"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))
22/10/2025
Jurisprudência 2025 (16)
1 – O decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse depende da prova dos factos que revelem a posse dos requerentes, a violência e o esbulho e não daqueles de que depende o decretamento de providência no âmbito do procedimento cautelar comum.2 – Na providência cautelar especificada de restituição provisória da posse a lei estabelece como regra a não audição prévia do requerido, tendo em vista o decretamento da providência, não sendo cometida qualquer nulidade quando a decisão é proferida sem audição prévia da parte contrária.3 – Optando o requerido apenas por recorrer da decisão cautelar proferida e não impugnando a matéria de facto provada e não provada, apenas podem ser considerados os factos indiciariamente provados na decisão de 1.ª Instância e não quaisquer outros, referidos nas alegações de recurso, que poderiam ter obstado ao decretamento da providência cautelar.
“O esbulho verifica-se quando a pessoa é privada da posse, abrangendo os atos que implicam a perda da posse contra a vontade do possuidor e que assumam proporções de tal modo significativas que impeçam a sua conservação, ficando o esbulhado impedido do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse (cf. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil», Vol. I, 3.ª reimpressão da edição de 1998, Almedina, 2010, p. 46).Nos termos do art. 1283.º do Código Civil, «é havido como nunca perturbado ou esbulhado o que foi mantido na sua posse ou a ela foi restituído judicialmente», o que significa que a restituição provisória da posse será injustificada, por inexistência de esbulho, quando a coisa possuída tenha sido apreendida por via do cumprimento de uma ordem judicial ou no âmbito de uma ação executiva para entrega de coisa certa, bem como nos casos em que se verifique uma mera turbação da posse, isto é, quando os atos de um terceiro apenas dificultam o exercício do poder de facto sobre uma coisa, poder esse que, no entanto, se mantém na esfera do possuidor (cf. MARCO CARVALHO GONÇALVES, op. cit., p. 276).O procedimento pode ser instaurado não só contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas também contra terceiro que esteja na posse da coisa esbulhada e tenha conhecimento do esbulho (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 37/20.3T8PTL.G1, de 01-10-2020, relator JOAQUIM BOAVIDA, disponível in www.dgsi.pt).In casu, da factualidade sumariamente assente resulta que, em data não concretamente apurada, o requerente cravou dois pilares de pedra, um de cada lado do caminho, construiu um portão em chapa de zinco nesses pilares, fechado com uma tranca metálica e a impedir a passagem de quem quer que seja (tal como os requerentes). Mais colocou o requerido pedras e terra a bloquear o caminho em questão.Destarte, os requerentes perderam o controlo material sobre a detenção e fruição do sobredito caminho (ou seja, perderam o seu pleno uso), concluindo-se que foram esbulhados da sua posse.Em face do que se deixou dito, considera-se que a atuação do requerido consubstancia um ato de esbulho com características capazes de fundamentar a providência, concluindo-se, assim, pela verificação do segundo pressuposto do decretamento da providência”. (…)A restituição provisória só tem cabimento quando o esbulho haja sido perpetrado com violência.O conceito de violência referenciado pelos arts. 1279.º do Código Civil e 377.º do Código de Processo Civil é explicitado no art. 1261.º, n.º 1, do Código Civil, o qual define como violenta a posse adquirida através de coação física ou de coação moral nos termos do art. 255º do mesmo Código.Conforme sustentam LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE «é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador», não relevando se o esbulho é direcionado à pessoa do esbulhado ou aos seus bens (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Almedina, 2017, pp. 47 e 94).Não se negligencia a divergência existente entre os que apenas relevam a violência exercida contra a pessoa do esbulhado e os que relevam, de igual modo, a violência exercida sobre a coisa, contudo afigura-se que apenas o segundo entendimento se revela consentâneo com o conceito de violência plasmado no aludido art. 1261.º, n.º 1, do Código Civil, por referência ao art. 255º do mesmo Código (cf. neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 487/14.4T2STC.E2.S1, de 19-10-2016, relatora FERNANDA ISABEL PEREIRA, disponível in www.dgsi.pt).Até porque, conforme entendimento propugnado pelo Supremo Tribunal de Justiça, «A interpretação mais restritiva seria redutora e deixaria sem tutela cautelar o possuidor privado da sua posse por outrem que, na sua ausência e sem o seu consentimento, atuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa.» (ibidem).Neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães quando entendeu que «não pode afastar-se liminarmente a relevância da ação do esbulhador sobre a coisa, havendo que analisar, em concreto, em que medida a violência exercida afeta a relação do possuidor com essa mesma coisa, adiantando-se que a caracterização como esbulho violento, para efeitos do disposto no art. 1279º do CC, não se limita ao uso da força física contra as pessoas, sendo ainda de considerar violento o esbulho quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios ou à natureza dos meios usados pelo esbulhador e, por isso, há-de considerar-se privado da posse, em virtude de ação violenta dos esbulhadores, exercida sobre a coisa.» (cf. processo n.º2722/20.0T8BCL.G1, de 13-07-2021, relator JOSÉ CRAVO, disponível in www.dgsi.pt).Todavia, no respeitante à violência sobre as coisas, enquanto uma posição mais lata apenas exige uma atuação sobre a coisa esbulhada desde que impeça a continuação da posse por parte do esbulhado, outra mais restrita impõe que a atuação sobre a coisa esbulhada seja apta, ainda que indiretamente, a constranger ou intimidar a pessoa do esbulhado (veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 99/17.0T8AMR.G1, de 14-09-2017, relator ESPINHEIRA BALTAR, disponível in www.dgsi.pt).O colendo Supremo Tribunal de Justiça, no enunciado acórdão de 19-10-2016, sufragou a posição mais abrangente, sustentando que a «violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Basta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da posse como até então a exercia» (no mesmo sentido, acórdãos dos Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 69/11.2TBGMR-B.G1, de 03-11-2011, relator ANTÓNIO SOBRINHO, Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 1880/13.5TBSTS.P1, de 18-10-2013, relator CARLOS QUERIDO, Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 89/14.5TBBNV.L1-7, de 23-09-2014, relator DINA MONTEIRO, Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 99/17.0T8AMR.G1, de 14-09-2017, relator ESPINHEIRA BALTAR, todos disponíveis in www.dgsi.pt).Sendo certo que não é possível enunciar um conceito preciso de violência, haverá que ponderar, em cada caso concreto, as circunstâncias em que o esbulho foi praticado, isto é, se o esbulhado se viu impedido contra a sua vontade e em consequência de um comportamento que lhe é alheio do exercício da posse ou do direito como até então.Destarte, afigura-se que para a verificação da violência do esbulho é suficiente que o ato seja dirigido à coisa esbulhada e seja de molde a impedir a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de obstáculos à sua utilização pelo possuidor, sendo este constrangido a suportar esta situação contra a sua vontade (como sucederá nos seguintes exemplos jurisprudenciais: substituição de fechaduras, colocação de cadeados, vedação de prédio com arame e colocação de cadeado num portão, vedação com estacas de madeira e rede com uma altura de 1,50 metro). (…)No caso sub judice, não se suscitam dívidas que a violência exercida pelo requerido é relevante para efeitos da restituição provisória da posse, pois que se conclui pela constituição de obstáculos físicos, a cancela, as pedras e a terra, e que inviabilizam a passagem pelo traço de terreno em relevo.A imprevisibilidade desta atuação e os meios utilizados não podem ter outro significado que não um intuito patente do requerido em intimidar os requerentes, de forma a impossibilitá-los de usar e fruir do imóvel em toda a sua plenitude. Conclui-se, assim, pela verificação do terceiro pressuposto”.
[MTS]
21/10/2025
Jurisprudência 2025 (15)
1. O sumário de RC 14/1/2025 (2491/23.2T8ACB-B.C1) é o seguinte:
No domínio da proteção jurídica, e em abono da verdade e da justiça material, a decisão tacita oriunda do mero decurso do tempo – artº 25º nº 2 da Lei 34/2004, de 29.07, - pode ser revogada, expressa ou implicitamente, por ulterior decisão adrede proferida, nos termos do artºs 167º nº 2 al. b) do CPA aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07.1. e do artº 10º nº 1 als. a) e b) Lei 34/2004, aplicáveis a acervo factual análogo.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"6.1.«1 - O prazo para a conclusão do procedimento administrativo e decisão sobre o pedido de protecção jurídica é de 30 dias, é contínuo, não se suspende durante as férias judiciais e, se terminar em dia em que os serviços da segurança social estejam encerrados, transfere-se o seu termo para o 1.º dia útil seguinte.
2 - Decorrido o prazo referido no número anterior sem que tenha sido proferida uma decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de protecção jurídica.»
«O acto tácito de deferimento constitui uma manifestação de vontade presumida e, porque assim é, a prolação de acto expresso em sentido contrário ao da vontade presumida faz com deixe de fazer sentido falar-se em vontade presumida e, portanto, em acto tácito.» - Ac STA de 09.10.2002, p. 047598 in dgsi.pt. como os infra cits.
Nesta conformidade:
«O deferimento tácito do apoio judiciário não se sobrepõe ao indeferimento expresso subsequente, constante de decisão proferida pela entidade competente e que não foi objecto de impugnação.» - Ac. RP de 18.10.2012, p. 6672/10.0YYPRT-A.P1.
A revogação constitui a válvula de escape do sistema.
Sendo que, assim, ela convoca:
«uma ponderação sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade, quando esteja em causa um ato tácito constitutivo de direitos tal não haverá de ser diferente, sendo tal princípio chamado a encontrar o correto equilíbrio de interesses quando esteja em causa desfazer um direito que só se formou pela conjugação da inércia da Administração com o efeito da lei.» - Angela Lucas: in O REGIME DA REVOGAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO E A INDEMNIZAÇÃO DO BENEFICIÁRIO DE BOA-FÉ in https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/43063/1/203381700.pdf. [...].
Condicionalismos aplicáveis à revogação1 - Os atos administrativos não podem ser revogados quando a sua irrevogabilidade resulte de vinculação legal ou quando deles resultem, para a Administração, obrigações legais ou direitos irrenunciáveis.2 - Os atos constitutivos de direitos só podem ser revogados:a) Na parte em que sejam desfavoráveis aos interesses dos beneficiários;b) Quando todos os beneficiários manifestem a sua concordância e não estejam em causa direitos indisponíveis;c) Com fundamento na superveniência de conhecimentos técnicos e científicos ou em alteração objetiva das circunstâncias de facto, em face das quais, num ou noutro caso, não poderiam ter sido praticados;d) Com fundamento em reserva de revogação, na medida em que o quadro normativo aplicável consinta a precarização do ato em causa e se verifique o circunstancialismo específico previsto na própria cláusula.
Cancelamento da protecção jurídica1 - A protecção jurídica é cancelada, quer na sua totalidade quer relativamente a alguma das suas modalidades:a) Se o requerente ou o respectivo agregado familiar adquirirem meios suficientes para poder dispensá-la;b) Quando se prove por novos documentos a insubsistência das razões pelas quais foi concedida;c) Se os documentos que serviram de base à concessão forem declarados falsos por decisão com trânsito em julgado;
Audiência prévia
1 - A audiência prévia do requerente de protecção jurídica tem obrigatoriamente lugar, por escrito, nos casos em que está proposta uma decisão de indeferimento, total ou parcial, do pedido formulado, nos termos do Código do Procedimento Administrativo.2 - Se o requerente de protecção jurídica, devidamente notificado para efeitos de audiência prévia, não se pronunciar no prazo que lhe for concedido, a proposta de decisão converte-se em decisão definitiva, não havendo lugar a nova notificação.»Finalmente, urge ter presente que a decisão final sobre o pedido de proteção jurídica, máxime a decisão expressa, só pode ser atacada via impugnação judicial – artº 26º e 27 da aludida Lei 34/2004.
20/10/2025
Jurisprudência 2025 (14)
1. O sumário de RC 14/1/2025 (1490/23.9T8GRD.C1) é o seguinte
Quando uma autarquia local arrenda bens do seu domínio privado e estabelece, para o efeito, um procedimento pré-contratual com vista a encontrar o arrendatário, assegurando entre os potenciais interessados uma «concorrência efetiva» através de hasta pública, a competência para decidir sobre questões relativas ao arrendamento pertence aos tribunais administrativos, por força do disposto que na al. e), do n.º 1, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
1 - O tribunal recorrido fundamentou a decisão nestes termos:
«No caso concreto em apreciação, não há dúvidas que está em causa a apreciação de uma relação jurídica existente entre a Autora, na qualidade de autarquia local (cf. Artigos 235º e 236º, nº 1, da CRP) e a Ré, Associação de natureza privada, sem fins lucrativos, sendo o primeiro um ente público administrativo e a segunda uma entidade de direito privado.
Por sua vez, a causa de pedir que o Autor invoca para obter a sua pretensão, ao que se entende, diz respeito a uma relação contratual de natureza administrativa, como se apreciará.
Com efeito, no caso concreto, o Autor não se limitou a celebrar com a Ré um simples contrato de arrendamento, mas antes, este contrato de arrendamento foi celebrado após concurso público, consubstanciando apenas a forma legal de arrendamento de um espaço, de alegada propriedade da Ré, sobre o qual se vai estabelecer para futuro uma relação jurídica administrativa.
Efectivamente, a própria celebração do contrato de arrendamento do imóvel depende de normas de direito público, tendo sido precedido de escolha do arrendatário por procedimento administrativo de hasta pública, celebrado em 4 de Maio de 2009, entre o autor e a ré, na sequência de concurso lançado pelo Autor naquele ano.
Deste modo entende-se - mantendo todo o respeito por entendimento diverso – que ficou estabelecida entre o Autor e a Ré uma relação jurídica de direito administrativo, pois, no domínio das suas competências e dentro das suas atribuições o Autor promoveu o arrendamento à Ré de um espaço de propriedade pública, com o intuito de, por essa via e através do ente privado, concretizar a prossecução de interesse público que lhe é atribuída por lei, tendo essa cedência de espaço (arrendamento) ocorrido, tendo sido precedido de escolha do arrendatário por procedimento administrativo de hasta pública, na sequência de concurso lançado pelo Autor naquele ano.
Tendo em conta a causa de pedir correspondente aos pedidos formulados pelo Autor é incontornável a análise da mesma de acordo com as regras e procedimentos emanados pela Autarquia, tratando-se, de acordo com qualquer dos critérios acima apontados, de actos de gestão pública, devendo a sua validade ser apreciada à luz de legislação de natureza administrativa.
Com efeito, a celebração de um contrato de arrendamento configura apenas um meio de disposição do direito de propriedade sobre um imóvel, contudo o objecto do litígio reside não só no alegado incumprimento do mesmo por parte da Ré mas igualmente e a montante na própria resolução do contrato celebrado, discutindo-se ainda a propriedade do imóvel, pelo que a análise dos pedidos deduzidos pelo A., face à impugnação da Ré, pressupõe sempre a apreciação de tal contrato, tendo assim que se apreciar a eventual inobservância das normas de direito público vigentes e criadas com o objetivo de cumprir escopos públicos, especificamente normas relativas aos pressupostos legais de validade de tais contratos (nomeadamente a Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro - lei esta que estabelece o REGIME JURÍDICO DAS AUTARQUIAS LOCAIS).»
2 – A competência material do tribunal determina-se face ao pedido e à causa de pedir exarados na petição inicial, acima já mencionados.
Vejamos então.
(a) O n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de fevereiro) dispõe que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
E no artigo 4.º concretizam-se os casos de competência material, isolando-se agora apenas a sua al. e), por ser aquela que se afigura pertinente para o caso dos autos:
«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (…); e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público; …»
(b) O Município pede, no confronto com a Associação ré, que se declare «a) Ser a Ré condenada a reconhecer que o autor é legítimo dono e possuidor do prédio urbano identificada no artigo 1º desta p.i.; b) Ser a Ré condenada a reconhecer que assiste ao Autor o direito de resolver o contrato de arrendamento, bem como, a despejar o espaço arrendado identificada no artigo 1º e no prazo que a sentença vier a fixar, deixando-o livre, desocupado de pessoas e bens e no estado de conservação em que o recebeu; c) Ser a Ré condenada a pagar ao Autor as rendas vencidas até à presente data (…) e ainda as vincendas, acrescidas de juros legais …»
O Autor exercita aqui o seu direito de proprietário e de senhorio perante a Ré com vista a obter tutela judicial relativamente a um contrato de arrendamento que celebrou com a Ré.
Quanto ao direito de propriedade, verifica-se que o mesmo não resulta de uma relação administrativa, pois não existe qualquer relação administrativa entre as partes na génese da constituição do direito de propriedade.
Porém, é invocado como pressuposto lógico da relação de arrendamento e, por conseguinte, não tem autonomia, ou seja, a questão principal é a que respeita ao arrendamento.
Quanto ao contrato de arrendamento em si mesmo, verifica-se que é um contrato de arrendamento cujo conteúdo material está previsto no Código Civil (salvo o disposto no artigo 126.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto (Regime Jurídico do Património Imobiliário Público – RJPIP).
De salientar que a relação de arrendamento está excluída do âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos (CCP) – DL n.º 18/2008, de 29 de janeiro –, o qual submete ao regime da contratação pública alguns contratos que, não fora esta previsão legislativa estariam subtraídos a esta jurisdição [Veja-se o caso analisado no Acórdão do S.T.J., uniformizador de jurisprudência, de 26-04-2022, proferido no processo 51012/18.6YIPRT-A.P1.S1-A (relatado pelo Sr. Cons. António Barateiro Martins), nos termos do qual: «Compete à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios emergentes de contrato de mandato forense celebrado entre um advogado e um contraente público.»
Ponderou-se neste aresto que o regime da contratação pública estabelecido na parte II do Código dos Contratos Públicos se aplicava ao contrato de mandato forense celebrado entre um advogado e um contraente público e daí a competência atribuída à jurisdição administrativa]
É o que resulta do teor da al. c), do n.º 2, do artigo 4.º do CCP:
«(…) 2 - O presente Código não é igualmente aplicável a: (…); c) Contratos de compra e venda, de doação, de permuta e de arrendamento de bens imóveis ou contratos similares;»
Esta exclusão respeita ao tipo ou conteúdo material do contrato, deixando incólume a fase pré-contratual.
Verifica-se que o contrato de arrendamento aqui em questão foi antecedido de um procedimento administrativo de hasta pública e este procedimento pré-contratual insere o caso na previsão da al. e), do n.º 1, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais:
«1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: […]. e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público; […]»
Continuando.
A Lei n.º 73/2013, de 03 de setembro, a qual estabelece o Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais, não contém normas sobre o arrendamento de bens privados das autarquias; outro tanto ocorre com a Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, sobre o Regime Jurídico das Autarquias Locais.
Porém, o procedimento da hasta pública, adotado no caso dos autos para encontrar o arrendatário, está de acordo com o procedimento de hasta pública previsto no artigo 60.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto (Regime Jurídico do Património Imobiliário Público – RJPIP), onde se prescreve, relativamente ao «Arrendamento de imóveis do Estado», que «O arrendamento é realizado preferencialmente por hasta pública ou…»
É certo que o Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto, não se refere expressamente ao modo como a gestão dos bens imóveis do domínio privado das autarquias deve ser feita, designadamente em matéria de arrendamento, mas as autarquias terão de respeitar as disposições legais deste diploma sobre a gestão patrimonial imobiliária do Estado, designadamente as estabelecidas nos seus artigos 2.º a 12.º.
Com efeito, o n.º 1 do artigo 1.º do RJPIP diz que «O presente decreto-lei estabelece: a) As disposições gerais e comuns sobre a gestão dos bens imóveis dos domínios públicos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais; b) O regime jurídico da gestão dos bens imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos públicos» (sublinhado nosso).
Por sua vez, o artigo 2.º dispõe que «As entidades abrangidas pelo presente decreto-lei devem observar os princípios gerais da atividade administrativa, designadamente os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé» e o artigo 7.º complementa, determinando que «As entidades abrangidas pelo presente decreto-lei devem, na gestão dos bens imóveis, assegurar aos interessados em contratar ou em os utilizar uma concorrência efetiva.»
Por conseguinte, as autarquias quando arrendam bens do seu domínio privado devem fazê-lo nos termos referidos neste artigo 7.º (por força da al. a) do n.º 1, do artigo 1.º), ou seja, assegurando uma «concorrência efetiva», o que foi feito pelo município Autor, através da referida hasta pública prevista no artigo 60.º do RJPIP, acima já referido, para os arrendamentos de imóveis do Estado.
Verifica-se, por conseguinte, que o contrato de arredamento objeto destes autos foi precedido de um procedimento pré-contatual de hasta pública regulado por leis de natureza administrativa.
É este procedimento pré-contratual que subsume o caso dos autos, como já se disse, na previsão da al. e), do n.º 1, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais («… execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público»).
Ora, quando assim é, como sustenta Mário Aroso de Almeida, para efeitos de atribuição de jurisdição, «A previsão da alínea e) do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF possui, contudo, um alcance mais amplo, pois, como foi dito, atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta a regras de contratação pública, independentemente da questão de saber se a “prestação do co-contraente pode condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público”.
O critério não é, aqui, na verdade, o do contrato administrativo, mas o do contrato submetido a regras de contratação pública: desde que um contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir devem ser objecto de uma acção a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais - e isto, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo, nos termos do CCP.» - Manual de Processo Administrativo, 3.ª ed., Almedina, 2017, pág. 169.
No mesmo sentido Jorge Pação, a respeito da mesma norma do ETAF:
«(…) a sujeição a normas de direito público como critério de delimitação da competência material contratual inclui como critério autónomo a submissão a normas pré-contratuais, isto é, bastará que o procedimento pré-contratual seja regulado por normas de direito público para que a competência da jurisdição administrativa deva ser reconhecida, não apenas para a resolução dos litígios sobre a validade dos atos pré-contratuais, mas também quanto aos que incidem sobre a interpretação, validade e execução dos contratos. Importa, tão-somente, a natureza do procedimento pré-contratual, pelo que, quando ela seja pública – por decorrente da submissão “a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo” -, cabe aos tribunais administrativos a apreciação dos litígios, mesmo que relativos a contratos de direito privado da administração.
É, pois, esta a interpretação que deve prevalecer da expressão legal “nos termos da legislação sobre contratação pública”, sendo de rejeitar uma visão que a reduza à parte II do Código os Contratos Públicos. Os contratos sobre bens do domínio privado, ainda que não estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do Código os Contratos Públicos (artigo 4.º, n.º 2, alínea c), do CCP), não deixam de ser celebrados na sequência de procedimentos pré-contratuais regulados por normas de direito administrativo constantes do regime jurídico do património imobiliário público, que visam garantir a prossecução finalidades públicas relevantes, tais como a publicidade e concorrência dessa contratação. Trata-se de uma contratação que não deixa de ser pública, devidamente regulada por normas de direito público, ainda que não abrangida pela principal fonte normativa de regras jurídicas nessa matéria» - Contencioso dos Bens Públicos, in Contencioso Administrativo Especial, AAFDL Editora, 2021, pág. 154.
Concluindo, quando uma autarquia local arrenda bens do seu domínio privado e estabelece, para o efeito, um procedimento pré-contratual com vista a encontrar o arrendatário, assegurando entre os potenciais interessados uma «concorrência efetiva» através de hasta pública, a competência para decidir sobre questões relativas ao arrendamento é dos tribunais administrativos, por força do disposto que na al. e), do n.º 1, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais."
[MTS]
17/10/2025
Jurisprudência estrangeira (40)
O sumário de OLG Brandenburg 2/7/2025 (1 W 31/25) é o seguinte
Um juiz que, com base em considerações jurídicas, aponte dúvidas quanto à fundamentação da ação e proponha um processo de conciliação entre as partes não pode, por esse motivo, ser recusado por suspeita de parcialidade.
Jurisprudência 2025 (13)
I – Falecido um autor, devem ser habilitados todos os seus sucessores (art.º 351/1 do CPC), excepto, logicamente, aquele que for réu nessa acção; pelo que, se houver mais do que um sucessor para além do réu, não se pode verificar a confusão que daria origem à extinção do processo por impossibilidade superveniente da lide.II – Em alternativa à habilitação de todos os sucessores, se o requerente da habilitação não soubesse quem eram todos eles ou não soubesse quem é que tinha aceite a herança, podia requerer a habilitação da herança jacente (art.º 355/4 do CPC), o que não foi o caso dos autos.III – Se, por erro, tiver sido habilitado como autor também o réu, tal também não implicará a impossibilidade da lide, mas a desconsideração como autor daquele que for réu.IV – Depois da habilitação, a acção continua a ter o mesmo objecto, mas sujeitos diferentes, pelo que, sendo a acção uma reivindicação, a condenação do réu a restituir o bem deve ser aos herdeiros colocados no lugar do autor falecido (já que, logica e naturalmente, ele não podia restituir o bem ao autor falecido).V – A consideração do óbito do autor não é a consideração de um facto que o juiz não podia conhecer, nem a consequência referida em IV corresponde à condenação em objecto diverso do pedido.VI – Já a consideração do óbito do primitivo autor para efeitos de declarar que o imóvel é actualmente da sua herança (ou melhor, dos seus herdeiros) corresponde a alterar o objecto inicial do processo, o que faz a sentença incorrer em nulidade, o que tem de ser suprido pelo tribunal de recurso.
"A autora faleceu no decurso da acção.
O falecimento de uma autora, quando não torne impossível ou inútil a continuação da lide (art.º 269/3 do CPC) – como geralmente não torna nas acções que têm por objecto direitos patrimoniais como é o caso – implica a suspensão da instância (artigos 269/1a e 270/1 do CPC) com efeitos retroactivos à data do falecimento, até que sejam habilitados os sucessores da pessoa falecida (art.º 276/1a do CPC), para com eles se prosseguirem os termos da demanda (art.º 351 do CPC – esta habilitação serve pois para este fim), sucessores que se substituem à pessoa falecida, passando a ser autores (art.º 262/a do CPC).
Há apenas uma modificação subjectiva da instância, permanecendo o seu objecto o mesmo que era inicialmente, pelo que os factos que estão em julgamento são os mesmos e são eles que vão ser dados como provados ou não. Os novos autores têm que aceitar a lide como ela se encontra e o que se vai discutir no processo é a pretensão do autor inicial, julgada à luz do momento em que foram alegados os factos que lhe servem de base.
Neste sentido, a nota 2 (b) da nota prévia aos artigos 351 a 357 do CPC online, 2024/11, de Miguel Teixeira de Sousa, pág. 272: “A habilitação destina-se a permitir a substituição de uma parte falecida pelos seus sucessores, não a transferir, a título sucessório, o objecto do processo para os sucessores. Há apenas a substituição de uma parte falecida por uma outra parte, pelo que, em tudo o mais (nomeadamente, quanto ao objecto), a instância permanece a mesma (equivocados RL 17/6/2021 (1004/09); RL 21/6/2021 (709/19)).
Os sucessores (num sentido amplo, que engloba os sucessíveis e os legatários [assim nota 4 (a) e (c) ao artigo 351 do CPC online, 2044/11, de MTS, pág. 275: “No presente contexto, a expressão “sucessores” utilizada no n.º 1 abrange não apenas aqueles que tenham aceitado a herança, mas também os sucessíveis que ainda a não tenham aceitado, nem repudiado. A contraposição entre o disposto no art.º 353.º e o estabelecido no art.º 354.º demonstra que a qualidade de sucessor pode ainda não estar determinada]) que têm de ser habilitados são todos os que o forem, excepto aqueles que, por serem réus, não podem ser habilitados como autores por impossibilidade lógica (uma pessoa não pode ser simultaneamente réu e autor; assim, um réu não pode / não deve ser habilitado no lugar de um autor).
Neste sentido, o antigo acórdão do STJ de 02/06/1964, BMJ 138, pág. 298, citado por, e na síntese de, Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 1, pág. 694]: “falecida a autora de acção intentada contra 2 dos seus filhos, não podem ser habilitados para, em seu lugar, ocuparem a posição de autores, os seus filhos que nela figuram como réus, mas apenas os restantes. Baseou-se a decisão em que a habilitação incidental respeita tão só à transmissão da posição jurídica litigiosa, a qual não tem que coincidir com a transmissão universal dos direitos do falecido, a que respeita a acção autónoma de habilitação.”
No mesmo sentido, os acórdãos do TRL:
de 02/11/2010, proc. 90/08.8TBSCG-A.L1-1: “[…] Ocupando um requerido de incidente de habilitação o lugar de réu na acção principal, não pode ele, através da habilitação, passar a ocupar o lugar da falecida quando esta era a autora da referida acção principal.”e de 21/09/2017, proc. 2467/13.8TBCSC.L1-8: “Falecendo o autor da acção em que é ré a sua mãe, a habilitação desta para com ela prosseguir a causa não é possível, já que passaria a ser simultaneamente autora e ré na mesma acção. Mas nada impede a habilitação do pai, a título incidental, para substituir o falecido na posição activa do litígio.” Acórdão este que, por isso mesmo, julgou procedente a apelação, revogando o despacho recorrido na parte em que declarou extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide.
Logicamente que, se no momento em que a habilitação for requerida, já estiver determinado um único sucessor na relação substantiva em litígio (art.º 262/a do CPC), é só esse sucessor que deve ser habilitado. Mas não é esse o caso dos autos.
Não estando ainda determinados os sucessores, ou não sabendo os requerentes da habilitação se todos os determinados já a aceitaram (art.º 2046 do CC), pode ser requerida a habilitação da herança jacente em vez dos sucessores (art.º 355/4 do CPC). Mas é uma opção dada pela lei, não uma obrigatoriedade. E não foi ela a opção seguida pelo autor requerente da habilitação. Nem por isso podia ser esse o sentido da sentença de habilitação, ao contrário do que o autor pretende.
Neste sentido Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. I, págs. 701-702: “Sendo atribuída à herança jacente (art.º 2046 do CC) personalidade judiciária (art.º 12-a), é também admitida a respectiva habilitação, como sucessora, até que ocorra a aceitação da herança por herdeiros determinados (art.º 2050 do CC).” Tem-se em conta que o requerente da habilitação não tem o ónus de alegar a provar a inexistência de quaisquer outros sucessores, mas apenas dos que lhe são conhecidos, nem tem de alegar a aceitação ou o não repúdio [ver nota 2 (a) ao art.º 354 do CPC online de MTS, págs. 279-280, com indicação de vária jurisprudência nesse sentido.]
Se, por não terem sido observadas as regras que antecedem, tiverem sido habilitados todos os sucessores, incluindo réus, a solução que tem sido acolhida, não é a da impossibilidade da lide, mas sim a da irrelevância da posição do réu que seja simultaneamente autor. Só assim não acontece quando só há um sucessor do autor que é o réu, em que se defende a verificação da confusão.
Neste sentido, por exemplo, o ac. do TRE de 02/03/2023 (594/17.1T8ALR.E1) com o seguinte sumário:
“[…] A decisão que habilita a ré do lado activo, do ponto de vista substantivo fá-lo apenas como representante da herança indivisa por morte de seu pai. Logo, não há confusão (subjectiva) de direitos e obrigações na sua pessoa, porque na mesma pessoa não se reúnem as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, como previsto no artigo 868 do CC. […] Embora do ponto de vista processual a habilitação da ré a coloque numa aparente contradição de posições processuais, há que atender ao facto de haver na acção uma co-demandante cujo interesse na acção se mantém intocável. Não pode essa demandante ver-se privada de deduzir e defender os direitos que relativamente ao imóvel, lhe possam porventura assistir.
Atendendo à sempre que possível prevalência do fundo sobre a forma que decorre da filosofia do CPC (cf. preâmbulo ao DL 329-A/95, de 12/12), importará questionar se, do ponto de vista substantivo, se gerou uma situação de impossibilidade superveniente da lide que deva conduzir à extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277/-e do CPC. Não há impossibilidade ou inutilidade da lide quando a acção continua a ter interesse para uma co-demandante, por ser ainda possível satisfazer-se à pretensão que esta quer fazer valer no processo. Daí que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes.”
E no texto do acórdão:
“Daí que a jurisprudência venha a afirmar que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes – nesse sentido o acórdão do STJ de 17/11/2021, proc. 391/17.4T8GMR.G1.S1.”
No mesmo sentido, o ac. do TRG recorrido objecto daquele acórdão do STJ [o 391/17…] diz:
“… embora irrelevante face à subsistência do interesse autónomo da autora, nem sequer se pode falar que o interesse do primitivo autor se extinguiu, pois o que se verificou foi a sucessão no respectivo interesse na estrita medida deste. Sejam 2 ou 20 os herdeiros, subiste a pertinência da questão da prestação de contas: em conformidade com o disposto no artigo 2093/1 do CC, o cabeça-de-casal está obrigado a prestar contas. Se na pendência da administração dos bens pelo cabeça-de-casal falecer um ou vários herdeiros, desde que a totalidade dos interesses administrados não se reúnam subjectivamente numa única pessoa, o cabeça-de-casal continua obrigado a prestar contas perante o herdeiro não administrador”.]
No mesmo sentido, veja-se o comentário de Miguel Teixeira de Sousa àquele acórdão do TRE, publicado a 09/11/2023 no blog do IPPC, sob Jurisprudência 2023 (47):
“Compreende-se a solução, embora a mesma implique que a herança indivisa que resulta da morte do co-autor passe a ser representada pela co-autora e pela ré.
A circunstância de haver mais do que um representante nunca exclui que possam existir discordâncias entre os representantes quanto ao modo de prosseguir os interesses do representado. Isso é ainda mais provável quando um dos representantes é simultaneamente ré na acção.Assim, embora nada haja a objectar a que a acção continue depois do falecimento do co-autor, talvez se deva entender que a ré se encontra, natura rerum, impossibilitada de assumir quaisquer poderes de representação da herança indivisa agora co-demandante. O princípio da dualidade das partes e o que talvez possa ser designado como a proibição do "processo consigo mesmo" justificam esta solução.”
Contra, defendendo implicitamente a impossibilidade superveniente da lide, veja-se o ac. do TRL de 21/06/2021, 709/19.5T8LSB-A.L1-6: I– A obrigação de prestar contas tem carácter patrimonial e por isso é susceptível de transmissão para os herdeiros do cabeça-de-casal. II– Sendo herdeiros da falecida cabeça-de-casal ré na acção de prestação de contas a própria autora e os dois requeridos no incidente de habilitação de sucessores da ré, não poderia a autora ser habilitada como sucessora por se verificar a figura jurídica da “confusão” e nem podem os requeridos ser habilitados desacompanhados da autora, pois são os três, em conjunto, os sucessores dessa obrigação de prestar conta.
Mas veja-se o comentário crítico a este acórdão do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, publicado em 23/02/2022 no blog do IPPC, sob Jurisprudência 2021 (139):
“[…] Salvo o devido respeito, a posição desses herdeiros não deve ser vista como a de herdeiros da obrigação que constitui objecto do processo, nomeadamente, da obrigação de prestar contas. Seria estranho que, com base numa posição que não se transmite - que é a de cabeça-de-casal -, alguém pudesse adquirir, por sucessão, uma obrigação que é própria de uma posição intransmissível. Como é que se pode justificar que quem não é cabeça-de-casal suceda numa obrigação que é inerente a essa qualidade?No entanto, apesar da não transmissibilidade da obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal, é claro que uma acção de prestação pode ser continuada pelos herdeiros daquela parte. Mas isso sucede, não porque os habilitados sejam herdeiros da obrigação dessa prestação, mas antes porque são herdeiros de quem tinha essa obrigação. Isto é: o título de herdeiro atribui a alguém legitimidade para se substituir à parte falecida (título legitimante), sem que esteja em causa a sucessão na obrigação que é apreciada na acção (título sucessório).A habilitação destina-se a permitir a substituição de uma parte falecida pelos seus herdeiros, não a transferir, a título sucessório, o objecto do processo para os herdeiros. Há apenas a substituição de uma parte falecida por uma outra parte. Em tudo o mais (nomeadamente, quanto ao objecto), a instância permanece a mesma.Em conclusão: a razão não está nem com quem entende que, porque a obrigação de prestação de contas é intransmissível, a acção de prestação tem de se extinguir com a morte do cabeça-de-casal, nem com quem defende que, para que a acção de prestação possa continuar contra os herdeiros do cabeça-de-casal, é necessário pressupor que estes são herdeiros da obrigação de prestação.”
Pelo que, uma acção de reivindicação em que, no lugar de uma autora falecida, foram habilitados os seus herdeiros, sendo procedente, importará a condenação dos réus a restituírem o imóvel nos termos pedidos na PI, mas aos novos autores enquanto sucessores da primitiva autora, não também ao réu que foi também habilitado como tal.
De tudo o que antecede resulta que a ré tem razão parcialmente.
A sentença recorrida tinha apenas que ver, à luz dos factos alegados e provados na PI, se os autores eram ou não proprietários do imóvel reivindicado, não podendo reconhecer um direito constituído depois disso, com base [em factos] alegados pela ré para efeitos da modificação subjectiva da instância. E, por isso, também não podia condenar os réus a restituir o imóvel à herança da falecida autora e ao autor. Para além de que, não foi a herança que foi habilitada, mas os herdeiros da autora falecida. E a herança não partilhada não tem personalidade jurídica nem judiciária (a herança jacente tem personalidade judiciária, mas já se sabe que não foi ela a habilitada). E ainda porque o autor não é proprietário do bem (mas aqui já não se está perante uma nulidade da sentença, mas sim perante um erro de julgamento de direito causada por um erro de julgamento de factos).
Pelo que a sentença é nula na parte em que julga que o prédio actualmente pertence à herança da autora e ao autor, o que se declara tendo em conta o disposto no art.º 615/1-d-e do CPC.
Cabe agora apreciar, em substituição do tribunal recorrido (art.º 665/1 do CPC), se perante os factos alegados e provados (já com a correcção do facto 3), se justificava e em que medida a procedência dos pedidos deduzidos pelos autores.
Quanto ao primeiro pedido, pode ser agora tomado em conta o que foi dito acima: o prédio não pertencia à autora e ao autor primitivos, mas sim apenas à autora primitiva, pelo que a procedência do pedido devia ser apenas parcial.
Quanto ao segundo pedido já a situação é diferente:
A sentença tem que ser congruente com a modificação subjectiva da lide e inexistência física da 1.ª autora. A acção prossegue com os novos autores no lugar da antiga autora; logo a condenação tinha de ser na restituição aos novos autores, não à antiga autora. A sentença não pode condenar na restituição do imóvel à autora inicial que já não existe.
Daí que, num comentário crítico publicado no blog do IPPC de 12/02/2022 sob Jurisprudência 2021 (131) relativamente ao acórdão do TRL de 17/06/2021 (1004/09.3TBAGH.L3-6)] que, para além do mais, tinha dito que “se a acção não foi instaurada contra a ‘herança’ do primitivo réu, com a morte deste, essa ‘herança’ não é parte na acção e, por isso, nela não pode […] ser condenada”, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa tenha escrito, entre o mais:
“[…] O art.º 351.º, n.º 1, CPC estabelece que a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa se destina a que, para com eles, possam prosseguir os termos da demanda. Em parte alguma se estabelece que a habilitação pressupõe ou determina uma qualquer sucessão dos habilitados em qualquer titularidade do direito patrimonial em discussão na acção. Veja-se também o disposto no art.º 353.º, n.º 1, CPC: o que conta é a "qualidade de herdeiro" da parte falecida, não a qualidade de herdeiro do objecto do processo.A finalidade do regime é bem clara: na impossibilidade de a acção continuar com ou contra uma parte por falecimento desta, promove-se a intervenção dos herdeiros; mas isto destina-se a permitir que se continue a discutir o que estava em discussão na causa, não a impor que o que estava em discussão passe a ser discutido na óptica dos herdeiros habilitados e, muito menos ainda, a proibir que algo continue a ser discutido.
Para além da substituição da parte falecida, em tudo o mais a instância permanece inalterada. É isto que justifica que nada do que a parte, entretanto, falecida tenha praticado em processo se perde e que os herdeiros habilitados não possam voltar a praticar actos que a parte falecida tenha praticado. Há uma continuidade (para o futuro) da instância, agora com partes que substituem a parte falecida.É, aliás, por isso que não pode deixar de se concordar com a afirmação que consta do acórdão de que a "habilitação de herdeiros visa o prosseguimento da lide com os habilitados, e não a atribuição, àqueles, da titularidade da relação material controvertida em causa, ou seja, não determina o âmbito da responsabilidade dos herdeiros habilitados relativa ao objecto da acção".
Só que, ao contrário do que se entende no acórdão, isto não constitui uma limitação à apreciação do tribunal (traduzida, nomeadamente, na impossibilidade da procedência de certos pedidos contra os herdeiros habilitados), mas antes um pressuposto da intervenção dos herdeiros como habilitados. É precisamente porque estes herdeiros não estão em juízo como titulares da relação material controvertida que é possível continuar a discutir em processo o que nele estava em discussão e que pode ser algo que nada tenha a ver com esses herdeiros, como, por exemplo, a conduta da parte falecida.Quer dizer: a qualidade de herdeiro da parte falecida é o título que atribui legitimidade a esse herdeiro para intervir na acção em substituição daquela parte falecida. Efectivamente, a sucessão ocorre apenas quanto à posição processual da parte falecida e, portanto, num âmbito exclusivamente processual. A sucessão não ocorre, num plano substantivo, quanto ao objecto do processo, nem, muito menos, quanto a partes ou parcelas deste objecto. É precisamente por isso que tudo o que podia ser discutido e decidido antes da intervenção do herdeiro continua a poder ser discutido e decidido após essa habilitação. […][…] não havia […] fundamento para julgar alguns pedidos improcedentes com a justificação de que, com a morte do primitivo réu, não se transmitiu aos seus herdeiros a responsabilidade civil pela imputada exploração ilícita e danosa do prédio.[…] Generalizando para além do caso concreto, cabe, aliás, perguntar: se, após a aceitação da herança, os herdeiros habilitados não podem ser condenados quanto a certos pedidos formulados na acção relativos a direitos que não se extinguem com a morte da parte demandada, quem é que poderá vir a ser condenado e como é que o autor pode ver tutelado o seu interesse em juízo?”
E a sentença tem que ter em conta que a ré não podia ser considerada, para tais efeitos, como herdeira da primitiva autora.
Em suma, a sentença deve reconhecer que o direito de propriedade do imóvel pertencia à (primitiva) autora e deve condenar os réus a restituir o imóvel aos herdeiros da autora (autor marido e filho de ambos)."
16/10/2025
Jurisprudência 2025 (12)
O tribunal competente para tramitação de ação de reconhecimento de união de facto para efeito de Lei da Nacionalidade é o cível.
*3. [Comentário] Já houve oportunidade de tomar posição contra a orientação que fez vencimento no acórdão: clicar aqui.
Do acórdão consta uma afirmação com a qual se concorda totalmente: não havendo argumentos decisivos em nenhum dos sentidos possíveis, era desejável uma uniformização de jurisprudência sobre a questão da competência material para as acções de reconhecimento da união de facto para efeito de atribuição da nacionalidade. Pior que uma uniformização que sempre alguém qualificaria como discutível é realmente a incerteza que recai sobre sobre qualquer acção de reconhecimento.
MTS