"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/09/2025

Jurisprudência 2025 (2)


Contrato de compra e venda;
ineficácia: protecção de terceiro


1. O sumário de STJ 14/1/2025 (1301/20.7T8PTM.E1.S1) é o seguinte:

I - Quer o art. 291.º do CC, quer o art. 17.º, n.º 2, do CRgP, introduzem no regime legal um mecanismo de proteção de terceiros de boa fé: a inoponibilidade ao terceiro adquirente, observadas que estejam determinadas condições, dos efeitos da declaração da nulidade ou da anulação do negócio originário.

II - O art. 291.º do CC, regula as situações em que o titular do direito aliena a um sujeito que, em seguida, transmite a um outro o terceiro adquirente numa cadeia sucessiva em que o negócio originário padece de invalidade.

III - O art. 17.º, n.º 2, complementado pelo art. 5.º, ambos do CRgP, está previsto para uma situação triangular, ou seja, aquela em que o terceiro adquirente celebra com o alienante um negócio incompatível com outro, celebrado anteriormente pelo mesmo alienante.

IV - Para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º do CC, a inoponibilidade da nulidade e da anulação a terceiros, que hajam adquirido de boa fé, mediante negócio oneroso e que hajam registado essa aquisição antes de decorridos três anos do registo da ação de nulidade ou de anulação, pressupõe que a cadeia de negócios inválidos tenha sido iniciada pelo verdadeiro proprietário.

V - A alienação de coisa alheia como própria é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário, o que torna irrelevante a invocação do disposto no art. 291.º do CC.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Está demonstrado que os AA. são titulares do direito de propriedade sobre o imóvel que reclamam e que nunca o transmitiram.

E que a transmissão ocorreu por ação de terceiro, por via duma procuração falsa que permitiu o registo do imóvel em nome dos Autores e, a partir desse registo, a sua posterior venda à 1ª Ré e, desta à 2ª Ré, ora Recorrente.

A sentença começou por apreciar das consequências da falsidade da procuração, nomeadamente da invalidade ou da ineficácia quer do primeiro registo de propriedade, quer do primeiro negócio celebrado com base em procuração falsa, os quais vieram a ser decisivos na realização do segundo negócio celebrado com a 2ª Ré e posterior registo, a qual, sendo desconhecedora daquela falsidade, se apresenta como terceiro de boa fé.

E, porque na origem da cadeia de factos se encontra uma procuração falsa (art. 372º do CC), enquadrou os factos na figura de representação.

Realçando a norma do art. 268º que rege:

“O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”

Desse modo, a sentença reconheceu aos Autores o direito de propriedade exclusiva sobre o imóvel e considerou ineficaz perante os AA o negócio de compra e venda a favor da 1.ª Ré, bem como o subsequente negócio de compra e venda a favor da 2.ª Ré, ordenando o cancelamento dos registos de aquisição a favor de ambas.

Afastando das Rés, nomeadamente da 2ª Ré, sub-adquirente de boa fé, a tutela dos artigos 291º do Código Civil e do artigo 17º, nº 2 do Código do Registo Predial com fundamento em que, sendo o negócio ineficaz em relação ao dono da coisa (a venda, em relação a ele, é res inter alios acta), este não terá que discutir a validade do contrato ou demonstrar que não consentiu a venda e, nem tem necessidade de promover a prévia declaração judicial de nulidade do respetivo contrato.

Sendo o negócio ineficaz em relação ao proprietário, redunda irrelevante a invocação, quer do disposto no artº 291º do Código Civil, quer do disposto no artº 17º, nº 2 do Código de Registo Predial.

E, assim sendo, não gozam os adquirentes de boa-fé, sequer, da proteção consagrada no artº 291º do Código Civil.

Todas estas proposições são corretas e traduzem, à vista dos factos apurados, a solução legal e justa do litígio, como veremos.

Passemos a desenvolver.

Pretende a Recorrente (2ª Ré) beneficiar da tutela prevista no art. 291º do C.Civ. ou nos art.s 16º e 17º nº 2 do C.R.Pred., na qualidade de adquirente de boa fé, independentemente da validade substantiva do negócio celebrado em momento anterior à sua intervenção na cadeia negocial.

Dúvidas não há de que a Recorrente é “terceiro” sub-adquirente de boa-fé, relativamente à aquisição do imóvel registada em 27/01/2020.

Anote-se que a presente ação foi registada em 22/06/2020.

Importa apurar se o campo de aplicação de tais normas abrange a realidade negocial demonstrada nos autos.

Dispõe o art. 291 do Código Civil que:

“1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.

2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a ação for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.

3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.”

Preceitua o art. 16.º do Código de Registo Predial que:

“O registo é nulo:

a) Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos; (…)”

Estabelecendo o art.17.º deste, que:

“1 - A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado.

2 - A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade.

3 - A ação judicial de declaração de nulidade do registo pode ser interposta por qualquer interessado e pelo Ministério Público, logo que tome conhecimento do vício.”

Importa ainda colher do Código de Registo Predial o seu art. 5º, que dispõe:

“1 - Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo. (…)

4 - Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.” - Redação do Decreto-Lei n.º 533/99, de 11-12.

Segundo Isabel Pereira Mendes in “Código de Registo Predial Anotado e Comentado”, 15ª ed. 2006, as disposições do art. 291º do Código Civil e do nº 2 do art. 17º do Código de Registo Predial completam-se e o seu campo de aplicação está intrinsecamente relacionado.

Nas suas palavras:

"Determinado setor doutrinal [Referindo-se a Dr. HEINRICH EWALD HORSTER, in Regesta, nº 52, de 15-08-1984, pp.160/p e 161/P.extrema o campo de aplicação das duas disposições acima referidas. Assim, o art. 291º do Código Civil referir-se-ia ao regime da nulidade substantiva, enquanto o nº 2 do art. 17º do C.R.P. trataria da nulidade registral.

Esquecem, (ou procuram esquecer) os defensores dessa doutrina que o art. 16 do C.R.P., ao enumerar as causas de nulidade do registo, refere algumas que constituem verdadeiras nulidades substantivas.

Com efeito, atente-se nas causas de nulidade mencionadas na última parte da alínea a) e na alínea b) do art. 16º: registo lavrado com base em título falso e registo lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado.

Um título falso enferma de nulidade substantiva, o mesmo acontecendo a um título que não tenha forma legal bastante (artºs 372º, 220º e 289º do C.Civil). Em outros casos de nulidade substantiva, a nulidade do registo será uma consequência da nulidade do título.

Não sendo, pois, lícito distinguir onde a lei não distingue, afigura-se-nos que a melhor doutrina é aquela que defende que as duas disposições se completam e o seu campo de aplicação está intrinsecamente relacionado.

Assim, o art. 17º nº2, do Código de Registo Predial aplica-se tanto aos casos de nulidade registral, como aos casos de nulidade substantiva, tudo dependendo da verificação deste pressuposto: existência de registo inválido anterior a favor de transmitente.”  

Aderindo a este entendimento podemos afirmar que, quer o art. 291º do Código Civil, quer o art. 17º nº 2 do Código de Registo Predial, introduzem no regime legal um mecanismo de proteção de terceiros de boa fé: a inoponibilidade ao terceiro adquirente, observadas que estejam determinadas condições, dos efeitos da declaração da nulidade ou da anulação do negócio originário.

Tais normas estão desenhadas para duas situações lineares: o art. 291 do C.Civ. regula as situações em que o titular do direito aliena a um sujeito que, em seguida, transmite a um outro – o terceiro adquirente – numa cadeia sucessiva em que o negócio originário padece de invalidade; o art. 17º nº 2 complementado pelo art. 5º, ambos do C.Reg. Predial, está previsto para uma situação triangular, ou seja, aquela em que o terceiro adquirente celebra com o alienante um negócio incompatível com outro, celebrado anteriormente pelo mesmo alienante.

O art. 291º do Código Civil confere proteção a um terceiro sob uma conceção ampla: “terceiro” é o que adquire a coisa a partir de um adquirente do “primeiro” vendedor na cadeia negocial.

O art. 17.º do Código do Registo na sequência da introdução do n.º 4 no seu artigo 5.º (pelo Decreto Lei n.º 533/99, de 11/12) consagra no direito registral um conceito mais restrito, considerando “terceiro” apenas aquele que adquire de um mesmo autor direitos entre si incompatíveis.

Ambas as normas conferem tutela jurídica a terceiros, mas prosseguem finalidades diferentes.

Importa definir as finalidades subjacentes a cada norma.

Citando Maria Clara Sottomayor “Invalidade e Registo - A Proteção de Terceiro Adquirente de Boa Fé”, 2010, p. 335-337:

“A norma do art. 291º visa resolver um conflito entre o direito do primeiro alienante e o direito do terceiro, numa cadeia de negócios inválidos, sendo estranha a esta norma qualquer finalidade sancionatória dirigida a quem não regista, como sucede no caso da dupla alienação. No âmbito do art. 291º, o critério da prioridade do registo predial tem apenas um valor secundário, na medida em que, apesar da aquisição do terceiro dever ser registada, antes do registo da ação de nulidade ou anulação, para que o terceiro beneficie de proteção legal, este critério, só por si, não é suficiente, uma vez que não satisfaz o juízo de ponderação de interesses feito pela lei.

A situação de facto é a seguinte: A titular de um direito de propriedade registado em seu nome celebra com B um negócio translativo nulo. B regista a pseudo-aquisição e transmite o seu direito aparente a C, que não regista (1º adquirente). Posteriormente, B cede a D o mesmo direito. D (2º adquirente) regista. D está protegido em relação a C, pela prioridade do registo e em relação a B, pelas regras da alienação de bens alheios, mas não está protegido em relação a A, verdadeiro titular do direito com legitimidade para invocar a nulidade. Só a proteção conferida pelo art. 291º vai mais longe, permitindo a D estar protegido, em relação a A desde que D esteja de boa fé, ou seja, ignore a existência de um vício no negócio entre A e B, e se verifiquem os demais requisitos do art. 291º. O contrato entre o alienante não legitimado e o terceiro de boa fé não pode padecer de outra causa de invalidade, para além da falta de titularidade do alienante. (…)

A intenção da lei foi a de não levar demasiado longe a proteção de terceiros, pois tal significaria um sacrifício grave dos interessados na nulidade ou na anulabilidade, para além de ter sido considerado que o nosso sistema registal não oferece as garantias de exatidão que oferecem outros sistemas como o alemão. Por isso a lei usou um conceito ético de boa fé, excluiu a proteção de terceiros a título gratuito e consagrou um período de carência (art. 291º, nº 2). (…)

Na invalidade sequencial, verifica-se a conclusão de um negócio nulo ou anulável pelo qual, aparentemente ou a título provisório, se alienam direitos, e a seguir, os sujeitos que ocupam a posição de adquirentes, celebram um segundo negócio, que é afetado pela invalidade do primeiro, de modo que, também os seus próprios efeitos são prejudicados, pelo princípio da retroatividade. Há uma cadeia de negócios e uma cadeia de terceiros, que são todos os sub-adquirentes, depois da celebração do primeiro negócio inválido. Neste contexto, o problema do conflito de direitos, cuja prevalência se discute, existe entre o primeiro alienante, considerado pela lei, o verdadeiro proprietário, em virtude da retroatividade da declaração de nulidade e da anulação (art. 289º), e o terceiro sub-adquirente de boa fé, que desconhecia o vício do negócio, atuou de forma honesta e com a diligência exigível, no tráfico jurídico, naquelas circunstâncias e registou a sua aquisição. (…)

A doutrina costuma apontar ao art. 291º a finalidade de proteger determinados terceiros dos efeitos retroativos da declaração de nulidade ou de anulação, os quais são suscetíveis de produzir para estes e para o tráfico jurídico em geral, consequências demasiado violentas. Esta norma assume uma finalidade bem diferente do art. 5º do CRPred. Nesta segunda hipótese, o registo visa dar publicidade a direitos e, simultaneamente, resolver conflitos entre adquirentes do mesmo autor, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa. Neste contexto, a doutrina refere-se à inoponibilidade, face a terceiros, do negócio não registado. No art. 291º, a lei consagra a inoponibilidade da declaração de nulidade e da anulação, querendo significar que, em relação a terceiros o negócio é tratado como se fosse válido, ou seja, estamos perante uma inoponibilidade do vício.

Enquanto a função do art. 5º do CRPred. é a de limitar o princípio da consensualidade, quando estamos perante um negócio válido, que produz efeitos reais, mas não registado, no art. 291º temos uma exceção ao princípio da retroatividade da declaração da nulidade ou da anulação do primeiro negócio de uma cadeia de negócios inválidos, por via do princípio da conservação dos negócios jurídicos.

No caso do art. 5º, verifica-se um conflito entre adquirentes do mesmo transmitente, sendo o primeiro negócio válido; na hipótese regulada pelo art. 291º, há um conflito entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente de uma cadeia de nulidades sequenciais ou derivadas, em que o primeiro negócio é nulo ou anulável, sendo distintos os fundamentos destas disposições. No regime do art. 5º, o fundamento é o princípio da publicidade e da confiança do adquirente na titularidade aparente do transmitente, representando a proteção registal do terceiro uma limitação à eficácia absoluta dos direitos reais. Nesta hipótese, a lei valora como justo e adequado que o primeiro adquirente sofra as consequências de não ter observado o ónus do registo. Já o fundamento do art. 291º é a estabilidade dos negócios jurídicos, sofrendo o alienante que deu origem à cadeia de negócios inválidos as consequências de não ter atuado, dentro do prazo de três anos, interpondo a ação de nulidade ou de anulação. A lei faz uma conciliação entre os interesses do verdadeiro proprietário, que pode impor a realidade jurídica-material ao terceiro, durante um prazo de três anos, a contar da data da conclusão do negócio inválido, e os direitos do terceiro adquirente, interessado em salvaguardar a sua aquisição dos efeitos retroativos da invalidade.

O âmbito da proteção do terceiro adquirente é distinto do âmbito do art. 291º, que só protege os terceiros adquirentes a título oneroso, enquanto o conceito de terceiros para efeitos de registo opera, segundo a doutrina dominante, mesmo em relação a negócios a título gratuito.”

Aqui chegados, podemos desde já concluir que a realidade negocial dos autos não se enquadra na previsão dos artºs 5º nº 4 e 17º nº 2 do C.Reg. Predial, pois que, ao contrário do previsto nestas normas registais, o conflito de direitos entre Recorrente e Recorrida não surge de uma situação negocial triangular, ou seja, aquela em que o terceiro adquirente celebra com o alienante um negócio incompatível com outro, celebrado anteriormente pelo mesmo alienante.

No caso dos autos, não há um alienante comum, o que afasta a possibilidade de a Recorrente vir a beneficiar da respetiva tutela.

O acórdão do STJ de 07/09/2017, P.4363/04.0TBSTS.P1.S1 (Maria da Graça Trigoin www.dgsi.pt, realça a particularidade de a invalidade registral sobre que incide o campo de aplicação do citado artº 17º, nº 2, supor duas aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, tendo sido registada a segunda transmissão, mas não a primeira. Assim:

“I - O regime de tutela dos terceiros de boa fé, resultante do art. 291.º do CC, aplica-se às hipóteses em que o interveniente num negócio substantivamente inválido pretende a respectiva invalidação, mas se vê confrontado com terceiros (não intervenientes nesse negócio) que adquiriram, de boa fé e a título oneroso, direitos sobre os bens (imóveis ou móveis sujeitos a registo) cuja subsistência depende do primeiro negócio. Se esses terceiros registaram o correspondente ato aquisitivo, a invalidade não lhes é oponível, salvo se a cação de anulação ou de declaração de nulidade for instaurada e registada nos três anos posteriores à celebração do primeiro negócio, definindo, assim, a lei o equilíbrio entre a tutela da validade substancial do negócio e a confiança depositada no registo.

II - Por sua vez, o regime de tutela dos terceiros de boa fé, resultante dos arts. 5.º, n.º 4, e 17.º, n.º 2, do CRgP, supõe duas aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, tendo sido registada a segunda transmissão, mas não a primeira, pretendendo o primeiro adquirente (que não registou) invocar a invalidade do negócio de que resultou a segunda aquisição (registada), porque, à data da sua celebração, já o direito transmitido não se encontrava na esfera jurídica do transmitente, mas antes na esfera jurídica do primeiro adquirente.

III - Se, no caso sub judice, não estão em causa duas aquisições sucessivas a partir da mesma transmitente e se a autora, na qualidade de curadora da legítima proprietária dos imóveis veio invocar a invalidade da procuração pela qual esta última concedeu ao réu poderes para os alienar, assim como a invalidade de todo e qualquer ato de disposição baseado na dita procuração, quer em relação aos adquirentes – intervenientes na ação – quer em relação ao sub-adquirente de dois dos imóveis, ora recorrente, apenas é de ponderar a aplicação do regime de tutela dos terceiros de boa fé, resultante do art. 291.º do CC.”

Os alienantes sucederam-se, pelo que, afastada a aplicação do art. 17º nº 2 do C.R.Pred., importa averiguar se pode a Recorrente reclamar da proteção de terceiro adquirente de boa fé, prevista no art. 291º do C.Civ..

Estabelecendo esta norma a inoponibilidade da nulidade e da anulação a terceiros, que hajam adquirido de boa fé, mediante negócio oneroso e que hajam registado essa aquisição antes de decorridos três anos do registo da ação de nulidade ou de anulação.

Dentro deste prazo de três anos – prazo de caducidade – dá-se prevalência aos interessados na nulidade ou na anulação; transcorrido ele, dá-se prevalência, aos interesses de terceiros, que poderão ter toda a confiança na validade das suas aquisições.

Considerando que a aquisição do imóvel por parte da Recorrente foi registada em 27/01/2020 e a ação foi registada em 22/06/2020, ou seja, dentro do prazo de três anos do negócio, logo por esta via, o interesse a prevalecer, será o interesse dos Autores Recorridos.

Como bem refere a sentença recorrida:

“Como tal, a ter ocorrido nulidade nos negócios em causa nos autos, a mesma estaria coberta pelo disposto no artº 291º do Código Civil, pelo que, tendo sido intentada e registada a ação dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio inválido, os adquirentes não gozariam da proteção conferida aos terceiros de boa-fé, não obstante possuírem tal qualidade, por funcionamento do disposto no nº 3 deste preceito.”

Mas o registo da ação dentro do prazo de três anos não será a única razão que afasta tal proteção.

Como ponderou a 1ª instância:

“Porém, entendemos que não nos encontramos verdadeiramente num caso de invalidade, nomeadamente do primeiro negócio celebrado com recurso a procuração com falsificação.

Efetivamente, de acordo com o disposto no artº 268º, nº 1 do Código Civil, o negócio em causa, por ter sido celebrado por procurador sem poderes, é ineficaz em relação aos AA..

Assim, o que temos é um negócio feito por procurador com base em procuração falsa que, nos termos do artº 268º do Código Civil, é ineficaz quanto aos AA., ou seja, não produz na esfera jurídica destes quaisquer efeitos.

Não cabe, pois, ponderar sequer a aplicação do artº 291º do Código Civil.”

Efetivamente, não pode ser desconsiderado o facto de o primeiro ato translativo ter ocorrido à revelia dos verdadeiros titulares, ainda não registados, por via duma procuração falsa.

Dispõe o nº 1 do artº 268º do CCiv. que:

“O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”.

Poder-se-á questionar se, no polo oposto, o direito do terceiro é oponível só aquele que deu causa ao negócio, gerador da cadeia de negócios inválidos, ou também ao verdadeiro proprietário, mesmo quando este não participou na cadeia.

Remetendo para a obra citada de Maria Clara Sottomayor, lê-se a p. 882:

“Na aquisição originária, o adquirente pode opor o título a qualquer outro sujeito, que se afirme proprietário da coisa, mesmo que não pertença à cadeia de negócios inválidos que deu lugar à proteção jurídica de terceiro. Diferentemente se classificarmos a aquisição do terceiro como uma aquisição derivada, na hipótese regulada no art. 291º o direito do adquirente só estará protegido em relação ao dante causa do seu dante causa, e não em relação a um estranho que se afirme e demonstre ser o verdadeiro proprietário porque, por exemplo, adquiriu por usucapião ou tem um título válido.” [...].

No caso dos autos a cadeia de negócios inválidos não foi desencadeada pelo verdadeiro proprietário, pelo que, contra si não pode funcionar a proteção concedida a terceiro adquirente de boa fé, no âmbito do art. 291º do C.Civ.

No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 19/04/2016, P.5800/12.6TBOER.L1-A.S1 (Maria Clara Sottomayor) que alerta para a circunstância de que, não sendo caso de aplicação do artº 17º, nº 2, poder, ainda assim, nem se aplicar o artº 291º, uma vez que, segundo este aresto, o artº 291º não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do nº 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido, excluindo-se da sua aplicação o caso em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

Colhe-se do mesmo, o seguinte sumário:

“I - A aplicação da norma contida no art. 291.º do CC pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: (i) declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo; (ii) aquisição onerosa; (iii) por um terceiro de boa fé; (iv) registo da aquisição a favor do terceiro; e (v) anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da ação de nulidade ou de anulação.

II - Ainda que verificados estes requisitos, a proteção do terceiro não funcionará se outra for a causa de invalidade, que não a falta de titularidade do alienante, e se a ação for proposta ou registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (art. 291.º, n.º 2), sendo prazo de caducidade que começa a contar a partir da data da celebração do primeiro negócio inválido, que dá origem à cadeia.

III - Inserto num sistema de registo meramente declarativo, o art. 291.º do CC não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido, excluindo-se da sua aplicação o caso em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

IV - Tendo a autora alegado que a cadeia de negócios inválidos foi iniciada por um negócio celebrado por um falso procurador, este elemento factual e jurídico é decisivo para se saber se funciona ou não a proteção do terceiro adquirente de boa fé, impondo-se a ampliação da matéria de facto, com inclusão deste, em ordem a constituir base suficiente para a matéria da decisão de direito.”

No mesmo sentido o sumário do acórdão do STJ de 06/12/2018, P. 7787/12.6TBSTB.E1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) que explicita:

“III - A proteção conferida pelo art. 291.º do CC a terceiros adquirentes a título oneroso e de boa fé não se aplica em casos de ineficácia do ato aquisitivo, como sucede, em relação ao verdadeiro proprietário, com a venda de coisa alheia.”

Para funcionar a proteção conferida pelo artº 291º do C.Civ., a cadeia de negócios inválidos tem de ser iniciada pelo verdadeiro proprietário.

O que no caso dos autos não sucedeu.

Relativamente aos AA., a venda e o registo efetuados em seu nome à 1ª Ré são atos ineficazes, o que lhes permite reivindicar diretamente o bem, sem ter de discutir a validade do ato de alienação. A Recorrente adquiriu o bem de quem não era o seu verdadeiro proprietário. A alienação de coisa alheia como própria é nula em relação ao vendedor (art. 892 CC) e ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário (art. 268 CC).

A solução da ineficácia flui duma interpretação a contrario do art. 258º C.Civ:

“O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”.

De um ato ineficaz não podem promanar quaisquer direitos contra as pessoas a quem a lei confere legitimidade para arguir a ineficácia (H. Mesquita RDES, XXIX-537).

Só a ratificação por parte da pessoa em nome de quem o negócio foi concluído, pode suprir a falta de eficácia do negócio celebrado por quem não tinha poderes de representação, nos termos do art. 268º nº1 do CCiv.. O que no caso não ocorreu.

Ora, a Recorrente adquiriu o imóvel de quem não era o seu verdadeiro proprietário; a alienação de coisa alheia como própria é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário o que torna irrelevante a invocação do disposto nos artºs 291º do C. Civ..

Não merece, pois, qualquer censura a sentença recorrida quando excluiu a aplicação, ao caso, do disposto nos artigos 291º do Código Civil e 17º nº 2 do Código de Registo Predial.

Não pode a Recorrente beneficiar da proteção prevista em tais normas."

[MTS]

29/09/2025

Competência para o processo de insolvência: um indesejável equívoco legislativo


1. O art. 7.º CIRE estabelece, para o que agora interessa, o seguinte:

1 - É competente para o processo de insolvência o tribunal da sede ou do domicílio do devedor ou do autor da herança à data da morte, consoante os casos.

2 - É igualmente competente o tribunal do lugar em que o devedor tenha o centro dos seus principais interesses, entendendo-se por tal aquele em que ele os administre, de forma habitual e cognoscível por terceiros. [...]

4 - Se a abertura de um processo de insolvência for recusada por tribunal de um Estado-membro da União Europeia em virtude de a competência caber aos tribunais portugueses, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, não podem estes julgar-se internacionalmente incompetentes com fundamento no facto de a competência pertencer aos tribunais desse outro Estado.

O problema sobre o qual importa reflectir respeita à articulação -- ou melhor, à falta de articulação -- entre o disposto no art. 7.º CIRE e o estabelecido no art. 3.º Reg. 2015/848. Neste art. 3.º dispõe-se, na parte que agora é relevante, o seguinte:

1. Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros. [...]

2. No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.

3. Se for aberto um processo de insolvência nos termos do n.º 1, qualquer processo aberto posteriormente nos termos do n.º 2 constitui um processo secundário de insolvência. [...]

O art. 3.º Reg. 2015/848 é claro em estabelecer o seguinte:

-- O processo principal de insolvência deve ser instaurado no EM do centro dos interesses principais do devedor; este processo é (tendencialmente) universal;

-- Fora do EM do centro dos interesses principais do devedor só podem ser abertos processos territoriais (n.º 2 e 4) e secundários (n.º 3).

Quer dizer: "Antes de abrir o processo de insolvência, o órgão jurisdicional competente deverá verificar oficiosamente se o centro dos interesses principais ou o estabelecimento do devedor se situa de facto na sua área de competência" (consid. (27) Reg. 2015/848). No centro dos interesses principais do devedor poderá ser aberto um processo principal; no local do estabelecimento do devedor fora do seu centro de interesses principais, um processo territorial.

2. Do exposto (tendo, naturalmente, presente o primado do direito europeu: art. 8.º, n.º 4, CRP) já decorre o enorme equívoco de que padece o disposto no art. 7.º CIRE:

-- A sede ou o domicílio do devedor referido no art. 7.º, n.º 1, CIRE não é, em si mesmo, uma conexão relevante para aferir o tribunal competente para o processo principal de insolvência; para este processo releva apenas o centro dos interesses principais do devedor (art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848); por exemplo: o devedor tem sede em Portugal, mas o centro dos seus interesses principais situa-se em Espanha; os tribunais portugueses nunca são competentes para o processo principal de insolvência;

-- O carácter alternativo que o art. 7.º, n.º 2, CIRE atribui ao "lugar em que o devedor tenha o centro dos interesses principais" é incompatível com o critério que consta do art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848; a conexão estabelecida através do centro dos interesses principais do devedor nunca é no Reg. 2015/848 um critério alternativo de aferição da competência; pelo contrário, ele é o critério exclusivo para determinar a competência para a abertura de um processo principal;

-- A sede ou o domicílio do devedor referido no art. 7.º, n.º 1, CIRE também não é, em si mesmo, uma conexão relevante para determinar o tribunal competente para um processo territorial; para este processo apenas é relevante o lugar do estabelecimento do devedor fora do seu centro dos interesses principais (art. 3.º, n.º 2, Reg. 2015/848).

3. a) Do que se disse pode começar por se concluir o seguinte:

-- Sempre que o devedor tenha o centro dos seus interesses principais num EM, apenas os tribunais desse EM são competentes para o processo principal de insolvência; a sede ou o domicílio do devedor que não coincida com o centro dos interesses principais é irrelevante para a aferição da competência para o processo principal (art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848);

-- Se o devedor tiver o seu centro de interesses principais num EM e um estabelecimento num outro EM, no lugar deste estabelecimento pode ser aberto um processo territorial (art. 3.º, n.º 2, Reg. 2015/848); a este propósito não pode deixar de se chamar a atenção para o mais que problemático (aliás, também no sentido da remissão que dele consta) art. 294.º, n.º 2, CIRE, que padece de uma manifesta falta de articulação com o disposto no art. 3.º, n.º 2, Reg. 1215/848;
 
-- Portanto, o disposto no art. 7.º, n.º 1, CIRE é totalmente incompatível com o estatuído no art. 3.º, n.º 1, 2 e 4, Reg. 2015/848, dado que a mera sede ou o mero domicílio do devedor não é relevante para aferir a competência nem para o processo principal, nem para o processo territorial.

b) Do que se expôs pode ainda concluir-se o seguinte: 

-- A alternatividade entre a sede do devedor (art. 7.º, n.º 1, CIRE) e o centro dos interesses principais do devedor (art. 7.º, n.º 2, CIRE) só pode significar que aquela sede não coincide com este centro; esta alternatividade é incompatível com a presunção estabelecida no art. 3.º, n.º 1, § 2.º. Reg. 2015/848: "No caso de sociedades e pessoas coletivas, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local da respetiva sede estatutária"; ora, quando a sede não coincide com o centro dos interesses principais do devedor, aquela sede nunca pode ser um elemento de conexão relevante para determinar a competência para o processo principal de insolvência;

-- É incoerente que o art. 7.º, n.º 4, CIRE estabeleça que, se um tribunal de um outro EM considerar que, porque o devedor tem o centro dos seus interesses principais em Portugal, os tribunais portugueses são competentes e que estes tribunais estão vinculados a essa decisão do tribunal estrangeiro, sem que, ao mesmo tempo, se imponha que os tribunais portugueses devam aplicar o critério do centro dos interesses principais do devedor para aferir a sua própria competência; não faz sentido que os tribunais de outros EMs possam impor a competência dos tribunais portugueses com base na conexão estabelecida através do centro dos interesses principais do devedor e que os tribunais portugueses não tenham de aplicar esse mesmo critério na aferição da sua própria competência;

-- O disposto no art. 7.º, n.º 1, CIRE só pode ser aplicado na hipótese de o devedor não ter o centro dos seus interesses principais em nenhum EM; aliás, o mesmo pode ser dito do estabelecido no art. 63.º, al. e), CPC; mesmo assim, o estatuído nesses preceitos não deixa de ser muito discutível, dado que se estabelece um critério de aferição da competência que, sem dificuldade, pode ser qualificado não só como exorbitante, mas também como destituído de sentido prático: por que razão a mera sede ou o mero domicílio do devedor em Portugal há-de justificar a competência dos tribunais portugueses para um processo de insolvência, se, afinal, o devedor exerce habitualmente a sua actividade fora de Portugal?; como vai ser possível agredir o património do devedor que se encontre num país estrangeiro?

c) Sem procurar adivinhar, antes partindo de indícios que resultam do disposto no art. 7.º CIRE (entre outros preceitos), parece poder concluir-se que o legislador se esqueceu de dois dados muito simples: o Reg. 2015/848 é aplicável sempre que o devedor tenha o centro dos interesses principais num EM; o tribunal do centro dos interesses principais do devedor é o único competente para a abertura de um processo principal de insolvência. Sendo assim, quanto a devedores com o centro dos interesses principais num EM, não pode haver no direito interno dos EMs nenhumas regras que contendam com as referidas premissas. A observância deste critério orientador teria poupado o legislador a enormes confusões.

4. Não é este o momento para fazer uma análise aprofundada do disposto no art. 3.º Reg. 2015/848 sobre a "competência internacional" (mas que, na realidade, determina o âmbito de aplicação espacial do Reg. 2015/848). Qualquer comentário ao Reg. 2015/848 fornece elementos úteis sobre esta matéria. Para efeitos da elaboração da presente nota consultou-se Rauscher, EuZPR-EuIPR/Mäsch (2022), Art. 3 EuInsVO.

MTS

Jurisprudência 2024 (240)


Processo de inventário;
patrocínio judiciário; falecimento do advogado*


1. O sumário de RL 19/12/2024 (231/20.7T8PTS-A.L1-2) é o seguinte:

I. Nos processo de inventário, independentemente do seu valor, apenas é obrigatória a constituição de advogado quando o interessado pretenda suscitar ou discutir uma questão de direito, ou interpor recurso.

II. A data de abertura de uma conta bancária, as datas dos depósitos nela efetuados e respetivos valores são questões de facto que podem ser suscitadas pelo interessado, sem necessidade de constituição de advogado; também a junção aos autos de documentos para prova dos indicados factos pode ser feita diretamente pelo interessado, sem necessidade de constituição de advogado.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Segundo o apelante, o tribunal a quo, ao não suspender o processo na sequência do conhecimento do falecimento do mandatário do recorrente, violou o disposto no artigo 271.º do CPC, gerando, com isso, a nulidade do processado subsequente. Nesta asserção, que consta da 12.ª conclusão do recurso, concentra-se e sintetiza-se o âmago do recurso.

Apreciando.

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 269.º, n.º 1, al. b), e 271.º, n.º 1, ambos do CPC (ao qual pertencem todos os artigos a seguir indicados sem menção de outra proveniência), nos processos em que é obrigatória a constituição de advogado, a instância suspende-se quando, tendo este falecido, for feita no processo a prova desse facto, coisa que o apelante nunca fez.

Mesmo que se entendesse, sem conceder, que bastaria ao interessado a mera comunicação – relembramos que foi feita apenas em …/11/2023 – cabendo ao tribunal a obtenção da prova, devia ter sido suspensa a instância?

Conforme afirmado na citada alínea b) do n.º 1 do artigo 269.º, a instância só é suspensa por óbito de advogada nos casos em é obrigatória a sua constituição, ou seja, nos casos em que as partes apenas podem intervir no processo representadas por mandatário judicial.

Tais casos – em que é obrigatória a constituição de advogado – encontram-se elencados no artigo 40.º, n.º 1, do seguinte modo:

a) Causas de competência de tribunais com alçada, em que seja admissível recurso ordinário;
b) Causas em que seja sempre admissível recurso, independentemente do valor;
c) Recursos e causas propostas nos tribunais superiores.

Ainda que seja obrigatória a constituição de advogado, as próprias partes (e, por maioria de razão, advogados estagiários e solicitadores) podem fazer requerimentos em que se não levantem questões de direito (n.º 2 do artigo 40.º).

Para os processos de inventário, como é o presente caso, existe uma norma especial no artigo 1090.º, segundo a qual a constituição de advogado é obrigatória em duas situações: a) para suscitar ou discutir qualquer questão de direito; e, b) para interpor recurso.

Resulta deste artigo que, nos processo de inventário, independentemente do seu valor, não é obrigatória a constituição de advogado, salvo quando o interessado pretenda suscitar ou discutir uma questão de direito, ou interpor recurso.

Neste sentido a anotação de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II, 2.ª ed., Almedina, 2022, p. 574: «Estabelece-se um regime específico de patrocínio judiciário que dispensa a constituição de advogado em processos de inventário, em que, independentemente do seu valor, não se suscitem as questões referidas nas als. a) e b)». Exemplificam como questões de direito para efeitos da al. a), a oposição ao inventário mediante a alegação de que não existe fundamento para a sua instauração, a impugnação da competência do cabeça de casal, a interpretação de testamento ou a forma à partilha. Quanto a outros atos, continuam, «como a reclamação contra a relação de bens ou mesmo a impugnação de créditos ou de dívidas, será obrigatório ou não o patrocínio judiciário em função de a discussão se circunscrever apenas à matéria de facto ou envolver também matéria de direito».

Regressando ao caso, e relacionando-o com o exposto, o cointeressado apenas teria de constituir advogado se quisesse pôr em causa a relação de bens com questões jurídicas, o que nunca foi tema. O que o cointeressado disse foi que a conta foi aberta antes do casamento e que o saldo constante da mesma já ali estaria aquando da celebração do matrimónio, e isto são questões de facto, que o interessado podia e devia (rectius, tinha o ónus de) ter provado, nomeadamente através da junção do documento de abertura de conta e extratos bancários.

Aliás, muito antes do alegado falecimento do seu advogado, tinha sido concedido prazo ao apelante, a seu pedido, para juntar os documentos comprovativos de que a conta bancária tinha sido aberta antes do matrimónio e de que o valor nela depositado foi por si levado para o casamento, documentos que, segundo afirmou na altura, já teria pedido à CGD. Apesar da concessão do solicitado prazo, o apelante, então cabeça de casal, nada juntou. Foi ainda notificado por despacho de …/06/2021 para juntar os ditos documentos, nada fez e nada disse. O descrito passou-se, pois, largos meses antes do invocado óbito.

Em todo o caso, mesmo admitindo que o primitivo advogado do apelante tenha falecido em …/03/2022, o apelante apenas o comunicou em …/11/2023, data em que estava ultrapassado o prazo para reclamar contra a relação de bens.

Mesmo que a ação devesse ter sido suspensa com a simples comunicação do óbito, o que não se concede, tal ocorreu em …/11/2023, e não determinaria a ineficácia, muito menos a nulidade, do anteriormente processado, nomeadamente do processado entre o óbito do advogado (…/03/2022) e a comunicação mais de ano e meio depois. Entretanto, decorreu o prazo para reclamar contra a relação de bens que, dessa forma, se consolidou."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem, atendendo ao disposto no art. 269.º, n.º 1, al. b), CPC.

Note-se que não seria impossível (e talvez até fosse desejável) que a lei determinasse a suspensão da instância sempre que falecesse o advogado da parte, mesmo que, no caso concreto, o patrocínio judiciário não fosse obrigatório.

MTS

26/09/2025

Bibliografia (1222)


-- Canova, S., A Figura da Parte Acessória no Processo Civil Português, Almedina: Coimbra, 2025

-- Schumann Barragán, G., Información confidencial y proceso civil. Las inmunidades procesales en materia probatoria, Atelier: Barcelona, 2025 [OA]

-- Sousa Gonçalves. A. S., Matérias Matrimoniais e Responsabilidades Parentais na União Europeia, 2.ª ed., Editora d'Ideias: Coimbra, 2025

-- Uebel, F., Die tatsächliche Vermutung / Eine historisch-rechtsvergleichende Untersuchung zum deutschen und französischen Beweisrecht, Mohr: Tübingen, 2025


Jurisprudência 2025 (1)


Propositura de acção; gestão de negócios;
incidente de habilitação*


1. O sumário de RL 9/1/2025 (6473/22.3T8ALM.L2-6) é o seguinte:

I – A distinção entre a gestão representativa e a não representativa reside na actividade de gestão e na esfera jurídica onde o efeito dessa gestão de imediato se produz.

II  Na gestão não representativa a actividade de gestão produz efeito na esfera jurídica do gestor.

III  O recurso a juízo para acção de preferência é a actividade de gestão (do negócio, isto é, do interesse em efectivar o direito de preferência que não foi concedido e que se afirma como potestativo nas esferas jurídicas do vendedor e dos compradores) que é desenvolvida pelo Autor.

IV  Quando a gestão passa pela propositura de uma acção judicial em que o negócio só pode resolver-se a favor directo do dono do negócio, não estamos perante gestão de negócios não representativa.

V – Agindo o Autor em gestão de negócios representativa, sem poderes, por força do disposto no artigo 268º do Código Civil, mostra-se necessária a ratificação daquele que o Autor representa.

VI – Tendo a mãe do Autor falecido na pendência da acção sem que tenha ratificado a propositura da acção.

VII  Deixando a sua falecida mãe dois sucessores, não pode operar apenas a habilitação de um deles, que no caso seria apenas o Autor.

VIII – O incidente de habilitação de herdeiros visa declarar os sucessores da falecida como habilitados para, em nome desta, prosseguirem a acção. Opondo-se a Ré à pretensão do Autor/Recorrente com a presente acção, é manifesto que esta jamais poderá considerar-se como habilitada para, juntamente com o Recorrente/Autor prosseguir os termos da acção, nomeadamente, ratificando os actos praticados pelo Autor no âmbito da gestão de negócios.

IX  A Ré não pode ocupar a posição de Ré e ao mesmo tempo a de Autora (decorrente da habilitação que decorreria do facto de ser sucessora da falecida sua mãe).

 Com o óbito da mãe do Autor na pendência da presente acção, passamos a ter uma herança indivisa, pelo que os herdeiros não têm qualquer direito próprio a qualquer dos bens que a integram, motivo pelo qual os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, nos termos prescritos no artigo 2091º, nº 1 do Código Civil.

XI  A ratificação a ter lugar na pendência da acção teria de ser efectuada por todos os herdeiros, ou seja, pelo Autor e Ré, uma vez que o direito de preferência a existir integra o acervo hereditário da falecida.

XII  Partindo do princípio que o direito de preferência pertenceria à herança e não aos herdeiros, a ratificação da gestão de negócios exercida através da presente acção também teria de ser efectivada por todos os herdeiros, o que é manifestamente impossível atenta a posição da Ré que, ao lado do Autor, são os herdeiros da falecida.

XIII  Face à impossibilidade de ratificação do acto de propositura da presente acção judicial pela alegada dona do negócio na pendência da acção, ou pelos seus herdeiros, a presente acção não poderá produzir os seus efeitos por falta de ratificação, julga-se a presente acção extinta por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Recorrendo, alega o Autor que o Tribunal de 1ª Instância considerou erradamente que a preferência não era transmissível por morte. Tendo em consideração que o direito de preferência só se radica efectivamente na esfera jurídica do seu titular (preferente) quando se concretiza a alienação da coisa, o facto de a alienação ter ocorrido em momento anterior ao óbito da sua titular importou que o direito de preferência à data do óbito já se encontrava na esfera jurídica da preferente, integrando assim o seu acervo hereditário. Conclui o Recorrente que o direito de preferência já existia no património da preferente falecida e, por isso, é um bem constitutivo da sua herança e transmissível para os seus herdeiros.

Não acompanhamos a posição defendida pelo Recorrente/Autor.

Conforme se alcança quer do Acórdão já proferido no âmbito dos presentes autos, quer dos próprios autos, o Autor intentou a presente acção estando em gestão de negócios em nome da mãe.

Defende o referido Acórdão (datado de 09 de Novembro de 2023) que “(…) Embora o Autor não tenha referido estar em gestão de negócios em nome da mãe, deve entender-se que o está.

Vejamos porquê:

Como nos diz Mário Júlio de Almeida Costa in Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, p.479, “Observa-se, apenas, que o gestor, interferindo em assuntos alheios, pode agir em nome do respectivo dono ou em nome próprio. Teremos assim, gestão representativa ou gestão não representativa a que se refere o art.º 471º. No primeiro caso, verifica-se uma situação de representação sem poderes: as relações entre o gestor e o dono do negócio são reguladas pelos princípios da gestão, e as relações entre o dono do negócio e o terceiro pelo preceituado no art.º 268º. À hipótese de gestão não representativa, declaram-se extensíveis, na parte aplicável, as disposições dos artigos 1180º a 1184º, respeitantes ao mandato sem representação”.

Mais adiante, na mesma obra, e versando sobre aprovação e ratificação, refere-se (p- 487): “Se o gestor actua em nome próprio, o que corresponde a tratar-se de gestão não representativa, aplicam-se as disposições sobre o mandato sem representação (art.º 471º e 1180º a 1184º). Os direitos e obrigações decorrentes do negócio produzem-se imediatamente com referência ao gestor. Portanto, uma vez aprovada a gestão, haverá que transferi-los para a esfera jurídica do “dominus”, (…) Ao passo a ratificação se circunscreve a actos jurídicos e visa as relações entre o dono de negócio e terceiros, conferindo uma legitimidade superveniente à actuação do gestor”.

Destes excertos resulta que o aspecto essencial da distinção entre a gestão representativa e a não representativa não é o nome, mas a actividade de gestão e por via dela, o lugar, ou mais claramente, a esfera jurídica onde o efeito dessa gestão de imediato se produz. Na gestão não representativa, este lugar é a esfera jurídica do gestor.

O recurso a juízo para acção de preferência é a actividade de gestão (do negócio, isto é, do interesse em efectivar o direito de preferência que não foi concedido e que se afirma como potestativo nas esferas jurídicas do vendedor e dos compradores) que concretamente é desenvolvida por BB.

A petição inicial corresponde a uma declaração de vontade. Assim, a primeira actividade que convoca ao tribunal é a da sua interpretação, o que como se sabe se faz de acordo com a teoria da impressão do destinatário constante do artigo 236º do Código Civil.

Se começarmos pelo fim da petição – o pedido – vemos BB a pedir o resultado do exercício do direito de preferência para sua mãe, não para ele. Se formos ao meio, à causa de pedir, BB alega os factos dos quais deriva o direito de preferência da mãe na aquisição da fracção a ela arrendada, nos quais ele não tem qualquer participação.

Então, quando chegamos ao princípio, “BB, (…) na qualidade de Gestor de Negócios de AA, (…)”, não temos, é certo “AA, aqui representada sem poderes pelo seu gestor de negócios BB”, nem temos “BB, em nome de sua mãe AA”, mas não podemos ler diversamente. É que, se dizer-se que se é gestor de negócios não esclarece (e portanto não inclui nem exclui) se a gestão é representativa ou não representativa, esse esclarecimento é claro em face do pedido – coloque o tribunal, dando procedência à acção, AA no lugar de compradora na escritura de venda da casa, pelo senhorio, aos compradores. Quer dizer, BB não pede que o tribunal declare que ele tinha direito de preferência na compra da casa e que o mesmo não foi respeitado pelo senhorio e compradores e que portanto através da procedência da acção, a casa deverá ser posta em seu nome, dele António, que depois – através da remissão para as regras aplicáveis ao mandato, ficará com o dever de a transferir para o nome da sua mãe.

Em suma, para perceber se BB está a agir nos autos em nome próprio ou da mãe, não é a menção “estou a agir em nome” que nos interessa, é o efeito da gestão do negócio – quem é que, directamente, com este negócio assim gerido (direito de preferência, acção de preferência) vai preferir. (…)

Mas voltamos a dizer, o que releva não é o nome que é dado, mas o negócio concreto e a gestão concreta do negócio que é feita. Quando esta gestão passa pela interposição de uma acção judicial em que o negócio só pode resolver-se a favor directo do dono do negócio, não estamos perante gestão de negócios não representativa. (…)

Tendo concluído que BB está a agir em gestão de negócios representativa, naturalmente sem poderes, é convocado o artigo 268º do Código Civil, que dita: “1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado. 2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro. 3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito. 4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante”.

Voltamos à declaração de vontade. No contexto dum processo judicial de natureza civil, isto é, de natureza dispositiva – artigo 3º nº 1 do CPC – a petição inicial constitui a expressão da vontade de aceder à justiça, e o tribunal tem de se assegurar que essa expressão é feita, e vamos dizer de um modo muito simples, é feita por quem tem o direito cuja defesa ou activação vem pedir ao tribunal. Esta necessidade é, antes de mais, uma necessidade económica – de boa gestão dos recursos do Estado no sistema de justiça público – que nos diz que a actividade jurisdicional deve ser poupada para os casos em que verdadeiramente é preciso um ditado judicial. É assim que a definição da legitimidade em função do interesse em atacar ou defender nos revela que se a decisão judicial for insusceptível de interferir na esfera jurídica do atacante ou do defendente, ou como se diz de outro modo, se o atacante ou defendente não pertencem à relação material controvertida, não é legítimo usar os recursos do sistema de justiça. (…)”.

Dúvidas não existem que o Recorrente agiu em gestão de negócios representativa, sem poderes.

A mãe do Recorrente veio a falecer na pendência da acção, deixando como seus sucessores o Autor e a Ré.

Na sentença proferida defendeu a 1ª Instância, e bem, como é óbvio, que se mostra impossível a ratificação por parte da dona do negócio – AA, porquanto a mesma faleceu na pendência da presente acção.

Deixando a sua falecida mãe dois sucessores, não pode operar apenas a habilitação de um deles, que no caso seria, conforme defende nas suas alegações, habilitado apenas o Autor.

Repare-se que o incidente de habilitação de herdeiros visa declarar os sucessores da falecida como habilitados para, em nome desta, prosseguirem a acção. Opondo-se a Ré à pretensão do Autor/Recorrente com a presente acção, é manifesto que esta jamais poderá considerar-se como habilitada para, juntamente com o Recorrente/Autor prosseguir os termos da acção, nomeadamente, ratificando os actos praticados pelo Autor no âmbito da gestão de negócios.

A Ré não pode ocupar a posição de Ré e ao mesmo tempo a de Autora (decorrente da habilitação que decorreria do facto de ser sucessora da falecida sua mãe).

Com o óbito de AA na pendência da presente acção, passamos a ter uma herança indivisa que constitui uma universalidade de direito, com conteúdo próprio. Os herdeiros são, até à partilha, titulares de um direito indivisível.

Assim, até à partilha, o direito de cada herdeiro recai sobre o conjunto da herança e não sobre certos bens. Depois da aceitação da herança e enquanto a mesma permanecer na situação de indivisão, os seus herdeiros não têm qualquer direito próprio a qualquer dos bens que a integram pelo que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, nos termos prescritos no artigo 2091º, nº 1 do Código Civil.

Aqui chegados somos de concluir que a ratificação a ter lugar na pendência da acção teria de ser efectuada por todos os herdeiros, ou seja, pelo Autor e Ré, uma vez que o direito de preferência a existir integra o acervo hereditário da falecida.

Partindo do princípio que o direito de preferência pertenceria à herança e não aos herdeiros, a ratificação da gestão de negócios exercida através da presente acção também teria de ser efectivada por todos os herdeiros, o que é manifestamente impossível atenta a posição da Ré que, ao lado do Autor, são os herdeiros da falecida.

A herança da falecida é uma herança aceite e indivisa pelo que, carecendo de personalidade judiciária, os direitos que lhe são relativos devem ser exercidos por todos os herdeiros.

Assim, somos de concluir que, face aos contornos do caso em apreço, o direito de preferência é efectivamente intransmissível, não se mostrando viável, pelo menos através da presente acção, a ratificação da gestão de negócios levada a cabo pelo Recorrente/Autor atenta a posição assumida pela Ré.

Ora, tal como se defende na decisão da 1ª Instância, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide pode ocorrer quando sobrevém uma circunstância na pendência da lide que impede a manutenção da pretensão formulada, quer por via do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou por encontrar satisfação fora do próprio processo, deixando de ter interesse a solução propugnada, dando lugar à extinção da instância, sem apreciação do mérito da causa.

Posto isto, acompanhamos a posição do Tribunal da 1ª Instância quando defende que face à impossibilidade de ratificação do acto de propositura da presente acção judicial pela alegada dona do negócio na pendência da acção, ou pelos seus herdeiros, a presente acção não poderá produzir os seus efeitos por falta de ratificação, julga-se a presente acção extinta por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem a questão da habilitação dos herdeiros (se é que o direito de preferência da autora se poderia considerar transmissível) e da inutilidade superveniente da lide.

O problema da propositura da (aparentemente) mesma acção a título de gestão de negócios já tinha sido apreciado, num sentido crítico, aqui. Se a acção tivesse sido considerada inadmissível por ilegitimidade do autor/gestor, muita da patologia a ela associada teria sido evitada.

MTS

25/09/2025

Jurisprudência 2024 (239)


Nulidade da sentença;
falta de fundamentação; contradição entre fundamentos e conclusão


1. O sumário de RP 11/12/2024 (10508/22.1YIPRT.P1) é o seguinte:

I - Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis, é recorrente a afirmação de que a falta de fundamentação da sentença apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.

II - No entanto, no atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório.

III - Importa distinguir a falta de fundamentação, geradora da nulidade do ato decisório, da fundamentação errónea ou contraditória, seja a nível factual, seja a nível jurídico que constitui erro de julgamento.

IV - A contradição entre os fundamentos e a decisão geradora da nulidade da sentença verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, inopinadamente, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício na construção da sentença, um vício lógico nessa peça processual distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis.

V - Para a integração desta patologia decisória não releva a contradição que possa eventualmente existir entre os factos provados e os não provados e a motivação desses juízos de facto.

VI - A nulidade da sentença é uma patologia que, ressalvada a hipótese prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, não é de conhecimento oficioso, competindo por isso ao arguente dessa patologia a alegação dos factos essenciais integradores da referida patologia.

VII - A reapreciação da decisão matéria de facto não é um exercício dirigido a todo o custo ao apuramento da verdade afirmada pelo recorrente mas antes e apenas um meio de o recorrente poder reverter a seu favor uma decisão jurídica fundada numa certa realidade de facto que lhe é desfavorável e que o recorrente pretende ver reapreciada de modo a que a realidade factual por si sustentada seja acolhida judicialmente.

VIII - Logo que faleça a possibilidade de uma qualquer alteração da decisão da matéria de facto poder ter alguma projeção na decisão da matéria de direito em sentido favorável ao recorrente, deixa de ter justificação a impugnação deduzida, traduzindo-se antes na prática de um ato inútil, por isso ilícito.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"De acordo com o previsto no artigo 615º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis [Veja-se o Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora 1984, reimpressão, Volume V, página 140.], é recorrente a afirmação de que o vício em análise apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.

No entanto, no atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório [Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de março de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Sérgio Poças, no processo nº 161/05.2TBPRD.P1.S1 e acessível no site da DGSI.].

O artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil prevê que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

O vício previsto na primeira parte da alínea em análise verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, inopinadamente, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício na construção da sentença, um vício lógico nessa peça processual distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis.

Já o vício previsto na segunda parte da aludida previsão legal, decorrente da eliminação do fundamento de esclarecimento da sentença previsto anteriormente na alínea a), do nº 1, do artigo 669º do Código de Processo Civil, na redação que vigorava antes da vigência do atual Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, ocorre sempre que alguma ambiguidade ou obscuridade, torne a decisão ininteligível. Ocorre ambiguidade sempre que certo termo ou frase sejam passíveis de uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido prevalecente. Verifica-se obscuridade, sempre que um termo ou uma frase não têm um sentido que seja percetível, determinável. Quer a ambiguidade, quer a obscuridade têm que se projetar na decisão, tornando-a incompreensível, insuscetível de ser apreciada criticamente por não se alcançarem as razões subjacentes e comprometendo a sua própria execução por força de tais vícios.

Finalmente, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, a sentença é nula sempre que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Estabelece-se nesta previsão legal a consequência jurídica pela infração do disposto no artigo 608º, primeira parte do nº 2, do Código de Processo Civil. No entanto, como ressalva a segunda parte do número que se acaba de citar, o dever de o juiz apenas conhecer das questões suscitadas pelas partes cede quando a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

As questões a decidir são algo de diverso dos argumentos aduzidos pelas partes para sustentar as posições que vão assumindo ao longo do desenvolvimento da lide [A propósito veja-se, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, Coimbra Editora 2017, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, páginas 712 a 714 e 737. Não obstante os argumentos não sejam questões, do ponto de vista retórico e da força persuasiva da decisão, há interesse na sua análise e refutação.]. As questões a decidir reconduzem-se aos concretos problemas jurídicos que o tribunal tem que necessariamente solver em função da causa de pedir e do pedido formulado, das exceções e contra-exceções invocadas, enquanto os argumentos são as razões ou fundamentos aduzidos para sustentar uma certa resposta a uma questão jurídica.

Importa salientar que a vinculação do tribunal às concretas questões ou problemas suscitados pelas partes é compatível com a sua liberdade de qualificação jurídica (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Por isso, o tribunal pode, sem violação da sua vinculação à problemática invocada pelas partes, qualificar juridicamente de forma diferente essas questões.

Recordado o enquadramento normativo das patologias invocadas pela recorrente, é tempo de apreciar se as mesmas se verificam ou não.

A alegada falta de fundamentação, salvo melhor opinião, não se verifica, na medida em que na sentença são enunciados os factos provados e não provados, motiva-se a decisão de facto e conclui-se fundamentando juridicamente a decisão a final tomada.

O raciocínio seguido pelo tribunal recorrido em qualquer destes segmentos da sentença recorrida é compreensível e, como tal, passível de ser criticado.

Há que distinguir a falta de fundamentação, geradora da nulidade do ato decisório, da fundamentação errónea ou contraditória, seja a nível factual, seja a nível jurídico que constitui erro de julgamento.

Assim, pelo exposto, improcede a arguição de nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação.

Vejamos agora a arguida nulidade por contradição dos fundamentos de facto com a motivação.

A contradição que legalmente é relevada para integração da nulidade da sentença prevista na primeira parte da alínea c) do nº 1 o artigo 615º do Código de Processo Civil é a que se verifica entre os fundamentos, na sua globalidade, e a decisão.

Para a integração desta patologia decisória não releva a contradição que possa eventualmente existir entre os factos provados e os não provados e a motivação desses juízos de facto [---]. A eventual existência de uma contradição dessa natureza é um sinal de que pode ter havido erro na decisão da matéria de facto ou tão-só na indicação das razões em que se baseou o juízo probatório [---], situações de todo bem diversas da contradição dos fundamentos com a decisão, geradora de nulidade da sentença recorrida.

Assim, face ao exposto, improcede esta arguição de nulidade da sentença recorrida."

[MTS]