"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/09/2020

Jurisprudência 2020 (57)


Responsabilidades parentais; 
competência internacional; CProtCr


I. O sumário de RL 5/3/2020 (1173/18.1T8CSC-A.L1-2é o seguinte:

1. O elemento determinante para a aferição da competência internacional do tribunal em matéria das responsabilidades parentais relativa a uma criança de nacionalidade russa é o da residência habitual da criança, quer em face da Lei nacional, quer do direito internacional expresso na Convenção de Haia de 19 de outubro de 1996 que vincula tanto Portugal como a Federação Russa.

2. Se a questão da incompetência internacional do tribunal não é suscitada por qualquer uma das partes, o tribunal antes de a decidir deve diligenciar pelo cumprimento do direito ao contraditório, nos termos do art.º 3.º n.º 3 do CPC, podendo ainda oficiosamente realizar as diligências probatórias que tenha por necessárias ao seu esclarecimento como dispõe o art.º 10.º n.º 2 da RGPTC.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Insurge-se o Recorrente contra a decisão do tribunal a quo que concluiu pela sua incompetência para a tramitação do presente processo, após dar indevidamente como assente que à data da propositura da ação a criança residia na Federação Russa com a mãe.

A decisão recorrida pronunciou-se no sentido da incompetência absoluta do tribunal, por infração das regras de competência internacional, por o tribunal competente ser aquele onde a criança reside no momento em que o processo for instaurado, referindo resultar dos elementos dos autos, designadamente da decisão do tribunal de 15.11.2017 que a criança se encontra a residir com a mãe na Federação Russa, em Moscovo, país onde já residia à data da instauração deste processo.

Não pode deixar de notar-se a grande ligeireza com que foi proferida a decisão recorrida.

Constata-se, por um lado, que o tribunal a quo nem sequer diligenciou pelo cumprimento do direito ao contraditório das partes, principio previsto no art.º 3.º n.º 3 do CPC, antes de se pronunciar pela procedência da exceção da incompetência internacional do tribunal, sem que nada o fizesse prever e sem que qualquer das partes tenha invocado essa questão; por outro lado, é feita uma análise parcial e truncada dos elementos constantes do processo para se concluir, erradamente, como se verá, que a criança residia na Federação Russa à data da propositura da ação; finalmente o tribunal nem sequer optou por realizar diligências que permitissem um melhor esclarecimento da questão conforme dispõe o art.º 10.º n.º 2 da RGPTC que prevê a realização oficiosa das diligências que se tenham por necessárias ao conhecimento da exceção da incompetência territorial.

O art.º 37.º n.º 2 da Lei 62/2013 de 26 de agosto, Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ - estabelece que é a lei de processo que fixa os fatores de que depende a competência internacional do tribunal, prevendo o art.º 38.º do mesmo diploma que a competência se fixa no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevantes modificações posteriores, exceto nos casos expressamente previstos na lei.

Sobre a competência internacional do tribunal, estabelece o art.º 59.º do CPC: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos art.º 62.º e 63.º, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência nos termos do art.º 94.º.”

Esta norma exige a salvaguarda do que se encontra regulado nos tratados e convenções que se impõem ao Estado Português, numa consagração do primado do direito internacional convencional.

No direito interno, o art.º 62.º do CPC prevê nas suas várias alíneas os fatores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, aí contemplando logo na al. a) a situação da ação poder ser proposta no tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.

A Lei 141/2015 de 8 de setembro vem aprovar o Regime Geral das Providências Tutelares Cíveis – RGPTC - nas quais se inclui a regulação do exercício das responsabilidades parentais, conforme expressamente previsto no art.º 3.º al. c).

É o art.º 9.º deste diploma que alude à competência territorial do tribunal, estabelecendo como regra, no seu n.º 1: “Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado”.

Não sendo a Federação Russa um estado da União Europeia a que possa aplicar-se o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 de 27 de novembro de 2003 relativo à competência em matéria de responsabilidades parentais, destaca-se como relevante para o caso e no âmbito do direito internacional, a Convenção de Haia de 19 de outubro de 1996, relativa à competência, lei aplicável, reconhecimento, execução e cooperação em matéria de responsabilidade parental e medidas de proteção das crianças, convenção assinada e retificada tanto por Portugal como pela Federação Russa, que designadamente nos seus art.º 1.º, 3.º e 5.º confere aos tribunais do país da residência habitual da criança a competência internacional para julgar e decidir questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais, tomando as medidas necessárias à proteção da criança, adotando desta forma um critério de atribuição de competência idêntico ao da nossa lei nacional.

Diz-nos António Fialho, in Revista Julgar n.º 37, pág. 13 ss., estudo publicado sob o título A Competência Internacional dos Tribunais Portugueses em Matéria de Responsabilidade Parental, numa síntese do que nele expõe: “A competência internacional do tribunal para julgar em matéria de responsabilidade parental é determinada pelo superior interesse da criança e, em particular, pelo critério da proximidade concretizado através do conceito autónomo de residência habitual, conceito esse presente nos principais instrumentos de direito internacional que vinculam o Estado Português.”

É assim pacífico, não estando também em discussão nestes autos, que o elemento determinante para a aferição da competência internacional do tribunal nesta matéria das responsabilidades parentais é o da residência habitual da criança. Assim também o refere, entre outros, o Acórdão do TRL de 24/10/2019 no proc. 3682/06.6TBBRR-C.L1, que subscrevemos como 1ª adjunta.

No caso, a questão essencial da discordância está então em saber qual a residência da criança a 16.05.2019, data em que foi intentada a presente acção pelo seu progenitor.

O tribunal a quo deu como assente que a criança “se encontra a residir com a mãe na Federação Russa, país onde já residia quando da propositura da presente ação”.

Motivou a sua convicção quanto a este facto: nos “elementos carreados para os autos, máxime, da decisão proferida em 15.11.2017, no processo …/…T8CSC”.

O Recorrente contesta este facto, admitindo que a criança esteve a viver algum tempo com a mãe na Federação Russa, mas dizendo que regressaram a Portugal, onde estavam já há alguns meses antes da propositura da ação, tendo sido precisamente essa circunstância que motivou o seu recurso a juízo, por discordarem de algumas questões como sejam a escola que a menor deve frequentar ou a repartição do seu tempo com os progenitores, mais referindo até que a criança estava a repartir a sua residência semanalmente com cada um deles, conforme acordaram.

Invoca como elementos probatórios suscetíveis de infirmar o facto considerado assente pelo tribunal: a procuração junta aos autos pela Requerida e a cópia do requerimento de revisão de sentença estrangeira, documentos em que a mãe da criança indica uma morada de Cascais como correspondendo à sua residência, mais referindo que foi em Cascais que a mesma foi citada.

Em primeiro lugar, realça-se e faz-se consignar que este tribunal, na apreciação desta questão apenas poderá ponderar os elementos probatórios que existiam no processo à data em que a decisão recorrida foi proferida, não podendo assim levar em consideração outros documentos entretanto trazidos pelas partes ao processo, designadamente declarações da escola da criança ou da frequência de atividades extracurriculares, ou cópia de bilhetes de avião. Tratando-se de um reexame da decisão, como resulta do art.º 627.º n.º 1 do CPC são os elementos existentes à sua data e à luz dos quais a mesma foi proferida, que este tribunal tem também de avaliar.

Constata-se que o documento que constitui a decisão proferida a 15.11.2017, no processo …/…T8CSC, em que o tribunal de 1ª instância se fundou para concluir que a criança, à data da propositura da ação, se encontrava a residir com a mãe na Federação Russa, não permite de modo algum que se chegue a tal conclusão.

Na verdade, tal decisão, proferida pelo Juízo de Família e Menores de Cascais em processo tutelar cível que correu termos, apenas autorizou a criança a ir residir com a mãe para Moscovo, o que aliás teve a concordância do pai, como da mesma consta, isto em novembro de 2017.

Como é evidente, isso não obsta a que a criança possa ter regressado novamente a Portugal com a sua mãe, para aqui instalarem outra vez a sua vida, aqui se encontrando em maio de 2019, sendo aliás isso mesmo que é referido pelo Requerente quando interpõe a presente providência, até invocando um acordo dos pais na residência semanal alternada da criança com cada um deles, que tem estado a verificar-se.

O documento invocado pelo tribunal de 1ª instância não permite de forma alguma que se tenha como assente que em maio de 2019 a criança residia na Federação Russa, afigurando-se também que se o tribunal tinha dúvidas sobre tal facto, que nem sequer foi suscitado pelas partes, não podia deixar de previamente as ouvir sobre tal questão e quando muito haveria que determinar as diligências que tivesse por convenientes, para se esclarecer, nos termos previsto no art.º 10.º n.º 2 do RGPTC.

A nosso ver, tais diligências nem sequer se mostram necessárias, para que o tribunal possa concluir o contrário, ou seja, que a criança, à data da propositura da presente ação residia com a sua mãe em Cascais, uma vez que os documentos constantes dos autos que foram juntos pela Requerida, aliados às regras da experiência, permitem determiná-lo.

Tanto a procuração da Requerida datada de julho de 2018, como o requerimento de proteção jurídica por ela apresentado na segurança social em fevereiro de 2019, em que menciona a V… como integrando o seu agregado familiar e indica a sua residência em Cascais, indiciam nesse sentido.

Por outro lado, o referido pelo Requerente no seu requerimento inicial, no sentido de que a filha regressou a Portugal com a mãe, que tem passado alguns períodos consigo e que não estão de acordo sobre algumas questões que pretende ver reguladas, afigura-se perfeitamente verosímil. O contrário é que seria estranho: o pai vir suscitar esta regulação para as questões que referiu, se a filha ainda estivesse a residir na Federação Russa, para onde concordou e autorizou que esta fosse viver com a mãe, em 2017, conforme decisão invocada pelo tribunal.

Em conclusão, os documentos enunciados permitem concluir com segurança pelo erro da decisão recorrida quando deu como assente que a criança vivia com a mãe na Federação Russa à data da propositura da presente ação, antes revelando que a essa data a mesma já vivia novamente em Cascais com a mãe.

Impõe-se em consequência a revogação da decisão proferida, reconhecendo-se a competência internacional do tribunal para tramitar e decidir a presente ação, em razão da criança ter residência em Cascais à data da propositura da ação."

[MTS]