Omissão de pronúncia;
nulidade da sentença*
I. A “nulidade secundária”, referida no art. 195º, n.º 1, do C. P. Civil, tem de ser arguida pela parte através de reclamação (cfr. art. 196º, parte final do C. P. Civil), sob pena de sanação ou de preclusão do direito, a menos que o respetivo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal “ad quem”.
II. A ausência de despacho sobre a admissibilidade de meios probatórios traduz-se numa “nulidade secundária” a ser arguida pelo interessado em momento próprio (arts. 195º, n.º 1 e 199º, n.º 1, do C. P. Civil), sob pena de se considerar sanada.
III. Assim, neste caso, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por aquela nulidade – e não a nulidade ela mesma.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Insurge-se o apelante no que se refere à decisão recorrida, invocando, única e simplesmente, que a mesma decisão não cuidou de se pronunciar sobre a 2ª parte do requerimento apresentado pelo requerido recorrente na diligência de tentativa de conciliação realizada a 27.11.2019, mais concretamente sob os pontos 4 e seguintes, pelo que se verifica uma “omissão de pronúncia” por parte do tribunal a quo.
Julgamos, porém, que não lhe assiste razão. [...]
O tribunal de 1ª instância apreciou e decidiu todas as questões jurídicas em discussão, levando em consideração, designadamente, a causa de pedir que lhe serve de fundamento e o pedido formulado.
Em especial, deu conta da principal questão em discussão, que se prendia em se saber se a notificação ao devedor, ora recorrente, do ato de cessão de créditos, operada entre cedente e cessionário, é condição de eficácia ou de validade do negócio, concluindo que as cessões operadas são válidas e eficazes entre os contraentes com a celebração do negócio, tornando-se a cessionária a titular imediata do crédito cedido, sendo que, com a notificação judicial do requerido devedor para os termos do presente incidente, o mesmo tomou conhecimento das identificadas cessões de créditos e, como tal, as mesmas tornaram-se igualmente eficazes em relação ao devedor, uma vez que este tomou então conhecimento que a sua dívida foi cedida a outro credor.
Não pretendendo sindicar esta questão, que assim aceita, o recorrente entende antes que o tribunal a quo não cuidou de apreciar uma questão de extemporaneidade de prova documental apresentada pela requerente, que suscitou naquele requerimento que apresentou em sede de tentativa de conciliação.
Acontece, porém, que esta mesma “questão” colocada pelo apelante antes se refere não a qualquer nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, mas a uma outra nulidade (secundária) que se prende com a omissão de pronúncia sobre o requerido na segunda parte do requerimento apresentado pelo recorrente, em sede de tentativa de conciliação realizada em 27.11.2019.
Ora, quanto às regras gerais sobre a nulidade dos atos, dispõe o art. 195º, n.º 1, do C. P. Civil, que: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”
Neste caso, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que tal nulidade for cometida, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar, sendo que, se não estiver presente, o prazo para arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (cfr. art. 199º, n.º 1, do C. P. Civil).
Daqui decorre, desde logo, que este tipo de nulidade, também designada por “nulidade secundária”, tem de ser arguida pela parte através de reclamação (cfr. art. 196º, parte final do C. P. Civil), no momento em que ocorrer a nulidade, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário.
Caso não esteja presente, o prazo geral de arguição de dez dias conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade o quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (cfr. arts. 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1, do C. P. Civil).
Na verdade, mantém-se a atualidade e pertinência do brocardo segundo o qual “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.
Conforme explicava o Prof. Alberto dos Reis [In Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, pág. 507], “a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.” [...]
Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por aquela nulidade – e não a nulidade ela mesma.
A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário.
Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis. [...]
Assim, a decisão proferida sobre a arguição de nulidade é que é suscetível de recurso mas – ainda assim – com limitações: desde que contenda com os princípios matriciais da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios (cfr. art. 630º, n.º 2, do C. P. Civil).
Nesta medida, cabe ainda ao recorrente alegar que a nulidade relativa ocorrida – além de ser essencial por interferir no exame ou na decisão da causa – infringe pelo menos um dos referidos princípios ou contende com a admissibilidade de meios probatórios.
Dito de outra maneira, a sindicabilidade do despacho proferido sobre a arguição de uma “nulidade secundária” está condicionada à alegação da concreta violação de algum dos princípios ou regras enunciados no art. 630º, n.º 2 do C. P. Civil, sob cominação de indeferimento do requerimento de interposição de recurso por a decisão não admitir recurso (cfr. art. 641º, n.º 2, al. a), do C. P. Civil).
Daqui resulta que cabia ao recorrente, no momento próprio (no nosso caso logo que teve conhecimento da decisão final proferida) arguir tal “nulidade secundária” (consubstanciada na falta de despacho de admissão ou não do referido documento) o que, porém, não fez, razão pela qual a mesma se sanou.
Não tendo, assim, arguido a nulidade (secundária) apontada, mediante a competente reclamação, não pode o recorrente vir agora erigi-la em fundamento específico de recurso de apelação.
Sublinhe-se, pois, que a suscitada omissão de pronúncia sobre a junção do identificado documento junto aos autos pela requerente, não constitui, em si mesma, uma questão essencial em discussão nos presentes autos que ao tribunal recorrido cumprisse apreciar, sob pena de nulidade da sentença proferida por omissão de pronúncia (art. 615º, n.º 1, al. d), 1ª parte, do C. P. Civil).
Nesta medida, competia, desde logo, ao recorrente reclamar da apontada omissão ou irregularidade processual, para, em seguida, interpor, se fosse esse o caso, recurso da decisão que indeferisse a reclamação apresentada.
Deste modo, não podemos concordar com o apelante quando invoca que arguiu a nulidade no momento oportuno e pelo meio próprio, tanto quanto é certo que não apresentou qualquer reclamação incidente sobre a nulidade secundária que invoca agora em sede de recurso de apelação e igualmente em reclamação da decisão singular proferida em 20.02.2020.
Não se vislumbra pois que quer a sentença recorrida quer a decisão singular reclamada padeça do vício de nulidade previsto no art. 615º, n.º 1, al. d), 1ª parte, do C. P. Civil.
Não obstante, sempre seria de salientar (conforme aliás consta da decisão singular reclamada) que o aludido documento (n.º 7), junto com a resposta, traduz-se na cópia do documento junto com a própria petição inicial a fls. 28 verso, sendo certo que disso teve o tribunal a quo em atenção, por via dos factos provados sob o ponto 3.6., o que também não foi impugnado pelo recorrente.
Ademais, na própria motivação da decisão sobre a matéria de facto, foi salientado o seguinte: “O Tribunal formou a sua convicção, quanto à matéria de facto dada como provada, na análise conjugada e crítica aos elementos decorrentes da prova documental constante dos presentes autos.” [...]
No fundo, se o tribunal a quo tomou em consideração a prova documental produzida, nela se incluindo, ao que tudo indica, o aludido documento junto com a resposta apresentada pela requerente, e cuja junção não deveria ser admitida conforme o pretendido pelo recorrente, então sempre caberia a este, em última análise, impugnar a decisão que incidiu sobre a matéria de facto, dando conta que o tribunal a quo valorou um documento que não havia sido admitido, o que, porém, não foi feito pelo recorrente.
Por conseguinte, mesmo a entender-se que foi cometida pelo tribunal recorrido uma irregularidade processual com influência na decisão final, esta última acabou por prejudicar o conhecimento de tal irregularidade, pois que implicitamente admitiu a junção e consequente valoração do citado documento, competindo assim ao recorrente impugnar a sentença proferida no segmento em que o referido documento foi valorado, o que, todavia, não ocorreu in casu.
Termos em que se considera que não houve qualquer “omissão de pronúncia” na decisão recorrida, nem na decisão singular reclamada, nos moldes acima consignados (art. 615º, n.º 1, al. d), 1ª parte, do C. P. Civil), sendo, pois, de manter a decisão singular reclamada, que julgou improcedente a apelação apresentada."
*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não parece que a RG tenha decidido bem.
b) Em dois parágrafos sucessivos da fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Acontece [...] que esta mesma “questão” colocada pelo apelante antes se refere não a qualquer nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, mas a uma outra nulidade (secundária) que se prende com a omissão de pronúncia sobre o requerido na segunda parte do requerimento apresentado pelo recorrente, em sede de tentativa de conciliação realizada em 27.11.2019.Ora, quanto às regras gerais sobre a nulidade dos atos, dispõe o art. 195º, n.º 1, do C. P. Civil, que: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”
O primeiro dos referidos parágrafos qualifica como "nulidade (secundária)" uma "omissão de pronúncia" e o segundo parágrafo aplica a essa "omissão de pronúncia" o regime geral sobre a nulidade dos actos. Há aqui muito pouca precisão conceitual.
c) Acresce que o trecho transcrito de Alberto dos Reis nada tem a ver com o caso em análise.
A situação a que Alberto dos Reis se refere é aquela em que a parte entende que determinado acto deve ser praticado em juízo e requer ao tribunal a prática do acto ou a notificação da parte contrária para a prática do acto; o tribunal indefere o requerimento da parte; o que Alberto dos Reis diz (com total acerto) é que, nesta situação, a forma de impugnar a omissão do acto não é a invocação da nulidade processual decorrente da omissão do acto, mas antes a impugnação da decisão que considerou que o acto não tinha de ser praticado.
Ora, isto nada tem em comum com a situação em análise no recurso. Segundo se percebe, a parte entende que o tribunal a quo, na decisão de 23/12/2019, não se pronunciou sobre a extemporaneidade da junção de um documento pela parte contrária. Trata-se de um típico caso de omissão de pronúncia, pelo que o que a RG deveria ter feito era ter apreciado esta nulidade da sentença recorrida (naturalmente, em termos de procedência ou de improcedência).
MTS