"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/10/2025

Do conhecimento da ineptidão da petição inicial




[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]

Jurisprudência 2025 (16)


Restituição provisória da posse;
requisitos; impugnação


I. O sumário de RG 23/1/2025 (97/24.8T8MLG.G2) é o seguinte:

1 – O decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse depende da prova dos factos que revelem a posse dos requerentes, a violência e o esbulho e não daqueles de que depende o decretamento de providência no âmbito do procedimento cautelar comum.

2 – Na providência cautelar especificada de restituição provisória da posse a lei estabelece como regra a não audição prévia do requerido, tendo em vista o decretamento da providência, não sendo cometida qualquer nulidade quando a decisão é proferida sem audição prévia da parte contrária.

3 – Optando o requerido apenas por recorrer da decisão cautelar proferida e não impugnando a matéria de facto provada e não provada, apenas podem ser considerados os factos indiciariamente provados na decisão de 1.ª Instância e não quaisquer outros, referidos nas alegações de recurso, que poderiam ter obstado ao decretamento da providência cautelar.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

5 – O recorrente alega ainda que “o decretamento da providência é manifestamente extemporâneo na medida em que não veio impedir a realização as obras reputadas pelos requerentes, uma vez que as mesmas se encontravam já totalmente concluídas e rematadas”, invocando, mais uma vez, o regime dos art.sº 362.º e 363.º do C. P. Civil, ou seja, do procedimento cautelar comum.

Como resulta do que se escreveu já, não estamos perante procedimento cautelar comum.

Para que esta providência cautelar fosse decretada bastava que tivessem resultado provados os factos que integravam os pressupostos acima referidos: a posse dos requerentes, o esbulho e a violência.

Ou seja, o estado em que estava a obra de colocação da cancela e dos pilares – concluída ou não – sempre seria irrelevante para o desfecho da providência cautelar, desde que estivesse indiciariamente demonstrada a posse dos requerentes sobre a parcela denominada de caminho, o esbulho e a violência.

O estado da colocação dos pilares não obstava, assim, ao deferimento da providência cautelar, nem determina o seu levantamento.

6 – Reitera o recorrente a sua alegação relativa à não verificação dos pressupostos que permitem que seja decretada providência cautelar comum (seja o periculum in mora, seja a probabilidade séria da existência do direito).
Não são, como se referiu já, estes os pressupostos que tinham de verificar-se para que a providência cautelar especificada de restituição provisória da posse fosse decretada, pelo que a sua não verificação não impedia o seu indeferimento, nem determina o seu levantamento.

7 – Concretamente sobre os fundamentos da providência cautelar efetivamente decretada de restituição provisória da posse alega apenas o requerido que os requerentes, “para justificarem o esbulho e a violência”, “lançaram mão de uma queixa-crime contra o requerido, do qual, este é suspeito do facto alegado e não condenado, até prova em contrário. Deste modo, há limitação para as acusações infundadas contra o Requerido”.

Não se logra sequer perceber o raciocínio do requerido, considerando a matéria de facto que resultou indiciariamente provada e que supra se elencou nos pontos 36 a 42 e que permitiram afirmar a violência e o esbulho, nos exatos termos tão bem decididos pela 1.ª Instância:

O esbulho verifica-se quando a pessoa é privada da posse, abrangendo os atos que implicam a perda da posse contra a vontade do possuidor e que assumam proporções de tal modo significativas que impeçam a sua conservação, ficando o esbulhado impedido do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse (cf. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil», Vol. I, 3.ª reimpressão da edição de 1998, Almedina, 2010, p. 46).

Nos termos do art. 1283.º do Código Civil, «é havido como nunca perturbado ou esbulhado o que foi mantido na sua posse ou a ela foi restituído judicialmente», o que significa que a restituição provisória da posse será injustificada, por inexistência de esbulho, quando a coisa possuída tenha sido apreendida por via do cumprimento de uma ordem judicial ou no âmbito de uma ação executiva para entrega de coisa certa, bem como nos casos em que se verifique uma mera turbação da posse, isto é, quando os atos de um terceiro apenas dificultam o exercício do poder de facto sobre uma coisa, poder esse que, no entanto, se mantém na esfera do possuidor (cf. MARCO CARVALHO GONÇALVES, op. cit., p. 276).

O procedimento pode ser instaurado não só contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas também contra terceiro que esteja na posse da coisa esbulhada e tenha conhecimento do esbulho (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 37/20.3T8PTL.G1, de 01-10-2020, relator JOAQUIM BOAVIDA, disponível in www.dgsi.pt).

In casu, da factualidade sumariamente assente resulta que, em data não concretamente apurada, o requerente cravou dois pilares de pedra, um de cada lado do caminho, construiu um portão em chapa de zinco nesses pilares, fechado com uma tranca metálica e a impedir a passagem de quem quer que seja (tal como os requerentes). Mais colocou o requerido pedras e terra a bloquear o caminho em questão.

Destarte, os requerentes perderam o controlo material sobre a detenção e fruição do sobredito caminho (ou seja, perderam o seu pleno uso), concluindo-se que foram esbulhados da sua posse.
Em face do que se deixou dito, considera-se que a atuação do requerido consubstancia um ato de esbulho com características capazes de fundamentar a providência, concluindo-se, assim, pela verificação do segundo pressuposto do decretamento da providência”. (…)

A restituição provisória só tem cabimento quando o esbulho haja sido perpetrado com violência.

O conceito de violência referenciado pelos arts. 1279.º do Código Civil e 377.º do Código de Processo Civil é explicitado no art. 1261.º, n.º 1, do Código Civil, o qual define como violenta a posse adquirida através de coação física ou de coação moral nos termos do art. 255º do mesmo Código.

Conforme sustentam LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE «é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador», não relevando se o esbulho é direcionado à pessoa do esbulhado ou aos seus bens (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Almedina, 2017, pp. 47 e 94).

Não se negligencia a divergência existente entre os que apenas relevam a violência exercida contra a pessoa do esbulhado e os que relevam, de igual modo, a violência exercida sobre a coisa, contudo afigura-se que apenas o segundo entendimento se revela consentâneo com o conceito de violência plasmado no aludido art. 1261.º, n.º 1, do Código Civil, por referência ao art. 255º do mesmo Código (cf. neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 487/14.4T2STC.E2.S1, de 19-10-2016, relatora FERNANDA ISABEL PEREIRA, disponível in www.dgsi.pt).

Até porque, conforme entendimento propugnado pelo Supremo Tribunal de Justiça, «A interpretação mais restritiva seria redutora e deixaria sem tutela cautelar o possuidor privado da sua posse por outrem que, na sua ausência e sem o seu consentimento, atuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa.» (ibidem).

Neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães quando entendeu que «não pode afastar-se liminarmente a relevância da ação do esbulhador sobre a coisa, havendo que analisar, em concreto, em que medida a violência exercida afeta a relação do possuidor com essa mesma coisa, adiantando-se que a caracterização como esbulho violento, para efeitos do disposto no art. 1279º do CC, não se limita ao uso da força física contra as pessoas, sendo ainda de considerar violento o esbulho quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios ou à natureza dos meios usados pelo esbulhador e, por isso, há-de considerar-se privado da posse, em virtude de ação violenta dos esbulhadores, exercida sobre a coisa.» (cf. processo n.º2722/20.0T8BCL.G1, de 13-07-2021, relator JOSÉ CRAVO, disponível in www.dgsi.pt).

Todavia, no respeitante à violência sobre as coisas, enquanto uma posição mais lata apenas exige uma atuação sobre a coisa esbulhada desde que impeça a continuação da posse por parte do esbulhado, outra mais restrita impõe que a atuação sobre a coisa esbulhada seja apta, ainda que indiretamente, a constranger ou intimidar a pessoa do esbulhado (veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 99/17.0T8AMR.G1, de 14-09-2017, relator ESPINHEIRA BALTAR, disponível in www.dgsi.pt).

O colendo Supremo Tribunal de Justiça, no enunciado acórdão de 19-10-2016, sufragou a posição mais abrangente, sustentando que a «violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Basta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da posse como até então a exercia» (no mesmo sentido, acórdãos dos Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 69/11.2TBGMR-B.G1, de 03-11-2011, relator ANTÓNIO SOBRINHO, Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 1880/13.5TBSTS.P1, de 18-10-2013, relator CARLOS QUERIDO, Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 89/14.5TBBNV.L1-7, de 23-09-2014, relator DINA MONTEIRO, Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 99/17.0T8AMR.G1, de 14-09-2017, relator ESPINHEIRA BALTAR, todos disponíveis in www.dgsi.pt).

Sendo certo que não é possível enunciar um conceito preciso de violência, haverá que ponderar, em cada caso concreto, as circunstâncias em que o esbulho foi praticado, isto é, se o esbulhado se viu impedido contra a sua vontade e em consequência de um comportamento que lhe é alheio do exercício da posse ou do direito como até então.

Destarte, afigura-se que para a verificação da violência do esbulho é suficiente que o ato seja dirigido à coisa esbulhada e seja de molde a impedir a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de obstáculos à sua utilização pelo possuidor, sendo este constrangido a suportar esta situação contra a sua vontade (como sucederá nos seguintes exemplos jurisprudenciais: substituição de fechaduras, colocação de cadeados, vedação de prédio com arame e colocação de cadeado num portão, vedação com estacas de madeira e rede com uma altura de 1,50 metro). (…)

No caso sub judice, não se suscitam dívidas que a violência exercida pelo requerido é relevante para efeitos da restituição provisória da posse, pois que se conclui pela constituição de obstáculos físicos, a cancela, as pedras e a terra, e que inviabilizam a passagem pelo traço de terreno em relevo.

A imprevisibilidade desta atuação e os meios utilizados não podem ter outro significado que não um intuito patente do requerido em intimidar os requerentes, de forma a impossibilitá-los de usar e fruir do imóvel em toda a sua plenitude. Conclui-se, assim, pela verificação do terceiro pressuposto”.

Ou seja, perante a matéria de facto que foi considerada indiciariamente provada, sem que aqui tenha sido colocada em causa, não restam quaisquer dúvidas que se se verificavam os pressupostos substantivos que permitiam que fosse decretada a providência cautelar de restituição provisória da posse, fossem os dois aqui contestados, do esbulho e da violência, fosse a posse dos requerentes, com animus do exercício do direito de servidão que, em rigor, não foi contestada pelo recorrente."

[MTS]


21/10/2025

Jurisprudência 2025 (15)


Protecção jurídica;
deferimento tácito; revogação

1. O sumário de RC 14/1/2025 (2491/23.2T8ACB-B.C1) é o seguinte:

No domínio da proteção jurídica, e em abono da verdade e da justiça material, a decisão tacita oriunda do mero decurso do tempo – artº 25º nº 2 da Lei 34/2004, de 29.07, - pode ser revogada, expressa ou implicitamente, por ulterior decisão adrede proferida, nos termos do artºs 167º nº 2 al. b) do CPA aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07.1. e do artº 10º nº 1 als. a) e b) Lei 34/2004, aplicáveis a acervo factual análogo.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6.1.

O direito à proteção jurídica implica para o interessado o ónus de demonstrar estar em situação de insuficiência económica. – artº 7º da Lei 34/2004, de 29 de Julho.

Entendendo-se que está nesta situação se não tem condições objetivas para suportar pontualmente os custos de um processo – artº 8º.

Transferido para os Serviços da Segurança social, ao processo de petição, apreciação e concessão do beneficio do apoio judiciário, aplica-se, na sua tramitação, designadamente no que tange à formação e revogação do atos, o regime do CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07 de Janeiro.

Está aqui em causa a formação e revogação do chamado ato tácito.

Este ato apenas pode ser formado se existir lei que expressamente o permita.

No caso vertente ela existe.

É o artigo 25º da referida Lei 34/2004, o qual estatui:

«1 - O prazo para a conclusão do procedimento administrativo e decisão sobre o pedido de protecção jurídica é de 30 dias, é contínuo, não se suspende durante as férias judiciais e, se terminar em dia em que os serviços da segurança social estejam encerrados, transfere-se o seu termo para o 1.º dia útil seguinte.
 
2 - Decorrido o prazo referido no número anterior sem que tenha sido proferida uma decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de protecção jurídica.»

O deferimento de uma pretensão com base num ato tácito assenta apenas numa vontade presumida da administração, adveniente, v.g., e no que ora interessa, do decurso de um certo lapso temporal.

Tal presunção pode, assim, assentar mais numa ficção formal do que numa realidade substantiva.

Sendo que, obviamente, e em abono da verdade e da justiça, é esta última realidade a necessária à fundamentação do direito concedido.

O que pode não acontecer com o deferimento tácito; basta pensar que ele derive de uma inação forçada da administração, v.g. oriunda de insuficiência de meios para decidir, atempadamente, as pretensões que lhe são submetidas.

Na verdade:

«O acto tácito de deferimento constitui uma manifestação de vontade presumida e, porque assim é, a prolação de acto expresso em sentido contrário ao da vontade presumida faz com deixe de fazer sentido falar-se em vontade presumida e, portanto, em acto tácito.» - Ac STA de 09.10.2002, p. 047598 in dgsi.pt. como os infra cits.

Nesta conformidade:

«O deferimento tácito do apoio judiciário não se sobrepõe ao indeferimento expresso subsequente, constante de decisão proferida pela entidade competente e que não foi objecto de impugnação.» - Ac. RP de 18.10.2012, p. 6672/10.0YYPRT-A.P1.

Daqui decorre que, se em relação aos atos expressos, a sua revogação ou anulação é possível de efetivar pela administração, em relação aos atos tácitos tal poder, por maioria de razão – argumento a fortiori – pode/deve emergir com maior acuidade e pertinência.

A revogação constitui a válvula de escape do sistema.

Sendo que, assim, ela convoca:

«uma ponderação sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade, quando esteja em causa um ato tácito constitutivo de direitos tal não haverá de ser diferente, sendo tal princípio chamado a encontrar o correto equilíbrio de interesses quando esteja em causa desfazer um direito que só se formou pela conjugação da inércia da Administração com o efeito da lei.» - Angela Lucas: in O REGIME DA REVOGAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO E A INDEMNIZAÇÃO DO BENEFICIÁRIO DE BOA-FÉ in https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/43063/1/203381700.pdf. [...].

Porém, o poder revogatório da administração não é discricionário e ilimitado, estando sujeito a limites e condições.

Assim:

Artigo 167.º do DL n.º 4/2015:

Condicionalismos aplicáveis à revogação

1 - Os atos administrativos não podem ser revogados quando a sua irrevogabilidade resulte de vinculação legal ou quando deles resultem, para a Administração, obrigações legais ou direitos irrenunciáveis.

2 - Os atos constitutivos de direitos só podem ser revogados:

a) Na parte em que sejam desfavoráveis aos interesses dos beneficiários;

b) Quando todos os beneficiários manifestem a sua concordância e não estejam em causa direitos indisponíveis;

c) Com fundamento na superveniência de conhecimentos técnicos e científicos ou em alteração objetiva das circunstâncias de facto, em face das quais, num ou noutro caso, não poderiam ter sido praticados;

d) Com fundamento em reserva de revogação, na medida em que o quadro normativo aplicável consinta a precarização do ato em causa e se verifique o circunstancialismo específico previsto na própria cláusula.

Por outro lado, estatui o artº 10º da Lei 34/2004:

Cancelamento da protecção jurídica

1 - A protecção jurídica é cancelada, quer na sua totalidade quer relativamente a alguma das suas modalidades:

a) Se o requerente ou o respectivo agregado familiar adquirirem meios suficientes para poder dispensá-la;

b) Quando se prove por novos documentos a insubsistência das razões pelas quais foi concedida;

c) Se os documentos que serviram de base à concessão forem declarados falsos por decisão com trânsito em julgado;

Havendo ainda que atentar no disposto no artº 23.º da mesma Lei, a saber:

Audiência prévia

1 - A audiência prévia do requerente de protecção jurídica tem obrigatoriamente lugar, por escrito, nos casos em que está proposta uma decisão de indeferimento, total ou parcial, do pedido formulado, nos termos do Código do Procedimento Administrativo.

2 - Se o requerente de protecção jurídica, devidamente notificado para efeitos de audiência prévia, não se pronunciar no prazo que lhe for concedido, a proposta de decisão converte-se em decisão definitiva, não havendo lugar a nova notificação.»

Finalmente, urge ter presente que a decisão final sobre o pedido de proteção jurídica, máxime a decisão expressa, só pode ser atacada via impugnação judicial – artº 26º e 27 da aludida Lei 34/2004.

6.2.

In casu.

Não tendo sido proferida decisão no prazo de trinta dias, formou-se, numa visão formal estrita, um ato tácito de deferimento pelo mero decurso do tempo.

Porém, desde logo há que perspetivar que, ao que parece, ainda dentro de tal prazo, a SS formulou um juízo negativo de improcedência do pedido de apoio judiciário.

Tanto assim que, apesar de já depois do prazo decorrido, ou seja, em 22.04.2024, notificou a requerente para uma audiência prévia, nos termos do artº 23º sup. cit.

A requerente faltou, pelo que a SS converteu a sua proposta de indeferimento em indeferimento definitivo.

Existiu, pois, uma decisão expressa de indeferimento.

Esta decisão constitui uma revogação implícita do deferimento tácito apenas decorrente do decurso do tempo.

E tal revogação é possível porque dos aludidos artºs 167º nº 2 al. c) e 10º nº 1 als. a) e b).

Pois que se, perante eles, ela é admissível no caso de se provarem novos elementos factuais que contrariem os anteriores, também o deve ser, por igualdade ou maioria de razão – argumento a fortiori - , nos casos, como o presente, em que, no entender dos serviços da SS, a insuficiência económica nunca foi, ao menos suficientemente, provada.

Aliás, mesmo que a decisão revogatória fosse ilegal, há quem entenda que ela, desde que não impugnada, relevaria no sentido da infirmação da decisão tácita - cfr. Ac. RP de 27.03.2008, p. 0831359.

Assim, e bem vistas as coisas, o deferimento tácito apenas existiu formalmente, pelo decurso do tempo, sendo que, na realidade, nunca existiu, pois que, como se viu, a administração nunca esteve convencida da insuficiência económica da requerente.

Tanto assim que a convidou para a audiência prévia.

Na qual, ela poderia melhor explicitar e fundamentar a sua pretensão.

Não tendo comparecido na audiência, a requerente postergou o seu dever de colaboração e o seu ónus de provar e convencer sobre a sua insuficiência económica.

E, aqui também ao menos tacitamente, aceitou uma possível decisão desfavorável.

Ademais, notificada desta decisão, a recorrente com ela se conformou, não a impugnando judicialmente.

Destarte, esta decisão ulterior deve, em abono da verdade material e da realização da justiça, relevar e sobrepor-se ao deferimento tácito oriundo do mero decurso do tempo.

Improcede o recurso."

[MTS]

20/10/2025

A verificação do passivo no processo de insolvência: aspectos gerais



[Para aceder ao texto clicar em M. Teixeira de Sousa]

Jurisprudência 2025 (14)


Contrato de arrendamento;
concurso público; competência material


1. O sumário de RC 14/1/2025 (1490/23.9T8GRD.C1) é o seguinte

Quando uma autarquia local arrenda bens do seu domínio privado e estabelece, para o efeito, um procedimento pré-contratual com vista a encontrar o arrendatário, assegurando entre os potenciais interessados uma «concorrência efetiva» através de hasta pública, a competência para decidir sobre questões relativas ao arrendamento pertence aos tribunais administrativos, por força do disposto que na al. e), do n.º 1, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Vejamos [...] se o Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda é competente em razão da matéria julgar a ação ou, ao invés, é competente para o efeito o Tribunal Administrativo.

1 - O tribunal recorrido fundamentou a decisão nestes termos:

«No caso concreto em apreciação, não há dúvidas que está em causa a apreciação de uma relação jurídica existente entre a Autora, na qualidade de autarquia local (cf. Artigos 235º e 236º, nº 1, da CRP) e a Ré, Associação de natureza privada, sem fins lucrativos, sendo o primeiro um ente público administrativo e a segunda uma entidade de direito privado.

Por sua vez, a causa de pedir que o Autor invoca para obter a sua pretensão, ao que se entende, diz respeito a uma relação contratual de natureza administrativa, como se apreciará.

Com efeito, no caso concreto, o Autor não se limitou a celebrar com a Ré um simples contrato de arrendamento, mas antes, este contrato de arrendamento foi celebrado após concurso público, consubstanciando apenas a forma legal de arrendamento de um espaço, de alegada propriedade da Ré, sobre o qual se vai estabelecer para futuro uma relação jurídica administrativa.

Efectivamente, a própria celebração do contrato de arrendamento do imóvel depende de normas de direito público, tendo sido precedido de escolha do arrendatário por procedimento administrativo de hasta pública, celebrado em 4 de Maio de 2009, entre o autor e a ré, na sequência de concurso lançado pelo Autor naquele ano.

Deste modo entende-se - mantendo todo o respeito por entendimento diverso – que ficou estabelecida entre o Autor e a Ré uma relação jurídica de direito administrativo, pois, no domínio das suas competências e dentro das suas atribuições o Autor promoveu o arrendamento à Ré de um espaço de propriedade pública, com o intuito de, por essa via e através do ente privado, concretizar a prossecução de interesse público que lhe é atribuída por lei, tendo essa cedência de espaço (arrendamento) ocorrido, tendo sido precedido de escolha do arrendatário por procedimento administrativo de hasta pública, na sequência de concurso lançado pelo Autor naquele ano.

Tendo em conta a causa de pedir correspondente aos pedidos formulados pelo Autor é incontornável a análise da mesma de acordo com as regras e procedimentos emanados pela Autarquia, tratando-se, de acordo com qualquer dos critérios acima apontados, de actos de gestão pública, devendo a sua validade ser apreciada à luz de legislação de natureza administrativa.

Com efeito, a celebração de um contrato de arrendamento configura apenas um meio de disposição do direito de propriedade sobre um imóvel, contudo o objecto do litígio reside não só no alegado incumprimento do mesmo por parte da Ré mas igualmente e a montante na própria resolução do contrato celebrado, discutindo-se ainda a propriedade do imóvel, pelo que a análise dos pedidos deduzidos pelo A., face à impugnação da Ré, pressupõe sempre a apreciação de tal contrato, tendo assim que se apreciar a eventual inobservância das normas de direito público vigentes e criadas com o objetivo de cumprir escopos públicos, especificamente normas relativas aos pressupostos legais de validade de tais contratos (nomeadamente a Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro - lei esta que estabelece o REGIME JURÍDICO DAS AUTARQUIAS LOCAIS).»

– A competência material do tribunal determina-se face ao pedido e à causa de pedir exarados na petição inicial, acima já mencionados.

Vejamos então.

(a) O n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de fevereiro) dispõe que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

E no artigo 4.º concretizam-se os casos de competência material, isolando-se agora apenas a sua al. e), por ser aquela que se afigura pertinente para o caso dos autos:

«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (…); e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público; …»

(b) O Município pede, no confronto com a Associação ré, que se declare «a) Ser a Ré condenada a reconhecer que o autor é legítimo dono e possuidor do prédio urbano identificada no artigo 1º desta p.i.; b) Ser a Ré condenada a reconhecer que assiste ao Autor o direito de resolver o contrato de arrendamento, bem como, a despejar o espaço arrendado identificada no artigo 1º e no prazo que a sentença vier a fixar, deixando-o livre, desocupado de pessoas e bens e no estado de conservação em que o recebeu; c) Ser a Ré condenada a pagar ao Autor as rendas vencidas até à presente data (…)  e ainda as vincendas, acrescidas de juros legais …»

O Autor exercita aqui o seu direito de proprietário e de senhorio perante a Ré com vista a obter tutela judicial relativamente a um contrato de arrendamento que celebrou com a Ré.

Quanto ao direito de propriedade, verifica-se que o mesmo não resulta de uma relação administrativa, pois não existe qualquer relação administrativa entre as partes na génese da constituição do direito de propriedade.

Porém, é invocado como pressuposto lógico da relação de arrendamento e, por conseguinte, não tem autonomia, ou seja, a questão principal é a que respeita ao arrendamento.

Quanto ao contrato de arrendamento em si mesmo, verifica-se que é um contrato de arrendamento cujo conteúdo material está previsto no Código Civil (salvo o disposto no artigo 126.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto (Regime Jurídico do Património Imobiliário Público – RJPIP).

De salientar que a relação de arrendamento está excluída do âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos (CCP) – DL n.º 18/2008, de 29 de janeiro –, o qual submete ao regime da contratação pública alguns contratos que, não fora esta previsão legislativa estariam subtraídos a esta jurisdição [Veja-se o caso analisado no Acórdão do S.T.J., uniformizador de jurisprudência, de 26-04-2022, proferido no processo 51012/18.6YIPRT-A.P1.S1-A (relatado pelo Sr. Cons. António Barateiro Martins), nos termos do qual: «Compete à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios emergentes de contrato de mandato forense celebrado entre um advogado e um contraente público.»

Ponderou-se neste aresto que o regime da contratação pública estabelecido na parte II do Código dos Contratos Públicos se aplicava ao contrato de mandato forense celebrado entre um advogado e um contraente público e daí a competência atribuída à jurisdição administrativa]

É o que resulta do teor da al. c), do n.º 2, do artigo 4.º do CCP:

«(…) 2 - O presente Código não é igualmente aplicável a: (…); c) Contratos de compra e venda, de doação, de permuta e de arrendamento de bens imóveis ou contratos similares;»

Esta exclusão respeita ao tipo ou conteúdo material do contrato, deixando incólume a fase pré-contratual.

Verifica-se que o contrato de arrendamento aqui em questão foi antecedido de um procedimento administrativo de hasta pública e este procedimento pré-contratual insere o caso na previsão da al. e), do n.º 1, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais:

«1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: […]. e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público; […]»

Continuando.

A Lei n.º 73/2013, de 03 de setembro, a qual estabelece o Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais, não contém normas sobre o arrendamento de bens privados das autarquias; outro tanto ocorre com a Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, sobre o Regime Jurídico das Autarquias Locais.

Porém, o procedimento da hasta pública, adotado no caso dos autos para encontrar o arrendatário, está de acordo com o procedimento de hasta pública previsto no artigo 60.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto (Regime Jurídico do Património Imobiliário Público – RJPIP), onde se prescreve, relativamente ao «Arrendamento de imóveis do Estado», que «O arrendamento é realizado preferencialmente por hasta pública ou…»

É certo que o Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto, não se refere expressamente ao modo como a gestão dos bens imóveis do domínio privado das autarquias deve ser feita, designadamente em matéria de arrendamento, mas as autarquias terão de respeitar as disposições legais deste diploma sobre a gestão patrimonial imobiliária do Estado, designadamente as estabelecidas nos seus artigos 2.º a 12.º.

Com efeito, o n.º 1 do artigo 1.º do RJPIP diz que «O presente decreto-lei estabelece: a) As disposições gerais e comuns sobre a gestão dos bens imóveis dos domínios públicos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais; b) O regime jurídico da gestão dos bens imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos públicos» (sublinhado nosso).

Por sua vez, o artigo 2.º dispõe que «As entidades abrangidas pelo presente decreto-lei devem observar os princípios gerais da atividade administrativa, designadamente os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé» e o artigo 7.º complementa, determinando que «As entidades abrangidas pelo presente decreto-lei devem, na gestão dos bens imóveis, assegurar aos interessados em contratar ou em os utilizar uma concorrência efetiva.»

Por conseguinte, as autarquias quando arrendam bens do seu domínio privado devem fazê-lo nos termos referidos neste artigo 7.º (por força da al. a) do n.º 1, do artigo 1.º), ou seja, assegurando uma «concorrência efetiva», o que foi feito pelo município Autor, através da referida hasta pública prevista no artigo 60.º do RJPIP, acima já referido, para os arrendamentos de imóveis do Estado.

Verifica-se, por conseguinte, que o contrato de arredamento objeto destes autos foi precedido de um procedimento pré-contatual de hasta pública regulado por leis de natureza administrativa.

É este procedimento pré-contratual que subsume o caso dos autos, como já se disse, na previsão da al. e), do n.º 1, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais («… execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público»).

Ora, quando assim é, como sustenta Mário Aroso de Almeida, para efeitos de atribuição de jurisdição, «A previsão da alínea e) do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF possui, contudo, um alcance mais amplo, pois, como foi dito, atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta a regras de contratação pública, independentemente da questão de saber se a “prestação do co-contraente pode condicionar ou substituir, de forma relevante, a  realização das atribuições do contraente público”.

O critério não é, aqui, na verdade, o do contrato administrativo, mas o do contrato submetido a regras de contratação pública: desde que um contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir devem ser objecto de uma acção a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais - e isto, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo, nos termos do CCP.» - Manual de Processo Administrativo, 3.ª ed., Almedina, 2017, pág. 169.

No mesmo sentido Jorge Pação, a respeito da mesma norma do ETAF:

«(…) a sujeição a normas de direito público como critério de delimitação da competência material contratual inclui como critério autónomo a submissão a normas pré-contratuais, isto é, bastará que o procedimento pré-contratual seja regulado por normas de direito público para que a competência da jurisdição administrativa deva ser reconhecida, não apenas para a resolução dos litígios sobre a validade dos atos pré-contratuais, mas também quanto aos que incidem sobre a interpretação, validade e execução dos contratos. Importa, tão-somente, a natureza do procedimento pré-contratual, pelo que, quando ela seja pública – por decorrente da submissão “a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo” -, cabe aos tribunais administrativos a apreciação dos litígios, mesmo que relativos a contratos de direito privado da administração.

É, pois, esta a interpretação que deve prevalecer da expressão legal “nos termos da legislação sobre contratação pública”, sendo de rejeitar uma visão que a reduza à parte II do Código os Contratos Públicos. Os contratos sobre bens do domínio privado, ainda que não estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do Código os Contratos Públicos (artigo 4.º, n.º 2, alínea c), do CCP), não deixam de ser celebrados na sequência de procedimentos pré-contratuais regulados por normas de direito administrativo constantes do regime jurídico do património imobiliário público, que visam garantir a prossecução finalidades públicas relevantes, tais como a publicidade e concorrência dessa contratação. Trata-se de uma contratação que não deixa de ser pública, devidamente regulada por normas de direito público, ainda que não abrangida pela principal fonte normativa de regras jurídicas nessa matéria» - Contencioso dos Bens Públicos, in Contencioso Administrativo Especial, AAFDL Editora, 2021, pág. 154.

Concluindo, quando uma autarquia local arrenda bens do seu domínio privado e estabelece, para o efeito, um procedimento pré-contratual com vista a encontrar o arrendatário, assegurando entre os potenciais interessados uma «concorrência efetiva» através de hasta pública, a competência para decidir sobre questões relativas ao arrendamento é dos tribunais administrativos, por força do disposto que na al. e), do n.º 1, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais."

[MTS]


17/10/2025

Jurisprudência estrangeira (40)


Juiz;
garantias de imparcialidade

O sumário de OLG Brandenburg 2/7/2025 (1 W 31/25) é o seguinte

Um juiz que, com base em considerações jurídicas, aponte dúvidas quanto à fundamentação da ação e proponha um processo de conciliação entre as partes não pode, por esse motivo, ser recusado por suspeita de parcialidade.

 

Jurisprudência 2025 (13)


Habilitação de sucessores;
posição dos sucessores; objecto do processo


1. O sumário de RL 16/1/2025 (2292/23.8T8FNC.L1-2) é o seguinte:

I – Falecido um autor, devem ser habilitados todos os seus sucessores (art.º 351/1 do CPC), excepto, logicamente, aquele que for réu nessa acção; pelo que, se houver mais do que um sucessor para além do réu, não se pode verificar a confusão que daria origem à extinção do processo por impossibilidade superveniente da lide.

II – Em alternativa à habilitação de todos os sucessores, se o requerente da habilitação não soubesse quem eram todos eles ou não soubesse quem é que tinha aceite a herança, podia requerer a habilitação da herança jacente (art.º 355/4 do CPC), o que não foi o caso dos autos.

III – Se, por erro, tiver sido habilitado como autor também o réu, tal também não implicará a impossibilidade da lide, mas a desconsideração como autor daquele que for réu.

IV – Depois da habilitação, a acção continua a ter o mesmo objecto, mas sujeitos diferentes, pelo que, sendo a acção uma reivindicação, a condenação do réu a restituir o bem deve ser aos herdeiros colocados no lugar do autor falecido (já que, logica e naturalmente, ele não podia restituir o bem ao autor falecido).

V – A consideração do óbito do autor não é a consideração de um facto que o juiz não podia conhecer, nem a consequência referida em IV corresponde à condenação em objecto diverso do pedido.

VI – Já a consideração do óbito do primitivo autor para efeitos de declarar que o imóvel é actualmente da sua herança (ou melhor, dos seus herdeiros) corresponde a alterar o objecto inicial do processo, o que faz a sentença incorrer em nulidade, o que tem de ser suprido pelo tribunal de recurso.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A autora faleceu no decurso da acção.

O falecimento de uma autora, quando não torne impossível ou inútil a continuação da lide (art.º 269/3 do CPC) – como geralmente  não torna nas acções que têm por objecto direitos patrimoniais como é o caso – implica a suspensão da instância (artigos 269/1a e 270/1 do CPC) com efeitos retroactivos à data do falecimento, até que sejam habilitados os sucessores da pessoa falecida (art.º 276/1a do CPC), para com eles se prosseguirem os termos da demanda (art.º 351 do CPC – esta habilitação serve pois para este fim), sucessores que se substituem à pessoa falecida, passando a ser autores (art.º 262/a do CPC).

Há apenas uma modificação subjectiva da instância, permanecendo o seu objecto o mesmo que era inicialmente, pelo que os factos que estão em julgamento são os mesmos e são eles que vão ser dados como provados ou não. Os novos autores têm que aceitar a lide como ela se encontra e o que se vai discutir no processo é a pretensão do autor inicial, julgada à luz do momento em que foram alegados os factos que lhe servem de base.

Neste sentido, a nota 2 (b) da nota prévia aos artigos 351 a 357 do CPC online, 2024/11, de Miguel Teixeira de Sousa, pág. 272: “A habilitação destina-se a permitir a substituição de uma parte falecida pelos seus sucessores, não a transferir, a título sucessório, o objecto do processo para os sucessores. Há apenas a substituição de uma parte falecida por uma outra parte, pelo que, em tudo o mais (nomeadamente, quanto ao objecto), a instância permanece a mesma (equivocados RL 17/6/2021 (1004/09); RL 21/6/2021 (709/19)).

Os sucessores (num sentido amplo, que engloba os sucessíveis e os legatários [assim nota 4 (a) e (c) ao artigo 351 do CPC online, 2044/11, de MTS, pág. 275: “No presente contexto, a expressão “sucessores” utilizada no n.º 1 abrange não apenas aqueles que tenham aceitado a herança, mas também os sucessíveis que ainda a não tenham aceitado, nem repudiado. A contraposição entre o disposto no art.º 353.º e o estabelecido no art.º 354.º demonstra que a qualidade de sucessor pode ainda não estar determinada]) que têm de ser habilitados são todos os que o forem, excepto aqueles que, por serem réus, não podem ser habilitados como autores por impossibilidade lógica (uma pessoa não pode ser simultaneamente réu e autor; assim, um réu não pode / não deve ser habilitado no lugar de um autor).

Neste sentido, o antigo acórdão do STJ de 02/06/1964, BMJ 138, pág. 298, citado por, e na síntese de, Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 1, pág. 694]: “falecida a autora de acção intentada contra 2 dos seus filhos, não podem ser habilitados para, em seu lugar, ocuparem a posição de autores, os seus filhos que nela figuram como réus, mas apenas os restantes. Baseou-se a decisão em que a habilitação incidental respeita tão só à transmissão da posição jurídica litigiosa, a qual não tem que coincidir com a transmissão universal dos direitos do falecido, a que respeita a acção autónoma de habilitação.”

No mesmo sentido, os acórdãos do TRL:

de 02/11/2010, proc. 90/08.8TBSCG-A.L1-1: “[…] Ocupando um requerido de incidente de habilitação o lugar de réu na acção principal, não pode ele, através da habilitação, passar a ocupar o lugar da falecida quando esta era a autora da referida acção principal.”

e de 21/09/2017, proc. 2467/13.8TBCSC.L1-8: “Falecendo o autor da acção em que é ré a sua mãe, a habilitação desta para com ela prosseguir a causa não é possível, já que passaria a ser simultaneamente autora e ré na mesma acção. Mas nada impede a habilitação do pai, a título incidental, para substituir o falecido na posição activa do litígio.” Acórdão este que, por isso mesmo, julgou procedente a apelação, revogando o despacho recorrido na parte em que declarou extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide.

Logicamente que, se no momento em que a habilitação for requerida, já estiver determinado um único sucessor na relação substantiva em litígio (art.º 262/a do CPC), é só esse sucessor que deve ser habilitado. Mas não é esse o caso dos autos.

Não estando ainda determinados os sucessores, ou não sabendo os requerentes da habilitação se todos os determinados já a aceitaram (art.º 2046 do CC), pode ser requerida a habilitação da herança jacente em vez dos sucessores (art.º 355/4 do CPC). Mas é uma opção dada pela lei, não uma obrigatoriedade. E não foi ela a opção seguida pelo autor requerente da habilitação. Nem por isso podia ser esse o sentido da sentença de habilitação, ao contrário do que o autor pretende.

Neste sentido Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. I, págs. 701-702: “Sendo atribuída à herança jacente (art.º 2046 do CC) personalidade judiciária (art.º 12-a), é também admitida a respectiva habilitação, como sucessora, até que ocorra a aceitação da herança por herdeiros determinados (art.º 2050 do CC).” Tem-se em conta  que o requerente da habilitação não tem o ónus de alegar a provar a inexistência de quaisquer outros sucessores, mas apenas dos que lhe são conhecidos, nem tem de alegar a aceitação ou o não repúdio [ver nota 2 (a) ao art.º 354 do CPC online de MTS, págs. 279-280, com indicação de vária jurisprudência nesse sentido.]

Se, por não terem sido observadas as regras que antecedem, tiverem sido habilitados todos os sucessores, incluindo réus, a solução que tem sido acolhida, não é a da impossibilidade da lide, mas sim a da irrelevância da posição do réu que seja simultaneamente autor. Só assim não acontece quando só há um sucessor do autor que é o réu, em que se defende a verificação da confusão.

Neste sentido, por exemplo, o ac. do TRE de 02/03/2023 (594/17.1T8ALR.E1) com o seguinte sumário:

“[…] A decisão que habilita a ré do lado activo, do ponto de vista substantivo fá-lo apenas como representante da herança indivisa por morte de seu pai. Logo, não há confusão (subjectiva) de direitos e obrigações na sua pessoa, porque na mesma pessoa não se reúnem as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, como previsto no artigo 868 do CC. […] Embora do ponto de vista processual a habilitação da ré a coloque numa aparente contradição de posições processuais, há que atender ao facto de haver na acção uma co-demandante cujo interesse na acção se mantém intocável. Não pode essa demandante ver-se privada de deduzir e defender os direitos que relativamente ao imóvel, lhe possam porventura assistir.

Atendendo à sempre que possível prevalência do fundo sobre a forma que decorre da filosofia do CPC (cf. preâmbulo ao DL 329-A/95, de 12/12), importará questionar se, do ponto de vista substantivo, se gerou uma situação de impossibilidade superveniente da lide que deva conduzir à extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277/-e do CPC. Não há impossibilidade ou inutilidade da lide quando a acção continua a ter interesse para uma co-demandante, por ser ainda possível satisfazer-se à pretensão que esta quer fazer valer no processo. Daí que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes.”

E no texto do acórdão:

“Daí que a jurisprudência venha a afirmar que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes – nesse sentido o acórdão do STJ de 17/11/2021, proc. 391/17.4T8GMR.G1.S1.”

No mesmo sentido, o ac. do TRG recorrido objecto daquele acórdão do STJ [o 391/17…] diz:

“… embora irrelevante face à subsistência do interesse autónomo da autora, nem sequer se pode falar que o interesse do primitivo autor se extinguiu, pois o que se verificou foi a sucessão no respectivo interesse na estrita medida deste. Sejam 2 ou 20 os herdeiros, subiste a pertinência da questão da prestação de contas: em conformidade com o disposto no artigo 2093/1 do CC, o cabeça-de-casal está obrigado a prestar contas. Se na pendência da administração dos bens pelo cabeça-de-casal falecer um ou vários herdeiros, desde que a totalidade dos interesses administrados não se reúnam subjectivamente numa única pessoa, o cabeça-de-casal continua obrigado a prestar contas perante o herdeiro não administrador”.]

No mesmo sentido, veja-se o comentário de Miguel Teixeira de Sousa àquele acórdão do TRE, publicado a 09/11/2023 no blog do IPPC, sob Jurisprudência 2023 (47):

“Compreende-se a solução, embora a mesma implique que a herança indivisa que resulta da morte do co-autor passe a ser representada pela co-autora e pela ré.
 
A circunstância de haver mais do que um representante nunca exclui que possam existir discordâncias entre os representantes quanto ao modo de prosseguir os interesses do representado. Isso é ainda mais provável quando um dos representantes é simultaneamente ré na acção.

Assim, embora nada haja a objectar a que a acção continue depois do falecimento do co-autor, talvez se deva entender que a ré se encontra, natura rerum, impossibilitada de assumir quaisquer poderes de representação da herança indivisa agora co-demandante. O princípio da dualidade das partes e o que talvez possa ser designado como a proibição do "processo consigo mesmo" justificam esta solução.”

Contra, defendendo implicitamente a impossibilidade superveniente da lide, veja-se o ac. do TRL de 21/06/2021, 709/19.5T8LSB-A.L1-6: I– A obrigação de prestar contas tem carácter patrimonial e por isso é susceptível de transmissão para os herdeiros do cabeça-de-casal. II– Sendo herdeiros da falecida cabeça-de-casal ré na acção de prestação de contas a própria autora e os dois requeridos no incidente de habilitação de sucessores da ré, não poderia a autora ser habilitada como sucessora por se verificar a figura jurídica da “confusão” e nem podem os requeridos ser habilitados desacompanhados da autora, pois são os três, em conjunto, os sucessores dessa obrigação de prestar conta.

Mas veja-se o comentário crítico a este acórdão do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, publicado em 23/02/2022 no blog do IPPC, sob Jurisprudência 2021 (139):

“[…] Salvo o devido respeito, a posição desses herdeiros não deve ser vista como a de herdeiros da obrigação que constitui objecto do processo, nomeadamente, da obrigação de prestar contas. Seria estranho que, com base numa posição que não se transmite - que é a de cabeça-de-casal -, alguém pudesse adquirir, por sucessão, uma obrigação que é própria de uma posição intransmissível. Como é que se pode justificar que quem não é cabeça-de-casal suceda numa obrigação que é inerente a essa qualidade?

No entanto, apesar da não transmissibilidade da obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal, é claro que uma acção de prestação pode ser continuada pelos herdeiros daquela parte. Mas isso sucede, não porque os habilitados sejam herdeiros da obrigação dessa prestação, mas antes porque são herdeiros de quem tinha essa obrigação. Isto é: o título de herdeiro atribui a alguém legitimidade para se substituir à parte falecida (título legitimante), sem que esteja em causa a sucessão na obrigação que é apreciada na acção (título sucessório).

A habilitação destina-se a permitir a substituição de uma parte falecida pelos seus herdeiros, não a transferir, a título sucessório, o objecto do processo para os herdeiros. Há apenas a substituição de uma parte falecida por uma outra parte. Em tudo o mais (nomeadamente, quanto ao objecto), a instância permanece a mesma.

Em conclusão: a razão não está nem com quem entende que, porque a obrigação de prestação de contas é intransmissível, a acção de prestação tem de se extinguir com a morte do cabeça-de-casal, nem com quem defende que, para que a acção de prestação possa continuar contra os herdeiros do cabeça-de-casal, é necessário pressupor que estes são herdeiros da obrigação de prestação.”

Pelo que, uma acção de reivindicação em que, no lugar de uma autora falecida, foram habilitados os seus herdeiros, sendo procedente, importará a condenação dos réus a restituírem o imóvel nos termos pedidos na PI, mas aos novos autores enquanto sucessores da primitiva autora, não também ao réu que foi também habilitado como tal.

*

De tudo o que antecede resulta que a ré tem razão parcialmente.

A sentença recorrida tinha apenas que ver, à luz dos factos alegados e provados na PI, se os autores eram ou não proprietários do imóvel reivindicado, não podendo reconhecer um direito constituído depois disso, com base [em factos] alegados pela ré para efeitos da modificação subjectiva da instância. E, por isso, também não podia condenar os réus a restituir o imóvel à herança da falecida autora e ao autor. Para além de que, não foi a herança que foi habilitada, mas os herdeiros da autora falecida. E a herança não partilhada não tem personalidade jurídica nem judiciária (a herança jacente tem personalidade judiciária, mas já se sabe que não foi ela a habilitada). E ainda porque o autor não é proprietário do bem (mas aqui já não se está perante uma nulidade da sentença, mas sim perante um erro de julgamento de direito causada por um erro de julgamento de factos).

Pelo que a sentença é nula na parte em que julga que o prédio actualmente pertence à herança da autora e ao autor, o que se declara tendo em conta o disposto no art.º 615/1-d-e do CPC.

Cabe agora apreciar, em substituição do tribunal recorrido (art.º 665/1 do CPC), se perante os factos alegados e provados (já com a correcção do facto 3), se justificava e em que medida a procedência dos pedidos deduzidos pelos autores.

Quanto ao primeiro pedido, pode ser agora tomado em conta o que foi dito acima: o prédio não pertencia à autora e ao autor primitivos, mas sim apenas à autora primitiva, pelo que a procedência do pedido devia ser apenas parcial.

Quanto ao segundo pedido já a situação é diferente:

A sentença tem que ser congruente com a modificação subjectiva da lide e inexistência física da 1.ª autora. A acção prossegue com os novos autores no lugar da antiga autora; logo a condenação tinha de ser na restituição aos novos autores, não à antiga autora. A sentença não pode condenar na restituição do imóvel à autora inicial que já não existe.

Daí que, num comentário crítico publicado no blog do IPPC de 12/02/2022 sob Jurisprudência 2021 (131) relativamente ao acórdão do TRL de 17/06/2021 (1004/09.3TBAGH.L3-6)] que, para além do mais, tinha dito que “se a acção não foi instaurada contra a ‘herança’ do primitivo réu, com a morte deste, essa ‘herança’ não é parte na acção e, por isso, nela não pode […] ser condenada”, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa tenha escrito, entre o mais:

“[…] O art.º 351.º, n.º 1, CPC estabelece que a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa se destina a que, para com eles, possam prosseguir os termos da demanda. Em parte alguma se estabelece que a habilitação pressupõe ou determina uma qualquer sucessão dos habilitados em qualquer titularidade do direito patrimonial em discussão na acção. Veja-se também o disposto no art.º 353.º, n.º 1, CPC: o que conta é a "qualidade de herdeiro" da parte falecida, não a qualidade de herdeiro do objecto do processo.

A finalidade do regime é bem clara: na impossibilidade de a acção continuar com ou contra uma parte por falecimento desta, promove-se a intervenção dos herdeiros; mas isto destina-se a permitir que se continue a discutir o que estava em discussão na causa, não a impor que o que estava em discussão passe a ser discutido na óptica dos herdeiros habilitados e, muito menos ainda, a proibir que algo continue a ser discutido.
 
Para além da substituição da parte falecida, em tudo o mais a instância permanece inalterada. É isto que justifica que nada do que a parte, entretanto, falecida tenha praticado em processo se perde e que os herdeiros habilitados não possam voltar a praticar actos que a parte falecida tenha praticado. Há uma continuidade (para o futuro) da instância, agora com partes que substituem a parte falecida.

É, aliás, por isso que não pode deixar de se concordar com a afirmação que consta do acórdão de que a "habilitação de herdeiros visa o prosseguimento da lide com os habilitados, e não a atribuição, àqueles, da titularidade da relação material controvertida em causa, ou seja, não determina o âmbito da responsabilidade dos herdeiros habilitados relativa ao objecto da acção".

Só que, ao contrário do que se entende no acórdão, isto não constitui uma limitação à apreciação do tribunal (traduzida, nomeadamente, na impossibilidade da procedência de certos pedidos contra os herdeiros habilitados), mas antes um pressuposto da intervenção dos herdeiros como habilitados. É precisamente porque estes herdeiros não estão em juízo como titulares da relação material controvertida que é possível continuar a discutir em processo o que nele estava em discussão e que pode ser algo que nada tenha a ver com esses herdeiros, como, por exemplo, a conduta da parte falecida.

Quer dizer: a qualidade de herdeiro da parte falecida é o título que atribui legitimidade a esse herdeiro para intervir na acção em substituição daquela parte falecida. Efectivamente, a sucessão ocorre apenas quanto à posição processual da parte falecida e, portanto, num âmbito exclusivamente processual. A sucessão não ocorre, num plano substantivo, quanto ao objecto do processo, nem, muito menos, quanto a partes ou parcelas deste objecto. É precisamente por isso que tudo o que podia ser discutido e decidido antes da intervenção do herdeiro continua a poder ser discutido e decidido após essa habilitação. […]

[…] não havia […] fundamento para julgar alguns pedidos improcedentes com a justificação de que, com a morte do primitivo réu, não se transmitiu aos seus herdeiros a responsabilidade civil pela imputada exploração ilícita e danosa do prédio.

[…] Generalizando para além do caso concreto, cabe, aliás, perguntar: se, após a aceitação da herança, os herdeiros habilitados não podem ser condenados quanto a certos pedidos formulados na acção relativos a direitos que não se extinguem com a morte da parte demandada, quem é que poderá vir a ser condenado e como é que o autor pode ver tutelado o seu interesse em juízo?”

E a sentença tem que ter em conta que a ré não podia ser considerada, para tais efeitos, como herdeira da primitiva autora.

Em suma, a sentença deve reconhecer que o direito de propriedade do imóvel pertencia à (primitiva) autora e deve condenar os réus a restituir o imóvel aos herdeiros da autora (autor marido e filho de ambos)."

[MTS]

16/10/2025

Bibliografia (1227)


-- Alexandre, I., Direito Processual Civil Internacional, 2.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2025

Jurisprudência 2025 (12)


Atribuição de nacionalidade; união de facto;
acção de reconhecimento; competência material*


1. O sumário de RL 16/1/2025 (7018/23.3T8LSB.L1-2) é o seguinte:

O tribunal competente para tramitação de ação de reconhecimento de união de facto para efeito de Lei da Nacionalidade é o cível.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:

"b) O tribunal competente para a ação de reconhecimento de união de facto em matéria de nacionalidade:

Como consta expressamente da decisão recorrida, esta é uma questão que tem merecido tratamento díspar ao nível da jurisprudência, sendo, manifestamente, matéria a carecer de uniformização.

Invoca o tribunal recorrido, a este propósito, jurisprudência unânime da Relação de Coimbra no sentido da atribuição de competência à jurisdição de família e divergências jurisprudenciais nos outros tribunais superiores.

Pode aduzir-se, reforçando este sentido, que a Relação do Porto, em decisão singular do seu Presidente em sede de conflito de competência relativo a esta questão, tomou partido precisamente pela competência do Tribunal de Família (decisão singular Relação do Porto de 15/2/24, Igreja Matos, ecli.pt), ainda que se encontre abundante jurisprudência desta Relação do Porto em sentido oposto, (vide acórdãos do ano de 2024, de 19/3/24, Alberto Taveira e 26/1/24, Judite Pires, ambos em ecli.pt.)

No Distrito Judicial de Lisboa a orientação dominante tem sido a oposta, como se pode ver, designadamente, pelos acórdãos de 4/7/24 (Laurinda Gemas);  7/7/22 (Inês Moura); 23/6/22 (Anabela Calafate), todos em ecli.pt.

Significativa será a decisão do Vice-Presidente desta Relação, Carlos Castelo Branco, em sede de conflito de competência sobre esta matéria que, designadamente, por decisão de 15/4/24, perfilhou entendimento de atribuição de competência à jurisdição cível (https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2024:2052.23.6T8SXL.L1.8.D9/) – vide ampla jurisprudência aí referida e considerada.

Também ao nível do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a questão não tem merecido tratamento uniforme, podendo referir-se, no sentido de atribuir competência à jurisdição de família, o acórdão de 16/11/23 (Clara Sottomayor) e, no sentido de a atribuir à jurisdição cível, o acórdão de 22/6/23 (João Cura Mariano), ambos loc. cit.

Antes de avançar com uma tomada de posição firme sobre a questão em apreço, deve salientar-se que esta disparidade jurisprudencial é indutora de insegurança nos utilizadores da justiça ou, apresentando a questão sob perspetiva constitucional, potencialmente violadora do princípio da confiança que os utilizadores do sistema devem ter das instituições judiciais.

Sendo este o caso, a decisão desta questão neste quadro de divergências interpretativas e aplicativas não deve perder esta orientação, procurando assegurar o máximo de confiança e previsibilidade que se mostre possível para a decisão, que é, em última análise, o também correspondente ao grau máximo de garantia de acesso à justiça.

Tal confiança poderia ser buscada na procura da orientação jurisprudencial do tribunal supremo, algo que os dados de jurisprudência conhecida não permitem afirmar.

Não sendo possível estabelecê-lo a tal nível, poderia buscar-se um caminho de confiança com referência ao que pudesse ser uma jurisprudência passível de ser qualificada dominante ao nível das Relações, algo que também não se pode afirmar, com segurança.

Neste caso, a única consideração possível será da orientação dominante ao nível desta Relação de Lisboa, área correspondente àquela em que a questão está a ser tratada. Nesta Relação pode afirmar-se uma clara linha orientadora no sentido da atribuição de competência para a tramitação destas ações à jurisdição cível.

Para tanto, além dos acórdãos referidos (incluindo desta Secção), atente-se particularmente o decidido em sede de conflito de competência, estabelecendo uma orientação clara no sentido da competência da jurisdição cível e um critério que considerado à luz desta orientação de segurança e confiança, que qualquer decisão da questão não deve olvidar (pelo menos enquanto se mantiverem as divergências jurisprudenciais que se verificam).

Se este um elemento adjuvante da decisão, o essencial, como não poderia deixar de ser, refere-se à materialidade da questão.

A este nível, apesar de existirem argumentos válidos em ambos os sentidos, entende-se que se apresentam mais sólidos os que apontam para a competência da jurisdição cível.

A exegese do preceito em causa (artigo 3.º, n.º 3 Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril - Lei da Nacionalidade) refere expressa e claramente o tribunal cível.

Não se ignora a argumentação que tem sido usada para desvalorizar essa literalidade, face à superveniência da Lei da Organização do Sistema Judiciário  - LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), seja apontando uma imprecisão genética ao legislador (que, eventualmente, teria querido referir-se aos tribunais judiciais-civis, excluindo a jurisdição administrativa e fiscal), seja apontando-lhe esquecimento ou inércia, aquando da aprovação (e alterações) deste regime de organização do sistema de justiça (ao não revogar expressamente esta norma).

Mesmo sabendo das frequentes faltas do legislador, este tipo de argumentação compatibiliza mal com critérios básicos de correta exegese, desde logo com o disposto no art.º 9.º n.º 3 do Código Civil, partindo do princípio precisamente oposto àquele que a lei manda seguir – que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (se de forma acertada, ou não, seria um outro debate).

Este tipo de avaliação também enferma de uma clara petição de princípio, que, consabidamente, é o vício lógico de dar por assente à partida a conclusão que se quer afirmar, ao concluir que a competência é da jurisdição de família e que, portanto, o preceito em causa está errado.

A verdade é que, em termos literais, o preceito é claro e não foi afastado pela LOSJ, sucessivamente revista, e esse elemento de interpretação tem que ser preponderante.

Mais relevante, todavia, será uma argumentação a partir de critérios de sucessão de leis no tempo, que também tem sido convocada para este debate.

Neste caso, sustenta-se que o art. 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ, ao atribuir aos tribunais de família a competência para decidir todas as ações relativas ao estado civil das pessoas e família, teria revogado aquele preceito da Lei da Nacionalidade.

A reforçar este entendimento, como expressamente convocado pela decisão recorrida, poderiam ser chamados critérios de interpretação conforme à Constituição, que impõe um igual tratamento de todas as situações familiares, independentemente da sua forma de origem, algo que seria desrespeitado caso se retirasse da jurisdição especializada familiar estas únicas ações relativas a união de facto.

Seguindo esta linha que, repete-se, tem valor e vem sendo repetida, a definição da questão tem natureza substantiva familiar e o preceito em causa quis absorver para esta jurisdição todas as questões desta natureza.

É uma argumentação, a despeito do referido valor, salvo devido respeito, passa ao lado de um ponto essencial da questão e que é de direito material – assumir que o legislador tratou esta ação como uma estrita questão familiar. Se se quiser, existe aqui uma outra petição de princípio, que é afirmar, sem qualquer avaliação adicional, que esta questão é estritamente de natureza familiar.

A ação de reconhecimento da união de facto, sendo de declaração de uma situação familiar, é-o para uma finalidade legal muito específica – a atribuição de nacionalidade. A verificação e declaração dessa situação familiar é apenas um requisito para futura atribuição de uma situação jurídica, que é complexa, com elementos de direito privado (do complexo dos direitos de personalidade) e elementos de estatuto jurídico público (incluindo um feixe de faculdades, direitos, permissões, obrigações e deveres na relação com um Estado - pessoa coletiva).

Neste quadro, sobrelevando esta finalidade normativa, que não é familiar (mas é de nacionalidade), pode encontrar-se fundamento material para uma opção legislativa de remeter para a jurisdição cível esta avaliação, área onde são dirimidas as questões relativas a direitos de personalidade.

Neste sentido, dir-se-ia até que uma concorrência mais direta ao conhecimento desta questão pelos juízos cíveis seria da jurisdição administrativa, enquanto esfera de decisão das questões entre os particulares e o Estado e, nesse caso, sobrelevando a componente de estatuto público que encerra a atribuição da nacionalidade, poderia o legislador ter remetido a decisão da questão a esta jurisdição (sendo que, nesse caso, nenhuma dúvida exegética se apresentaria e os argumentos de igualdade perderiam ampla base de sustentação).

O argumento da desigualdade entre situações familiares também não se afigura, a esta luz, decisivo.

Em primeiro lugar, trata-se de uma questão adjetiva e de competência, o que mitiga, à partida, grandemente  a relevância efetiva e substantiva da disparidade .

Mais importante, porém, é a consideração da referida especialidade – trata-se de uma declaração judicial especial e instrumental de uma finalidade extrafamiliar (a atribuição de nacionalidade).

A correspondência efetiva deve encontrar-se, neste caso, entre famílias constituídas formalmente, por contrato de casamento, isto é, aquelas em que existe um ato jurídico voluntário que cria e documenta a situação (e, portanto, permite solicitar imediatamente nacionalidade, sem qualquer processo judicial) e famílias não constituídas por contrato (e, portanto, em que é necessária uma prévia declaração judicial da situação familiar, para aquela específica finalidade, que é jus-privada e jus-pública).

Não se quer com as reflexões anteriores sequer afirmar, ou concluir, que a opção legal é a mais correta.

Está-se apenas a indagar de jure condito a lei que é e não de jure condendo a lei que deveria ser.

A esta luz, seja em termos literais, seja em termos históricos, seja em termos sistemáticos (sendo este o argumento decisivo – lei especial não é revogada por lei geral), a conclusão que se afigura mais correta é a mesma – a competência da jurisdição cível.

Não se vê, por fim, uma entorse relevante à igualdade entre situações familiares que ponha em causa a constitucionalidade do referido preceito da Lei da Nacionalidade e, portanto, conclui-se sem necessidade de maiores considerações, que deve ser provido o recurso, o que se decide."

*3. [Comentário] Já houve oportunidade de tomar posição contra a orientação que fez vencimento no acórdão: clicar aqui.

Do acórdão consta uma afirmação com a qual se concorda totalmente: não havendo argumentos decisivos em nenhum dos sentidos possíveis, era desejável uma uniformização de jurisprudência sobre a questão da competência material para as 
acções de reconhecimento da união de facto para efeito de atribuição da nacionalidade. Pior que uma uniformização que sempre alguém qualificaria como discutível é realmente a incerteza que recai sobre sobre qualquer acção de reconhecimento.

MTS