"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/10/2025

Jurisprudência 2025 (19)


Interposição de recurso;
desistência do recurso; poderes especiais do mandatário*

I. O sumário de RE 30/1/2025 (3031/11.1TBSTR-C.E1) é o seguinte: 

1. No contexto em que foi apresentado, deve interpretar-se a expressão “desistir do recurso intentado” como desistência da reclamação apresentada ao despacho que não admitiu um recurso.

2. A admissão dessa desistência não depende de assentimento da parte contrária nem implica que o mandatário judicial subscritor do requerimento tenha de se munir de poderes especiais para o efeito.

3. A desistência da reclamação ao despacho de indeferimento de um recurso não prejudica a apreciação da conduta do desistente como litigante de má fé.

4. O instituto da litigância de má fé também acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo Tribunal e pela justiça.

5. Em caso de má fé instrumental o mandatário judicial terá, à partida, responsabilidade pessoal e directa nos actos pelos quais aquela se revelou.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A.1. A reclamação do despacho que, em Primeira Instância, não admitiu o recurso não tem, formalmente, a designação de recurso (cf. epígrafe do artigo 643.º do Código de Processo Civil). Assim como a impugnação do despacho do relator para a conferência, já no Tribunal da Relação, também não tem essa designação (cf. parte final do n.º 4, desse artigo 643.º).

Uma vez que a reclamante veio, nas suas palavras, “desistir do recurso intentado” será necessário que, através de interpretação dessas suas palavras (cf. artigos 295.º, 236.º, n.º 1 e 238.º do Código Civil) se chegue ao sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir desse comportamento, sendo certo que o sentido terá de ter um mínimo de correspondência no texto.

Assim, perante o contexto e o teor da declaração emitida (considerando, ainda, a designação arcaica [---] para tal modo de reacção processual) será de considerar que a parte pretende desistir da reclamação apresentada e que constitui o objecto deste apenso.

A.2 Por outro lado, ao Ilustre mandatário emitente dessa declaração apenas foram conferidos poderes forenses gerais e não os especiais para desistir.

Considera-se, porém, que a apresentação de reclamação contra o despacho que não admitiu um recurso não importa a constituição de uma nova instância, pelo que a parte que desiste da reclamação apenas renuncia a um acto do processo e procede à aceitação de uma decisão que foi proferida (assim se consolidando o despacho que não admitiu o recurso). E a aceitação dessa decisão não implica uma desistência (ou confissão) do pedido que foi formulado no processo principal nem uma desistência da instância do processo que, em Primeira Instância, prosseguirá (ou poderá prosseguir) até decisão final.

Consequentemente, nem a desistência da reclamação depende de assentimento da parte contrária [Neste sentido ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2010 (processo n.º 3128/07.2TVPRT-A.S1) [...]]nem implica que o mandatário judicial tenha de se munir com poderes especiais para desistir [Neste sentido ver Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/02/1990 (processo n.º 0000356) [...]]. 

Assim, deve ser de admitir a desistência da reclamação, o que implica que se torne definitivo o despacho que não admitiu o recurso e deixe de ser necessário (ou possível) o conhecimento da impugnação do despacho do relator que foi apresentada."

*III. [Comentário] No acórdão segue-se a doutrina largamente dominante quanto à desnecessidade de poderes especiais do mandatário judicial para desistir do recurso.

Discorda-se desta doutrina, dado que não parece coerente que, para a desistência da instância, esses poderes sejam necessários (art. 45.º, n.º 2, CPC) e que, para um acto que consolida no processo uma decisão, se dispensem esses poderes. Recorde-se que a desistência da instância apenas faz cessar o processo que se encontra pendente (art. 285.º, n.º 2, CC) e que a desistência do recurso implica que a decisão impugnada produz, no processo pendente e, eventualmente, fora dele, todos os seus efeitos.

MTS