"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/04/2024

Gestão de negócios e processo


I. Apresentação do problema

1. O problema analisado nos acórdãos da RL de 26/10/2023 (6473/22.3T8ALM-A.L1-2) e de 9/11/2023 (6473/22.3T8ALM.L1-6) -- como se vê, proferidos no mesmo processo -- coloca a interessante questão de saber se é possível alguém ser autor agindo como gestor de negócios de outrem. Para simplificar, na exposição subsequente o primeiro acórdão é referido como "ac1" e o segundo acórdão como "ac2".

2. Segundo se afirma no relatório do ac1,

«Em 23/09/2022, A, “na qualidade de gestor de negócios da sua mãe” M intentou uma acção contra os compradores [irmã e cunhado dele, A] e o vendedor de uma fracção autónoma de que a mãe dele (dele, A) era arrendatária, para exercer direito de preferência naquela compra e venda, pedindo que fosse reconhecido tal direito de preferência da sua mãe e fosse transmitido a esta o direito de propriedade da fracção mediante o pagamento do valor da compra e venda, substituindo-se a mesma aos réus na escritura de compra e venda. Entre o mais dizia, no artigo 39, que “deverá o autor na sua qualidade de gestor de negócios considerar-se como parte legítima nos presentes autos.”»

No ac1, a RL enquadrou o caso sub iudice da seguinte forma:

"Ao intentar a acção, A não disse estar a fazê-lo em nome da sua mãe, antes invocou o seu próprio nome: autor, ele, A, em gestão de negócios da sua mãe (e está-se a considerar, tal como a decisão recorrida, a própria petição inicial e não o formulário da petição inicial, pelo que toda a argumentação do recorrente à volta do que colocou no formulário e das razões porque o fez, é irrelevante).

Logo, não se está perante uma gestão representativa." 

No ac2, o enquadramento da mesma questão pela RL é diferente:

"Não concordamos [...] que resulte dos autos que AS está a agir em nome próprio. Aliás, quando o mesmo diz que é parte legítima (artigo 39º da petição inicial), não diz que ele, AS, em seu próprio nome, é parte legítima, mas sim que ele, gestor de negócios da sua mãe, é parte legítima.

Mas voltamos a dizer, o que releva não é o nome que é dado, mas o negócio concreto e a gestão concreta do negócio que é feita. Quando esta gestão passa pela interposição de uma acção judicial em que o negócio só pode resolver-se a favor directo do dono do negócio, não estamos perante gestão de negócios não representativa. [...]

Tendo concluído que AS está a agir em gestão de negócios representativa, naturalmente sem poderes, é convocado o artigo 268º do Código Civil [...]".

Não interessa agora resolver o dissídio de opiniões sobre o carácter da gestão de negócios assumida pelo autor de uma mesma acção e também não interessa considerar nem a coexistência dos dois acórdãos no mesmo processo, nem outros aspectos dos acórdãos da RL. A única questão que importa resolver é a de saber se alguém, assumindo-se como gestor de negócios de outrem, pode intentar uma acção, naturalmente como gestor e, portanto, como autor.

3. O ac1 ocupa-se de uma questão relativa à habilitação de herdeiros, porque, entretanto, a mãe do autor faleceu. O ac1 não trata, no entanto, da questão prévia que havia que apreciar: é possível alguém ser autor de uma acção através do regime da gestão de negócios? Da leitura do ac1 fica-se com a ideia de que a RL considera perfeitamente normal alguém propor uma acção actuando como gestor de negócios de outrem. O ac2 também não vê nenhum problema na atribuição de legitimidade processual a um gestor de negócios, principalmente porque, em sua opinião, no caso sub iudice a gestão é representativa. Importa verificar se é assim.

II. Enquadramento do problema

1. a) A primeira observação que há que fazer é a de que o regime da gestão de negócios não é transponível, sem mais, para o processo civil. Neste, o problema de saber se o gestor de negócios pode propor uma acção (sendo, naturalmente, autor nessa acção) coloca-se em termos de legitimidade processual. Sendo assim, o que importa analisar é se há fundamento para reconhecer legitimidade a um autor que se apresenta como gestor de negócios de outrem.

Mais em concreto: dado que o autor que intenta a acção como gestor de negócios não é o titular do direito invocado em juízo (quem é titular desse direito é o dominus), a propositura da acção por aquele gestor só pode ser enquadrada na substituição processual. Recorde-se que esta substituição ocorre quando está em juízo alguém que não é titular do direito alegado na acção e que se apresenta como tal. Sendo assim, o que se deve discutir é se há fundamento para atribuir a qualidade de substituto processual ao gestor de negócios, permanecendo o dominus como parte substituída.  

b) A este propósito convém deixar algumas referências básicas. Como é conhecido, o art. 30.º, n.º 3, CPC dispõe o seguinte:

"Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor."

Deixando de lado a confusão entre a legitimidade e o interesse, o preceito contém uma regra e uma excepção:

-- A regra é a seguinte: são partes legítimas os titulares da relação material controvertida (por exemplo, o credor e o devedor ou o proprietário reivindicante e o possuidor da coisa);

-- A excepção é a seguinte: para que seja reconhecida legitimidade processual a pessoas diferentes dos titulares da relação material controvertida, é necessário que tal resulte de uma "indicação da lei em contrário".

 A substituição processual pode ser legal ou voluntária:

-- A substituição é legal quando resulta da lei; é o caso daquela que está consagrada no art. 263.º CPC;

-- A substituição é voluntária quando a lei permite que alguém atribua legitimidade a quem não é titular do direito; no art. 34.º, n.º 1, CPC encontra-se um exemplo desta substituição quando se permite que um dos cônjuges dê o seu consentimento para a propositura de uma acção por um deles, mas em nome dos dois.

2. Como se sabe, a gestão de negócios pode ser representativa ou não representativa:

-- "a gestão representativa é a que o gestor assume e exerce diante de terceiros em nome do dono, se bem que privado de poderes para o fazer";

-- "na [gestão] não representativa, o gestor age em nome próprio, ainda que por conta e no interesse do dominus" (Andrade Pissarra, in Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado II (Coimbra 2021), Artigo 471.º, n.º 3).

Importa considerar na análise do problema respeitante à actuação do gestor como substituto processual do dominus cada uma destas modalidades da gestão de negócios.

III. Apreciação da solução jurisprudencial

1. a) Começa-se pelo caso em que o autor que actua em gestão de negócios propõe a acção indicando que o faz em representação de outrem, ou seja, o caso em que gestão é representativa e em que, portanto, o autor indica que actua em representação do dominus. A especialidade deste caso resulta de que a gestão de negócios fica sujeita a ratificação por aquele que teria legitimidade para ser autor (art. 471.º, n.º 1, e 268.º CC).

A propositura de uma acção através de uma gestão de negócios representativa poderia ser consistente com uma substituição processual voluntária, dado que a ratificação da gestão pelo dominus valeria como atribuição de legitimidade ao autor gestor. No entanto, a configuração da situação como uma substituição processual voluntária é bastante problemática:

-- Antes do mais, a ratificação que se regula nos art. 471.º, n.º 1, e 268.º CC é a ratificação do negócio concluído pelo gestor, não a ratificação da representação para a celebração do negócio; dito de outro modo: o que é ratificado pelo dominus é o negócio celebrado pelo gestor, não a gestão (que, aliás, já se completou com a celebração do negócio); coerentemente com este regime, a ratificação pelo dominus só devia acontecer depois do trânsito em julgado da decisão proferida na acção; o problema é que não faz sentido tramitar uma acção sem se saber se o dominus vai ratificar o seu resultado; sendo quase certo que essa ratificação não vai ocorrer se o resultado for uma decisão de improcedência, o réu não tiraria nenhuma vantagem da decisão de absolvição que conseguiu obter na acção; falha, por isso, ao contrário do que se entendeu no ac2, qualquer semelhança com a atribuição negocial de legitimidade processual ao substituto processual;
 
-- Acresce que, fora dos casos em que a substituição voluntária tem cobertura legal (isto é, em que se estabelece na lei que uma pessoa pode atribuir, por negócio, legitimidade processual a outra), a admissibilidade daquela substituição é muito discutível, porque à parte demandada não pode ser exigível que litigue contra alguém diferente do titular do direito; ora, a ratificação pelo dominus não pode constituir nenhuma justificação para que o demandado tenha de litigar com o gestor, e não com o titular do direito; 

-- Por fim, "[a negotiorum gestio] ocorre quando uma pessoa, desprovida de intuito de liberalidade e sem que tenha mandato ou autorização para tal, gira os assuntos de outra pessoa, no exclusivo interesse desta" (Menezes Cordeiro, in Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado II, Introdução (Artigos 464.º a 472.º), n.º 5); de acordo com esta noção, nunca se encontra preenchido um requisito característico da substituição processual voluntária: o de que o substituto processual tenha um interesse próprio na defesa de um direito alheio; no caso da gestão de negócios, verifica-se precisamente o contrário: o gestor está sempre a agir no interesse exclusivo do dominus negotii; a circunstância de a gestão de negócios ser representativa em nada altera a situação, porque, como, aliás, acontece em qualquer hipótese de representação, o representante não age em interesse próprio.

Do exposto pode concluir-se que não é possível enquadrar a propositura de uma acção através de uma gestão de negócios representativa como um caso de substituição processual voluntária.

b) Resta testar a hipótese de configurar a instauração de uma acção no regime de gestão representativa como uma substituição processual legal, ou seja, como uma substituição que decorre de um negócio admitido pela lei. O problema é que não se encontra no regime legal da gestão de negócios que consta dos art. 464.º ss. CC nenhuma base para se poder concluir que o dominus pode atribuir, por acto negocial, legitimidade ao gestor.

A conclusão não pode ser considerada surpreendente. A gestão de negócios caracteriza-se por alguém actuar, sem autorização, no interesse e por conta de outra pessoa (art. 464.º CC). A partir do momento em que o terceiro dá autorização para o gestor actuar em seu nome deixou de haver gestão (e passa a haver mandato ou qualquer outro negócio jurídico). Quer dizer: logo que, por acto negocial do dominus, for atribuída legitimidade processual ao gestor deixa de haver gestão.

c) Em suma: não é possível enquadrar a instauração de uma acção por um gestor que actua em representação do titular do direito na substituição processual, seja ela voluntária ou legal.

2. Passa-se agora a considerar a hipótese na qual o gestor propõe a acção não só em nome próprio, mas também sem indicação de que o faz em representação do titular do direito.

A instauração de uma acção através de uma gestão de negócios não representativa nem sequer pode ser considerada uma substituição processual, dado que o autor não revela que não é titular do direito. Esta situação tem uma solução muito fácil: alguém que está em juízo com base num direito alheio sem ter qualquer base legal ou convencional para o fazer só pode ser considerada uma parte ilegítima.

O que acaba de se afirmar recebe apoio no que dispõe no art. 471.º 2.ª parte CC: se a gestão for não representativa, aplica-se o regime do mandato sem representação (art. 1180.º ss. CC); pergunta-se: já alguma vez se admitiu que um mandatário sem representação tem legitimidade para propor uma acção em substituição do mandante?

3. Segundo o ac1, o autor da acção de preferência configurou a sua gestão como sendo uma gestão não representativa. O ac2 não viu nenhuma objecção à legitimidade do autor gestor, porque considerou que a ratificação pode resolver o problema. Salvo o devido respeito, nenhuma destas soluções é aceitável, pelo que o que se devia ter concluído no processo era que o autor não tinha legitimidade processual para se substituir à sua mãe no exercício de um direito de preferência. 

Não pode haver nenhuma admiração perante a conclusão precedente. Se assim não se entendesse, estaria descoberta a via para que, sempre que fosse possível a gestão de negócios, qualquer pessoa se pudesse substituir em processo a qualquer outra, bastando que invocasse que o faz como gestor de negócios. Isto contraria tudo o que se ensina sobre a função da legitimidade processual, que é a de limitar quem pode estar juízo litigando sobre um certo objecto e contra uma certa parte. Através do recurso à gestão de negócios, a legitimidade para a propositura de acções passaria a ser uma legitimidade "aberta".

Pode reforçar-se que a admissibilidade da gestão não representativa faz sentido no âmbito negocial, mas não faz nenhum sentido no campo processual. No âmbito negocial pode admitir-se que alguém não revele à outra parte que está a agir como gestor de negócios de outrem (o comprador não tem de revelar que está a comprar o selo raro que encontrou por um bom preço como gestor de negócios de um amigo); no campo processual, não é pensável um comportamento semelhante.

IV. Solução proposta (e única possível)

1. Salvo melhor opinião, não é possível justificar através da gestão negócios a atribuição da qualidade de parte processual ao gestor. Apesar disso, não pode deixar de se reconhecer que casos como aquele que se verifica nos acórdãos da RL (que, no fundo, se aproxima de uma incapacidade de facto do possível autor de uma acção) merecem uma resposta jurídica. Não constando do CPC nenhum regime para superar a incapacidade de facto de um possível autor, há que procurar encontrar uma solução.

A solução que se propõe é a seguinte: em vez de se utilizar a gestão de negócios para procurar justificar a atribuição da qualidade de parte ao gestor (empresa que, como se viu, está condenada ao fracasso), aquela gestão é utilizada para justificar a atribuição a esse gestor da qualidade de representante do dominus,

A diferença entre a solução que implicitamente se aceitou, embora com visões distintas, nos dois acórdãos da RL e aquela que agora se propõe é, em termos processuais, muito significativa:

-- Em vez de o problema ser analisado no âmbito da legitimidade processual (quem pode ser parte processual?), ele é considerado no plano da capacidade judiciária (quem pode representar uma parte processual?);

-- Em termos práticos, isso significa que, em vez de o gestor propor a acção em nome próprio (isto é, como autor), esse gestor propõe a acção como representante do dominus; o autor é o dominus e o gestor o seu representante.

2. Neste enquadramento, o problema é semelhante àquele que é resolvido pelo art. 49.º CPC no âmbito do patrocínio judiciário, ou seja, o problema é do mesmo tipo daquele que respeita ao exercício do patrocínio judiciário a título de gestão de negócios. O que está em causa em ambas as situações é uma situação de representação: no caso do art. 49.º CPC, a representação ocorre no âmbito do patrocínio judiciário; no caso agora em análise, a representação verifica-se no âmbito da capacidade judiciária. 

É verdade que no ac1 se refere o disposto no art. 49.º CPC, mas, salva a devida consideração, de uma forma equivocada, dado que nesse ac1 o que se estava a analisar era a admissibilidade de atribuir ao gestor a qualidade de parte processual. Uma coisa é um advogado assumir a representação de uma parte em juízo através da gestão de negócios; outra completamente diferente é alguém tornar-se parte através de uma gestão de negócios (o que, como é claro, aquele advogado não faz). 

Não parece que o ac1 tenha tomado em consideração a diferença entre os dois casos, chegado mesmo a concluir que "a comparação com a actuação de um mandatário representativo ajuda a compreender o regime" aplicável ao caso sub iudice (que era o de reconhecer ao gestor de negócios a qualidade de autor). Salva a devida consideração, não é assim. Do disposto no art. 49.º CPC -- que respeita a uma situação de representação assumida pelo gestor de negócios -- nunca se pode retirar nenhuma justificação para atribuir a qualidade de parte a esse gestor.

3. Atenta a semelhança entre a situação que é resolvida pelo disposto no art. 49.º CPC e aquela que consiste em atribuir ao gestor a qualidade de representante do dominus, a solução torna-se evidente: basta aplicar por analogia o disposto no art. 49.º CPC à representação processual assumida pelo gestor. Desta aplicação resulta o seguinte regime:

-- Em casos de urgência, a representação judiciária pode ser exercida por um gestor de negócios;

-- A parte representada tem de ratificar a gestão dentro do prazo fixado pelo juiz; se o não fizer, além de a acção não poder continuar, o gestor deve ser condenado nas custas que provocou e na indemnização do dano causado à parte contrária ou à parte cuja gestão assumiu;

-- O despacho que fixar o prazo para a ratificação deve ser notificado pessoalmente à parte cujo patrocínio o gestor assumiu.

 

MTS

Nota: agradece-se ao Doutor Nuno Andrade Pissarra a troca que opiniões que esteve subjacente â elaboração deste post.