notificada de toda e quaisquer excepções invocadas, seja qual for o entendimento que o tribunal possa ter sobre a sua relevância, ou seja, tal notificação não deve apenas ser efectuada nas situações em que, no seu citério, o tribunal as considere ou lhes venha a conferir relevância.

Parece-nos, assim, incontroverso que, devidamente contextualizada no âmbito dos actos processuais praticados, a decisão recorrida configura inquestionavelmente uma decisão surpresa.

Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra, de 13/11/2012, numa “razoável interpretação concatenada destes preceitos, importa concluir que a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.

A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as decisões que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas.

O que importa é que os termos da decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstractamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspectivado como sendo possível.

Ou seja, estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou, no mínimo e concedendo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito”. (Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 13/11/2012, proferido no processo nº 572/11.4TBCND.C1, in www.dgsi.pt)

Ora, como decorre dos elementos constantes dos autos neles não foi proferido qualquer despacho solicitando a junção dos elementos probatórios e logo, da sua imprescindibilidade para a decisão da causa, conforme o tribunal estava vinculado a fazer, sendo por isso legitima a eventual expectativa por parte do Recorrido de que os autos conteriam todos os elementos probatórios necessários ao conhecimento das excepções aduzidas.

Como se escreve no acórdão da Relação de Évora, de 25.10.2012,”…tendo a sentença recorrida sido proferida em sede despacho saneador sem do facto ter sido dado conhecimento prévio às partes e ao invocar nela fundamento não alegado pelas partes, concluindo por uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, violou o disposto no artº 3º, nº 3 do CPC, constituindo a sentença recorrida uma decisão-surpresa”. (Cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 25.10.2012 , in www.dgsi.pt)

Concluímos pois que a decisão em crise, da forma como foi proferida, contra a expectativa criada na parte e sem o seu conhecimento prévio, constitui uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório.

Destarte, e se por mais não fora, na procedência deste fundamento da presente apelação, sempre a decisão proferida deveria ser revogada determinando-se a sua substituição por outra que determine a prolação de um despacho de aperfeiçoamento e o consequente cumprimento do contraditório com relação à ausência dos meios probatórios dos factos impeditivos da procedência das excepções invocadas."

*3. [Comentário] É discutível o enquadramento da questão pela perspectiva do direito ao contraditório, pelo que é igualmente discutível que a decisão do tribunal a quo -- que, no fundo, desrespeitou o disposto no art. 590.º, n.º 2, al. c), CPC -- possa ser qualificada como uma decisão-surpresa. Em todo o caso, faltou esclarecer o vício correspondente à decisão-surpresa: esta decisão é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).

MTS