Segunda perícia;
direitos da personalidade; colisão de direitos
1. O sumário de RG 14/11/2024 (5501/19.4T8VNF-C.G1) é o seguinte:
I – No art. 71.º, n.º1 do Código Civil prevê-se apenas um direito próprio dos familiares do falecido e não um direito de personalidade deste, uma vez que a personalidade cessa com a morte, nos termos do art. 68.º do Código Civil.
II – A exumação de um cadáver e a recolha de material biológico para realização de testes de ADN, que seja determinada pela autoridade judicial competente por a considerar necessária à descoberta da verdade material não está em conflito com o disposto no art. 71º, nº 1 do Código Civil, uma vez que neste preceito se visa evitar a prática de atos ilícitos.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
Dispõe o art. 487.º do Código Civil que:
“1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.3 - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.”
Conforme ressalta do normativo supra transcrito, a segunda perícia pode ser realizada a pedido das partes ou de uma das partes e pode ainda ter lugar por determinação oficiosa do Tribunal.
Neste último caso basta que o Tribunal julgue necessária a realização de outra perícia para o apuramento da verdade, ou seja, afigura-se-nos ser insindicável este juízo do Tribunal sobre a necessidade ou mesmo imprescindibilidade da realização de uma nova perícia.
Distintamente, já podem ser objeto de impugnação os concretos contornos da realização da segunda perícia, pois que aqui já se coloca uma questão de legalidade na sua execução.
Ora, os recorrentes não colocam em causa o juízo do tribunal sobre a necessidade de realização de uma segunda por julgador entender que a primeira perícia não é totalmente esclarecedora, o que questionam são os moldes em que a mesma foi determinada, ou seja, com a exumação do cadáver do tio para recolha de vestígios biológicos.
A primeira questão suscitada pelos recorrentes prende-se com a inutilidade da realização da perícia, dizendo que a perícia não deve ser realizada por violar o plasmado no art. 130.º do Código de Processo Civil que proíbe a prática de atos inúteis.
Louvam-se numa comunicação de 09/03/2021 (e não 2022 como por lapso referem) do Serviço de Genética e Biologia Forenses Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., mas que efetivamente contraria a inutilidade que os recorrentes invocam, pois que o que diz em tal comunicação é que do ponto de vista técnico, a análise de material exumado pode ser difícil, pelo que não pode garantir a obtenção de resultados que cumpram os critérios de qualidade que têm definidos, de modo a permitir identificar o respetivo perfil genético e disponibilizar toda a informação genética necessária, com segurança. A especificidade de cada amostra, as condições a que esteve sujeita e o tempo de inumação são fatores determinantes na identificação de perfis genéticos, a partir de material exumado.
Ora, tal comunicação alerta para vicissitudes próprias de uma exumação de cadáver com recolha de amostras, mas em momento algum se refere que tal diligência será inútil, antes se referindo que pode ser difícil (logo, também pode não ser difícil), pelo que as asserções produzidas pelos recorrentes acerca da inutilidade da diligência em causa, não encontram arrimo na comunicação em causa, inferindo-se, pelo contrário, da mesma, que correndo bem a exumação e recolha de amostras pode ser útil para o esclarecimento das relações de filiação objeto de litígio nos presentes autos.
A tal não obsta o tempo decorrido desde a inumação do cadáver indigitado progenitor nem a invocada existência de outros dois cadáveres inumados no mesmo local. São, naturalmente, circunstâncias que poderão afetar a recolha de material biológico, bem como a qualidade das amostras recolhidas, mas é algo que apenas poderá ser avaliado aquando da recolha e análise das amostras recolhidas, pelo que é absolutamente inadequado asseverar que a diligência é inútil. Relembra-se o que no ofício supra referenciado que, como vimos, afastou a inutilidade da diligência, já se consideraram as circunstâncias que podem gerar dificuldades para o sucesso na realização da perícia.
Não existe assim qualquer inutilidade na realização da perícia em causa, bem pelo contrário, a mesma poderá mesmo ser concludente para a decisão da ação, pois que conforme ressalta do estudo sobre Princípios de Genética Forense de Francisco Corte-Real e Duarte Nuno Vieira (da Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, págs. 120), nos casos em que não é possível realizar as perícias de investigação da paternidade com recurso ao trio pai/mãe/filho e se recorre a familiares do pretenso pai, como sucedeu na primeira perícia, as investigações serão de casos incompletos e por isso mais complexas, podendo ser necessário proceder a novas avaliações dos dados familiares, ou mesmo à exumação do cadáver do pretenso pai para recolha de material biológico, de modo a realizar uma investigação de paternidade direta.
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Dizem ainda os recorrentes que a decretada exumação para recolha de material biológico é altamente lesiva dos direitos absolutos de personalidade moral dos recorrentes e dos demais familiares e ainda da tutela de personalidade de que beneficia o defunto, respetivamente nos termos dos arts. 70.º e 71.º do Código Civil.
Apreciando.
De acordo com o art. 1801.º do Código Civil nas ações relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames sanguíneos e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados, em que incontestadamente se incluem os exames a amostras biológicas recolhidas de cadáveres para a realização de testes de ADN, que são os que com maior fiabilidade próxima da certeza tornam possível estabelecer que determinado indivíduo procede biologicamente de outro.
Porém, esgrimem os recorrentes que tal diligência viola dos seus direitos de personalidade e os do falecido.
Contudo, tal asserção não tem qualquer fundamento como a seguir procuraremos demonstrar.
Dispõe o art. 1.º do Decreto-Lei nº 411/98, de 30/12 que:
“A exumação consiste na abertura de sepultura, local de consumpção aeróbia ou caixão de metal onde se encontra inumado o cadáver”.
Por seu turno o art. 21.º, n.º 1 do citado diploma legal dispõe que: "Após a inumação é proibido abrir qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, salvo em cumprimento de mandado da autoridade judiciária”.
Antes de mais importa considerar que, com a morte de uma pessoa extingue-se a sua personalidade jurídica, nos termos do n.º 1 do art. 68.º do Código Civil, ou seja, a sua aptidão para ser sujeito de relações jurídicas.
A este propósito, Mota Pinto, in Teoria Geral da Relação Jurídica, 2.ª edição atualizada, págs. 200 e 201, expende o seguinte:
“No momento da morte, a pessoa perde, assim, os direitos e deveres da sua esfera jurídica, extinguindo-se os de natureza pessoal (v. g. os direitos e deveres conjugais) e transmitindo-se para os sucessores "mortis causa" os de natureza patrimonial (…) a tutela do artigo 71.°, n.° 1, é uma protecção de interesses e direitos de pessoas vivas (as indicadas no n° 2 do mesmo artigo) que seriam afectadas por actos ofensivos da memória (da integridade moral) do falecido.".
Assim, “a tutela post mortem é, na realidade, a protecção concedida ao direito que os familiares têm de exigir o respeito pelo descanso e pela memória dos seus mortos.” (Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, pág. 466).
No caso concreto, em primeiro lugar não se vislumbra que a exumação judicialmente determinada, de acordo com os procedimentos legais possa ser violadora da integridade moral dos recorrentes, sobrinhos do pretenso progenitor do recorrido, nada tendo sido alegado em concreto nesse sentido.
O que poderia estar aqui em causa, seria a violação dos direitos dos familiares – não do falecido - nos termos do art. 71.º do Código Civil que dispõe que:
“1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular.2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer providências a que o número anterior se refere.”.
Contudo, ainda que se concedesse que poderiam estar também aqui em causa direitos de personalidade próprios dos recorrentes, chamemos-lhes assim, ou seja direitos de personalidade com assento no referido art. 70.º, que não estão, a verdade é que poderíamos ter um conflito com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, conhecimento da identidade pessoal na vertente de conhecimento das origens biológicas, com assento no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.
Ora, sob a epígrafe “colisão de direitos” dispõe o art. 335.º do Código Civil que:
“1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.“2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”.
Nesse caso, deveriam os direitos de personalidade dos recorrentes (que em concreto nem sequer se mostram alegados) ceder por o direito ao conhecimento da identidade pessoal dever prevalecer sobre esses hipotéticos direitos.
Ainda que fosse este o caso, a prevalência do direito à identidade pessoal do recorrente justificar-se-ia, porquanto a recolha de material biológico no cadáver do indigitado progenitor para a realização do exame científico, supostamente violador de direitos de personalidade dos sobrinhos, mostra-se num patamar muito inferior relativamente ao direito à identidade pessoal.
Mas não é de todo este o caso. O que está aqui em causa são os direitos dos familiares plasmados no art. 71.º, n.º 1 do Código civil, embora com uma redação imperfeita, não sendo tutelados os supostos direitos dos familiares nos termos do art. 70.º do Código Civil.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011, processo. 912B/2002.C1.S1, em que é relator Álvaro Rodrigues, sustentado na numerosa doutrina e jurisprudência que aí se mostra recenseada, diz-se que “o cadáver não é titular de direitos, mas beneficiário da protecção a que se refere o nº 1 do artº 71º do C. Civil.
(…) Na realização da colheita do material cadavérico para a realização dos testes do ADN, ordenada por autoridade judicial competente, que a considerou necessária, após a devida ponderação, e levada a efeito nos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, não há objectivamente qualquer violação de direitos, tendo em atenção o direito do Investigante à sua identidade.
A violação do respeito ao cadáver importa a prática de actos que consubstanciem, materialmente, um vilipêndio do cadáver, isto é, actos susceptíveis de aviltar, profanar ou ultrajar o cadáver e não actos médicos periciais exigidos com a legítima finalidade da descoberta da verdade biológica, em casos em que importe o reconhecimento e declaração da identidade de uma pessoa.”.
Eduardo Vera Cruz Pinto in Conferência proferida em Brasília, no âmbito da II Jornada de Direito Civil, organizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal in http://www.cjf.jus.br) diz que:
“No art. 71º do Código Civil português, a proteção aos direitos da personalidade do morto resulta da possibilidade de dano à sua família, que, nesse caso, tem legitimidade processual para atuar em sua defesa, protegendo-se. Logo, a proteção legal é dada não à pessoa que foi, mas à sua família.”.
Assim sendo, como é – também na esteira do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/03/2015, proferido no processo 244/06.1TBMNC-B.G.1, em que é relatora Eva Almeida -, dir-se-á que os direitos da família dos falecidos, ponderados em face do direito do autor à sua identidade pessoal, não deverão prevalecer, sendo de salientar que a ter sucesso a ação o recorrido passará inclusivamente a ser o parente mais próximo (primeiro grau na linha reta em contraposição com os recorridos, que são colaterais em terceiro grau – cfr. arts. 1578.º a 1581.º do Código Civil).
Como se refere a propósito da transcrita norma com a epígrafe “colisão de direitos” no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/05/2006, no processo 006A636, em que foi relator Nuno Cameira citado no acórdão do mesmo Tribunal datado de 24/05/2012, no processo 69/09.2TBMUR.P1.S1, em que é relator Serra Baptista:
“Parece-nos resultar com toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro - e quem diz direito diz qualquer posição jurídica activa passível de actuação - a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência de ambos.Portanto, averiguando-se que de duas normas atributivas de direitos potencialmente aplicáveis à situação ajuizada só uma delas, afinal, tem aplicação, conferindo, na prática, um único direito, então deixa de poder falar-se em colisão real de direitos: tratar-se-á, em tal caso, duma colisão meramente aparente, sem correspondência na realidade.Isto é assim porque as limitações ao exercício do direito - referimo-nos, claro está, às limitações extrínsecas, de entre as quais avulta precisamente a colisão de direitos, e não às intrínsecas, atinentes ao seu conteúdo e objecto - determinando, no fundo, como ele deve ser actuado, pressupõem a sua existência, validade e eficácia, que, o mesmo é dizer, um direito em concreto. Não se afigura que faça sentido, pois, aludir a uma colisão de direitos em abstracto, isto é, não referida a situações jurídicas activas de que dois diferentes sujeitos jurídicos sejam titulares em dado momento.Se, ponderada a situação de facto comprovada, o julgador chegar à conclusão de que na realidade só um direito existe, radicado na esfera jurídica de um dos litigantes, o instituto da colisão de direitos deixa de poder aplicar-se”.
Adotado este entendimento, em face das considerações supra expostas, resulta que não existe qualquer colisão de direitos quanto aos fundamentos da oposição deduzida pelos recorrentes à exumação de cadáver do seu tio pelos motivos atinentes a si próprios (aliás não explicitados ou concretizados), supostamente subsumíveis ao art. 70.º do Código Civil, sendo que na realidade o normativo aplicável é o seguinte (art. 71.º).
Já relativamente ao seu falecido tio, o mesmo é desde o momento da morte destituído de personalidade jurídica e, inerentemente, despojado de qualquer direito.
De todo o modo, na interpretação que consideramos a melhor, o art. 71.º, n.º 1 do Código Civil, confere aos familiares do falecido um direito próprio para defesa da sua memória e dos seus restos mortais. Tem-se entendido que tal direito concedido aos familiares do falecido nos termos do citado normativo apenas pode valer contra a prática de atos ilícitos, pelo que sendo assim, em face de uma exumação determinada por autoridade judiciária, tendo em vista a satisfação de um interesse e direito legítimo, como é o conhecimento das origens não pode prevalecer, inexistindo também aqui qualquer colisão de direitos.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/04/2014:
“Independentemente de o cadáver não ser titular de direitos, mas beneficiário da proteção a que se refere o art.º 71.º n.º 1 do Código Civil, importa sublinhar que a realização da colheita de material cadavérico para a realização dos testes de ADN, que seja ordenada pela autoridade judicial competente que a considerar necessária, após a devida ponderação e levada a efeito nos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, nunca pode estar em conflito com o disposto no art.º 71.º n.º1 do C.Civil.”.
O que o art. 71.º, n.º 1 do Código Civil visa evitar é a prática de atos ilícitos, como por exemplo a ofensa ao bom nome de pessoa falecida, não sendo, pois necessário qualquer consentimento dos familiares do falecido, uma vez que a determinação judicial é lícita e muito menos qualquer cooperação por ser desnecessária para a realização da diligência em causa, mostrando-se assim deslocada a referência ao art. 413.º do Código de Processo Civil e as considerações tecidas a tal respeito.
A não ser assim, não se compreenderiam a realização de autópsias sem o consentimento dos familiares e diplomas como os que permitem a utilização de cadáveres para dissecação ou extração de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e investigação científica (DL 274/99, de 22/07) ou a colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana (Lei 22/2007, de 29/06). Deste modo, a extração de ADN com recurso à exumação, sendo uma diligência lícita com vista à obtenção de provas tendentes a apurar a verdade biológica, torna infundada a oposição deduzida pelos recorrentes à realização da segunda perícia. (cfr. neste sentido, também o acórdão da Relação de Guimarães, de 07/12/2016, no processo 3727/13.3TBBCL-A.G1, em que é relatora Alexandra Rolim Mendes).
Para finalizar, dir-se-á que no caso Jaggi vs Suíça, em 13/06/2006, o Tribunal Europeu dos Direitos humanos condenou o Estado Helvético pela violação do art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (direito à proteção da vida familiar) pelo facto de os Tribunais terem impedido o recorrente de recolher ADN do indigitado pai biológico falecido, não tendo permitido a exumação, prejudicando o direito ao estabelecimento da filiação, num caso em que, como no presente, os familiares do falecido não colocaram entraves de matriz religiosa ou filosófica."
[MTS]
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