Princípio do contraditório; violação;
nulidade da decisão*
1. Ofende o direito ao contraditório do requerente de providência cautelar de arresto decretado sem audição do requerido, negar-lhe, no início da audiência final, prazo suficiente, por si requerido, para se pronunciar sobre a oposição deduzida, em que foi pedida a sua condenação como litigante de má-fé e com a qual foram juntos múltiplos documentos, uma vez que, até àquele momento, nunca deles fora notificado.
2. A requerida litigância de má-fé deve ser apreciada e decidida na sentença. Não é legítimo separar tal questão, no início da audiência, das que constituem o objecto do processo, e relegar o seu conhecimento para momento posterior, a pretexto de aligeirar o exercício do contraditório quanto ao articulado de oposição em que aquela foi pedida (e respectivos documentos), tanto mais que os factos respectivos não são cindíveis.
3. Não se tendo assegurado à parte requerente/apelante o exercício efectivo do seu direito ao contraditório quanto ao articulado de oposição, documentos juntos e especialmente quanto à litigância de má-fé que naquele lhe foi imputada, conheceu-se do mérito da impugnação ao arresto decretado sem que estivessem reunidas as condições indispensáveis para tal (excesso de pronúncia) e não se conheceu, como devia ter acontecido uma vez garantido também quanto a ela aquele direito, da questão da litigância de má-fé a pretexto, legalmente inadmissível, de a relegar para ulterior momento (omissão de pronúncia).
4. Por isso, a sentença é nula – artº 615º, nº 1, alínea d), CPC.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"[...] o recorrente, sem ser claro e preciso, ora enquadra tal vício no regime de nulidade processual (artº 195º) ora no da nulidade de sentença (artº 615º, nº 1, alínea d), CPC), designadamente por não só ter sido preterido o contraditório quanto à oposição e documentos mas também por, quanto à litigância de má-fé, o exercício daquele ter sido considerado cindível e, assim, se ter acabado por proferir a sentença sem que quanto a esta questão ela se pronunciasse.
Ora, apesar de nos casos típicos de nulidade da decisão não constarem literalmente os vícios relativos à prática de actos processuais legalmente não admitidos ou à omissão de actos ou formalidades que a lei prescreva, uma vez que, designadamente na referida alínea, a omissão ou excesso de pronúncia são geralmente conexionados como consequência da inobservância do preceituado nos artºs 608º e 609º, CPC, tem sido entendido, na Doutrina e na Jurisprudência, que nela cabem os casos em que o acto/omissão afectados de nulidade se encontram cobertos por despacho/sentença subsequente.
Como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto, de 27-01-2015 [ Processo nº 1378/14.4TBMAI.P1]
“I - A violação do princípio do contraditório é geradora da nulidade processual prevista no art. 195º nº 1 do Novo CPC se influir no exame ou na decisão proferida.II - Quando o acto afectado de nulidade se encontra coberto por decisão que se lhe seguiu, tal nulidade pode ser objecto de recurso e pode ser declarada pelo Tribunal da Relação.”
No caso aí apreciado, verificou-se também não ter sido cumprido o princípio do contraditório, com influência na decisão da causa.
Aí se refere, consequentemente:
“A violação deste princípio só é geradora da nulidade processual prevista no art. 195º nº 1 do Novo CPC se influir no exame ou na decisão proferida. E, no caso, influiu. […]
Daqui se constata, portanto, que a omissão do contraditório, por si e porque levou à omissão de outras diligências que a ele poderiam/deveriam seguir-se, influiu, directa e necessariamente, na decisão que foi proferida e que é objecto deste recurso, constituindo nulidade processual enquadrável no nº 1 do citado art. 195º.
Aqui chegados há, no entanto, que questionar se esta nulidade podia ser suscitada por via recursória e colocada directamente a este Tribunal da Relação, ou se, em vez disso, devia ter sido primeiramente invocada perante o Tribunal onde foi cometida [1ª instância] e só da respectiva decisão poderia, depois, ser interposto recurso para esta 2ª instância.
Isto porque, como é sabido, em princípio, das nulidades cabe reclamação e não recurso [daí o postulado tradicional: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”] e a reclamação é, também em princípio, dirigida ao Juiz do tribunal que cometeu ou onde foi cometida a nulidade.
Apesar destas duas regras básicas, o Prof. Alberto dos Reis [in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, reimpr., pg. 424] ensinava que “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão do tribunal, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (…) e não por meio de arguição de nulidade de processo”.
Também o Prof. Manuel de Andrade [in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 183] entendia que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se».”
Igual entendimento perfilham os Profs. Antunes Varela [in Manual de Processo Civil, 1985, pg. 393] e Anselmo de Castro [in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, pg. 134]. O primeiro, refere que “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”. O segundo, diz que “tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso (…)”.
«In casu», não há dúvida alguma que o acto afectado de nulidade se encontra coberto pela decisão que se lhe seguiu – a decisão recorrida -, daí resultando, em conformidade com os ensinamentos doutrinais que ficaram enunciados, que tal nulidade podia ser objecto do recurso em apreço, como foi, e que a mesma pode ser declarada por este Tribunal da Relação [neste sentido, veja-se o Ac. da Relação de Lisboa de 11/01/2011, proc. 286/09.5T2AMD-B.L1, disponível in www.dgsi.pt/jtrl e o Ac. desta Relação do Porto de 24/04/2012, proc. 10336/11.0TBVNG-B.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp, relatado pelo aqui relator, embora relativo a processo de insolvência].”
Na linha desse entendimento, seguiu o Acórdão da mesma Relação, de 08-10-2018 [Processo nº 721/12.5TVPRT.P1], em cujo sumário se lê:
“A omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar “decisões-surpresa”, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º/1 d) CPC.”.
Vejamos os respectivos fundamentos:
“A omissão do exercício do contraditório constitui uma nulidade processual.
As nulidades processuais “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais“ [...].
Atento o disposto nos art. 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Porém, como referia o Professor ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades“, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos [...].
As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art. 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º CPC.
A omissão do exercício do contraditório não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC.
Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art. 195º CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art. 199º CPC.
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, o Ac. STJ 02 de julho de 2015, Proc. 2641/13.7TTLSB.L1.S1, Ac. STJ 29 de janeiro de 2015, Proc. 531/11.7TVLSB.L1.S1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt).
A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa.
No sentido de interpretar o conceito o Professor ALBERTO DOS REIS tecia as seguintes considerações:“[o]s atos de processo têem uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, atos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram atos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela“ [...].
Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.
Tal omissão tinha de ser arguida logo que conhecida, e no prazo previsto no art. 149º/1 CPC, ou seja, a partir da data em que as partes foram notificadas da sentença.
O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto nos art. 196º a 199º CPC.
Contudo, no caso concreto, o apelante apesar de nas conclusões de recurso fazer expressa alusão ao regime das nulidades processuais, termina por pedir a declaração de nulidade da sentença.
A nulidade processual é distinta da nulidade da sentença, uma vez que a nulidade por falta de pronúncia, a que alude o art. 615º/1 d) CPC está diretamente relacionada com o comando do art. 608º/2 do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões) relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido [...].
Nos termos do art. 615º 1 / d) CPC a sentença é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
O vício em causa está relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” – art. 608º/2 CPC.
Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Não ignoramos que dentro de certa linha de entendimento [...] se tem considerado que a “omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa”, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia. Nestas circunstâncias o juiz está a tomar conhecimento de questão não suscitada pelas partes, sem prévio exercício do contraditório.
Esta interpretação revela-se coerente com a atual conceção do principio do contraditório, entendido como “garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” [...]. O direito de influir no êxito da ação, mais não será do que mais uma emanação do principio da tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 20º CRP.
No caso presente verificando-se a omissão do prévio exercício do contraditório, perante uma questão de direito, suscitada oficiosamente e que ditou o fim da ação, a sentença é nula, nos termos do art. 615º/1 d) CPC.”
Não se tendo assegurado à parte requerente/apelante o exercício efectivo do seu direito ao contraditório quanto ao articulado de oposição, documentos juntos e especialmente quanto à litigância de má-fé que naquele lhe foi imputada, conheceu-se do mérito da impugnação ao arresto decretado sem que estivessem reunidas as condições indispensáveis para tal (excesso de pronúncia) e não se conheceu, como devia ter acontecido uma vez garantido também quanto a ela aquele direito, da questão da litigância de má-fé a pretexto, legalmente inadmissível, de a relegar para ulterior momento (omissão de pronúncia).
É, pois, a sentença nula, nos termos do artº 615º, nº 1, alínea d), CPC."
III. [Comentário] a) O acórdão segue a orientação que sempre se defendeu neste Blog: o proferimento de uma decisão que devia ter sido antecedida de um acto que foi indevidamente omitido implica a nulidade da decisão proferida por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC). Sobre o problema, cf. Jurisprudência 2019 (242)).
Uma sentença só pode constituir uma nulidade processual nos termos do art. 195.º CPC se o que estiver em causa não for a sentença como acto, mas antes a sentença como trâmite. Se, a seguir à fase dos articulados, o juiz proferir, em processamento normal, a sentença final, este proferimento constitui uma nulidade processual, porque a sentença é proferida num momento que não é o estabelecido pela lei.
Sempre que o que esteja em causa seja o conteúdo da sentença (e em que, portanto, a sentença tenha de ser vista como acto), o que pode haver é uma nulidade da sentença, nunca uma nulidade processual.
b) Diferente da situação analisada no acórdão -- o tribunal omite um acto essencial e, ainda assim, profere uma decisão -- é aquela em que existe uma decisão do tribunal que dispensa esse acto. Neste caso, trata-se de uma decisão contra legem que é impugnável nos termos gerais (mas com a limitação imposta pelo art. 630.º, n.º 2, CPC).
MTS