"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/09/2020

Jurisprudência 2020 (61)


Terceiros para efeitos de registo;
concepção restrita*


1. O sumário de RP 9/3/2020 (1873/18.6T8PVZ.P1) é o seguinte:

I - A decisão do processo na fase do saneador-sentença só pode suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência.

II - Se de acordo com as soluções plausíveis da questão e direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito;

III - A proteção dos terceiros adquirentes de boa-fé estabelecida no art. 291º do C.Civil não é aplicável aos negócios gratuitos, assim como não é invocável no caso de negócio oneroso de transmissão de bens alheios, perante o verdadeiro proprietário, porquanto, perante o proprietário, aquele contrato não tem nenhum valor assumindo o cariz de inter allius acta, sendo que a ineficácia do contrato relativamente ao proprietário opera ipso iure.

IV - Não tendo o registo natureza constitutiva, mas apenas valor declarativo, os atos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, por princípio, quaisquer direitos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão resume-se a saber se não tendo o autor registado o seu direito de propriedade não pode opô-lo a Ré que beneficia de registo da aquisição a seu favor.

Defende a Apelante que ocorreu violação dos artigos 4º e 5º do Código do Registo Predial, sendo a falta de registo do direito de propriedade do Autor impeditiva da declaração de nulidade do negócio jurídico de doação.

Afirma que “o autor veio invocar um facto sujeito a registo, não registado que pode ser invocado entre as partes”.

Diz a Apelante que o Autor não pode vir opor á segunda ré o facto de ter havido uma doação de bens alheios, com fundamento no art. 956º do C.C., quando existe uma lei especial, o CRPredial que prevê que a falta de registo não pode ser oposta aos interessados, pelo que não podia o tribunal ter declarado procedente a ação e determinado o cancelamento do registo a favor da Apelante

Vejamos se pode ser assim.

Da certidão do imóvel junta aos autos, verifica-se que a ora Apelante registou o direito de propriedade através da AP 1685 de 2018/03/26.

Por sua vez o Apelado registou a presente ação através da AP 2427 de 2018/11/12.

A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo (artigo 2º, nº 1, alínea a), do Código do Registo Predial).

Porém, o registo predial tem essencialmente por fim dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis (artigo 1º do Código do Registo Predial).

O registo predial, por si, não cria direitos de propriedade, apenas lhes dá publicidade.

Tem, pois, essencialmente, uma função declarativa e não constitutiva, conserva direitos mas não os cria, e não pode suprir a falta do direito nem sanar os vícios que envolvam os direitos transmitidos.

Ora o aqui Apelado adquiriu o direito por acessão imobiliária.

A acessão, segundo o art. 1325º do C.C., nas palavras de Luis A. Carvalho Fernandes, [In Lições de Direitos Reais, 6ª edição, pg.339] consiste na união ou incorporação em coisa de que é titular certa pessoa, de outra coisa pertença de pessoa diferente.

A aquisição por acessão imobiliária, como maioritariamente é aceite pela doutrina e pela jurisprudência é uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento necessariamente judicial, que depende, para se concretizar, de manifestação de vontade nesse sentido por parte do respetivo titular e em que o pagamento do valor do prédio funciona como condição suspensiva da sua transmissão, embora com efeito retroativo ao momento da incorporação, conforme arts.1316.º e 1317.º, al. d), do CC.

Apesar da doação de bens alheios ser ineficaz em relação ao respetivo proprietário, este pode pedir a declaração da sua nulidade no confronto do doador/donatário (artigo 286º do Código Civil).

Na situação em apreço foi declarada a nulidade da doação efetuada por escritura publica 23.3.2018 entre as Rés, por se tratar de uma doação de bens alheios, tendo-se provado que a propriedade do imóvel pertence ao Autor que a adquiriu de forma originária através de acessão imobiliária industrial.

Ora, não tendo o registo natureza constitutiva, mas apenas valor declarativo, os atos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, por princípio, quaisquer direitos.

O conceito de terceiros deve, por isso refletir e ser entendido de acordo com essa função declarativa do registo e natureza publicitária.

A aquisição do direito de propriedade está sujeita a registo – art. 2º nº 1 al a) do Código do Registo Predial.

E os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo – art. 5º nº 1 do mesmo código.

Por sua vez, o art. 6º nº 1 proclama o princípio de que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos.

Finalmente o art. 7º preconiza que o registo definitivo constitui presunção que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

Isto posto, pretende a Ré a prevalência do seu registo por ser anterior ao do Apelado (que apenas registou esta ação).

Ou seja, há que saber em que medida a inscrição de um facto no registo predial, ou a sua não inscrição condiciona, retira ou atribui a alguém uma qualquer posição de vantagem jurídica.

A este propósito, de forma muito expressiva, referiu muito recentemente, o professor M.Teixeira de Sousa no blogue do IPPC,[Jurisprudência 2019 (186) [...] o seguinte: “Em princípio dever-se-ia esperar que um facto registado seria oponível a qualquer pessoa que não tivesse um registo incompatível anterior. Mas estranhamente no ordenamento jurídico português não é assim: seguindo uma chamada conceção restrita de terceiros, para efeitos de registo, o artigo 5º nº 4 do CRegPredial estabelece que um facto registado só (de acordo com a tal conceção restrita) é oponível a um outro adquirente de um autor comum.

Na verdade, a conceção restrita de terceiros para efeitos de registo obriga a distinguir (isto é, no universo daqueles que não são titulares do registo) entre os terceiros aos quais o registo é oponível (que são apenas aqueles que tenham adquirido o direito registado de um mesmo transmitente ou cedente) e os terceiros aos quais o registo não é oponível, que são todos os outros). O caráter restritivo da referida conceção reside nisto mesmo: em restringir, através do referido critério, os terceiros (ou seja os não titulares do registo) aos quais o registo é oponível ”.

A questão em apreço, não tem, reconhecidamente uma resposta fácil e passa desde logo pela controversa questão de saber quem é terceiro para efeito de registo.

Sem nos queremos alongar nesta matéria, como é sabido, a jurisprudência e doutrina têm-se dividido entre a adoção de um conceito amplo de registo - aquele que considera terceiro aquele que tem a seu favor um direito que não pode ser afetado pela produção dos efeitos de um ato que não figura no registo e que com ele seja incompatível [Neste entendimento, a compra na venda judicial de um imóvel prevalece sobre qualquer venda anterior do mesmo bem mas que não tenha sido registada ou, tendo-o, o registo seja posterior ao registo da respetiva penhora.] -- e um conceito restrito [Em que não considera terceiro, por exemplo, o adquirente do imóvel na venda judicial, em processo executivo, pois entende que a aquisição não deriva do mesmo transmitente que anteriormente vendeu o bem, embora sem registo. Isto é, para estes, terceiros são apenas os supostos adquirentes de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa de um mesmo autor comum, por isso, não considerando terceiro o exequente que nomeou o bem à penhora, ou o que nessa execução o veio a comprar, sendo-lhe oponível a aquisição anterior do mesmo bem, mesmo que não registada.

A questão veio a dar origem aos acórdãos do STJ para fixação de Jurisprudência nºs 15/97, de 20.05.1997 [Publicado no DR, I Série A, nº 152, de 4.7.1999- que considerou “terceiros para efeitos de registo predial, todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por um qualquer facto jurídico anterior não registado, ou registado posteriormente”] e 3/99, de 18.05 [Publicado no DR I Série, de 10.07.99 - que considerou “terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, os adquirentes de boa fé, de um mesmo direito transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa”].

Após os aludidos acórdãos uniformizadores, entra em vigor a redação do artº 5º do CRP, decorrente do Dec.-Lei nº 533/99, de 11.12, que no seu nº 4 veio dispor que “Terceiros, para efeitos de Registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

O regime de tutela dos terceiros de boa-fé, resultante das regras registrais, supõe aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, tendo sido registada a segunda transmissão, mas não a primeira, pretendendo o primeiro adquirente (que não registou) invocar a invalidade do negócio de que resultou a segunda aquisição (registada), porque, à data da sua celebração, já o direito transmitido não se encontrava na esfera jurídica do transmitente, mas antes na esfera jurídica do primeiro adquirente.

Daí que, no caso em apreço, não faça sentido falar-se da prevalência das regras de registo contidas no Código de Registo Predial. Nestas, estão em causa adquirentes a quem os seus direitos foram transmitidos pelo mesmo titular, o que não é o caso dos autos, em que ocorreu uma aquisição originária do direito de propriedade sobre a coisa, por parte do autor.

Em face deste conceito, parece não haver dúvidas que Apelante e Apelado não são terceiros para efeitos de registo, já que não adquiriam o seu direito de autor comum. Não existe um transmitente comum do direito em conflito.

Com efeito, o autor adquiriu o seu direito de forma originária – através de acessão imobiliária.

A Acessão constitui causa originária de aquisição do direito real e por isso em nada é afetada pelas vicissitudes do registo que atinjam o anterior direito que se extingue por via delas (cf. Oliveira Ascensão Direito Civil - Reais 3ª Ed. Pág.309 e Menezes Cordeiro Direitos Reais III/1052)

O registo que a aqui Ré pretende fazer valer respeita assim o anterior direito que se extinguiu em consequência da aquisição por acessão do direito de propriedade do aqui Autor.

Daí que também nesta parte o recurso tenha de soçobrar.

*3. [Comentário] A RP decidiu bem.

Como decorre da citação do post do Blog -- o que cabe agradecer --, a RP decidiu segundo a lei, mas não pode deixar de se afirmar de imediato que o acórdão constitui um óptimo exemplo da péssima solução legal. Perante um terceiro que não seja adquirente do mesmo bem de um autor comum, qualquer titular registado está, atendendo ao disposto no art. 5.º, n.º 4, CRegP, precisamente na mesma situação de qualquer titular não registado.

MTS