"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/09/2020

Jurisprudência 2020 (54)


Título executivo quirógrafo;
aval; fiança


1. O sumário de RG 5/3/2020 (6967/18.5T8GMR.G1) é o seguinte:

Para que a obrigação cambiária do avalista possa servir de título executivo como quirógrafo, é necessário que do requerimento executivo resulte que o avalista/executado se quis obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, sendo que a obrigação de prestar fiança tem de ser expressamente declarada.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1.3. Da possibilidade de a livrança ser considerada título executivo, como mero documento particular em relação aos executados avalistas.

Na decisão sob recurso, foi entendido que não se encontravam reunidos os requisitos para que a livrança pudesse ser invocada como quirógrafo relativamente aos executados pessoas singulares, na qualidade de avalistas da mesma.

Entende a exequente/apelante que a decisão em causa é prematura, pois que resulta do requerimento executivo e dos documentos que o acompanham, pelo menos indiciariamente, a concreta alegação e evidenciação de que os executados quiseram assumir as obrigações enquanto suas. [...]

Nos termos dispostos pelo art. 703º nº 1 al c) do CPC, um título cambiário pode valer como título executivo (no caso por a obrigação cambiária se mostrar prescrita), podendo ter validade como quirógrafo, “desde que neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.

Como se afirma no acórdão do STJ 7.5.2014 (relator Lopes do Rego, disponível in www.dgsi.pt) citado no acórdão da Relação do Porto de 14/01/2020 (relatora Alexandra Pelayo), disponível no mesmo sítio da internet: “Vale isto dizer que, os títulos de crédito, desprovidos dos requisitos que permitiriam a aplicação do regime de abstração substantiva previsto na respetiva Lei Uniforme, podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à respetiva emissão – beneficiando do regime de presunção de causa afirmado pelo art. 458º do CC quando, atenta a sua natureza material, se consubstanciarem em atos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação, sem indicação da respetiva causa.

Apenas com uma imposição que resulta hoje de consagração expressa na lei adjetiva: a parte que quer prevalecer-se do título, invocado como quirógrafo da obrigação causal subjacente à sua emissão tem o ónus de alegar, na petição inicial ou no requerimento executivo, os factos essenciais constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, desprovido de valor nos termos da respetiva LU, identificando adequadamente essa relação subjacente, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao demandado/executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, (como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º do CC).”.

Contudo, na situação dos autos, se existir uma obrigação causal subjacente às declarações de aval, ela não decorre do título em execução, pois que a obrigação cartular dos executados/apelados, era constituída por dois avales.

É costume definir-se o aval como o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra ou livrança garante o pagamento dela por parte de um dos subscritores (art.º s 30º e 77º da LULL).

O emitente da livrança é o obrigado principal e é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (cfr. art. 78º da LULL).

O aval caracteriza-se por ser um terceiro - avalista - a facilitar a circulação da letra caucionando ao seu portador o pagamento de uma determinada operação cambiária (saque, endosso), ou o seu reconhecimento pelo aceite (art. 31, § 4º da LULL).

Como ensina Pereira Coelho [sic] (citado a pag. 147, LULL anotada, 6ª ed., de Abel Delgado): “O aceitante assume com o aceite uma obrigação abstrata que nasce exclusivamente do ato formal da sua assinatura”.

E a sua responsabilidade não se confunde com a do fiador, pois que a responsabilidade do avalista é solidária, e não subsidiária da do avalizado, pelo que o avalista não goza do benefício de excussão prévia; a nulidade intrínseca da obrigação avalizada não se comunica à do avalista; e este tem direito de regresso contra os signatários anteriores ao avalizado (cfr. Acórdãos do STJ de 27 de Maio de 2004 e de 24 de Outubro de 2002 disponíveis in www.dgsi.pt).

O aval, enquanto obrigação cambiária, tem por finalidade garantir o pagamento da letra ou livrança – cfr artº 30º da LULL - sendo por isso sustentado que a vinculação típica do aval se esgota no título cambiário (ver Ac. Rel. Coimbra 21 de Maio de 2013, disponível in www.dgsi.pt).

Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 14/01/2020, já acima citado, e que vimos seguindo de perto, o avalista (não sendo sujeito da relação jurídica entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas de uma relação subjacente à obrigação cambiária entre si e o seu avalizado) presta uma garantia de natureza pessoal geradora de uma obrigação autónoma.

Daí que se responsabilize pela pessoa que avalizou assumindo uma responsabilidade, objectiva e abstracta, pelo pagamento do título, já que acaba por ser responsável nos mesmos termos em que o é a pessoa que garante por qualquer acordo de preenchimento concluído entre este e o portador.

A obrigação cambiária é de natureza formal e abstracta e portanto independente de qualquer causa debendi, válida por si e pelas estipulações nela expressas, ficando o signatário vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título (cfr. Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, 2º, fascículo II, As Letras, pg 45).

No caso dos autos, os executados ao darem o seu aval à sociedade subscritora da livrança, garantiram a confiança do crédito que esta lhes merecia e que a mesma honraria o cumprimento pontual do crédito cambiário na data do vencimento.

Contudo, como se afirma no acórdão desta Relação de Guimarães, de 04.04.2017, disponível in www.dgsi.pt, a prestação de um aval ao aceitante de uma letra pode ter subjacente uma fiança que visa garantir o cumprimento da obrigação que emerge para o aceitante da letra do negócio jurídico subjacente ao aceite.

Nos termos do art. 627º CC o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.

A fiança implica que haja um segundo património, o património de um terceiro (fiador), que vai, cumulativamente com o património do devedor, responder pelo pagamento da dívida. Deste modo, acresce à garantia patrimonial que incide sobre os bens do devedor uma outra garantia patrimonial sobre os bens do fiador; o credor passa a ter como garantia de cumprimento dois patrimónios: o do devedor e o do fiador.

Todavia para assim se entender (que prestação de um aval ao aceitante de uma livrança pode ter subjacente uma fiança que visa garantir o cumprimento da obrigação que emerge para o aceitante da livrança do negócio jurídico subjacente ao aceite), necessário se torna a alegação e prova, por parte da exequente, de que o avalista/executado se queria obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, i.e., que a relação subjacente ao aval era uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado da relação subjacente ou fundamental (cfr. neste sentido Acs. da Relação do Porto de 28.05.2009, de 10.05.2010 e de 20.03.2012 e da Relação de Lisboa 29.09.2011, todos acessíveis no mencionado sítio da Internet).

De facto, o aval, como os demais actos cambiários, tem subjacente uma determinada relação material ou fundamental estabelecida entre o avalista e o avalizado, que está na origem do mesmo, e que normalmente se reconduz à intenção de garantir o cumprimento da obrigação por parte do avalizado.

Só que, como se salienta no Acórdão da Relação do Porto de 8 de Novembro de 2018, disponível in www.dgsi.pt, essa relação material subjacente não é confundível com a relação material subjacente à do avalizado e que possa estar na origem da emissão da letra ou livrança. Desde logo porque, a não ser nos casos em que o aval é dado por quem já está obrigado na letra ou livrança, o avalista não é sujeito da relação jurídica entre o portador e o subscritor da livrança. E assim, não sendo o aval por si reconduzível à fiança, para que a livrança, prescrita a obrigação cambiária do avalista, possa servir de título executivo como quirógrafo, necessário será que do requerimento executivo resulte que o avalista/executado se quis obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental.

Sendo que, como decorre do artº 628º, nº 1 do CC, a vontade de prestar fiança tem de ser expressamente declarada.

Neste sentido vai a jurisprudência maioritária, de que são exemplos os seguintes acórdãos, todos disponíveis in www.dgsi.pt, cujos sumários passamos a transcrever:

- Acórdão da Relação do Porto de 26/05/2015

:“… IV - Para poder ser exigido coercivamente aos avalistas o pagamento do valor titulado em letras de câmbio prescritas, necessário se torna a alegação e prova, por parte do exequente, que a relação subjacente ao aval era uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado, ou seja, a vontade dos executados de se obrigarem como fiadores.”

- Acórdão desta Relação de Guimarães, de 04/04/2017:

“O fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário.

O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas sujeito da relação subjacente ou fundamental à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos.

Este tem a sua razão de ser no título cambiário e cessa quando este título desaparece do mundo jurídico o que acontece quando prescrita a obrigação cartular o titulo cambiário é dado à execução como mero quirografo.

A prestação de um aval ao aceitante de uma letra pode ter subjacente uma fiança que visa garantir o cumprimento da obrigação que emerge para o aceitante da letra do negócio jurídico subjacente ao aceite.

Todavia para assim se entender, necessário se torna a alegação e prova, por parte da exequente, de que o avalista/executado se queria obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, i.e., que a relação subjacente ao aval era uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado da relação subjacente ou fundamental.”

- Acórdão da Relação de Lisboa de 07/03/2019:

“I - No atual Código de Processo Civil, não obstante a forte limitação do elenco dos títulos executivos não judiciais, a alínea c) do n.º 1 do artigo 703.º consagrou expressamente que podem valer como títulos executivos os títulos de crédito que, embora desprovidos dos requisitos legais para incorporarem uma obrigação cartular, literal e abstrata, funcionem como meros quirógrafos da obrigação exequenda, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, se não constarem do próprio documento, sejam alegados no requerimento executivo.

II - O exequente está onerado com a alegação dos factos constitutivos essenciais da relação causal à subscrição da livrança, de modo a identificar adequadamente essa relação causal subjacente, facultando sobre ela o contraditório, cabendo ao executado, por força da dispensa de prova prevista no artigo 458.º do Código Civil, o ónus probatório relativamente à inexistência ou irrelevância dos factos constitutivos alegados pelo exequente.

III - Uma vez extinta por prescrição a obrigação cambiária, o aval não pode subsistir automaticamente como fiança, atendendo desde logo à natureza jurídica diversa de ambas as figuras.

IV - Só assim não será se o exequente alegar (e provar) que o avalista/executado se queria obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, ou seja, que a relação subjacente ao aval era uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado da relação subjacente ou fundamental.”

- Acórdão da Relação do Porto de 14/01/2020:

“I - O aval é um ato cambiário que origina uma obrigação autónoma independente, cujos limites são aferidos pelo próprio título.

II - Extinta a obrigação cambiária por prescrição, apenas poderá ser reconhecida a exequibilidade do título de crédito como quirógrafo da obrigação extra - cartular.

III - Estando em causa o aval – figura típica do direito cambiário – este não se mostra transmutável fora desse enquadramento cambiário, pois que, para que a obrigação cambiária do avalista, possa servir de título executivo como quirógrafo, necessário seria que do requerimento executivo resultasse que o avalista/executado se quis obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, sendo que a obrigação de prestar fiança tem de ser expressamente declarada”.

Ora, no caso dos autos tal não ocorre.

Com efeito, lido o requerimento executivo, temos que do mesmo não resulta que os avalistas/executados se quiseram obrigar como fiadores pelo pagamento da obrigação fundamental. Nem qualquer vontade de prestar fiança foi expressamente declarada.

Assim sendo, era de indeferir liminarmente, como foi, a execução, no que aos executados pessoas singulares diz respeito."

[MTS]