Atribuição de nacionalidade; união de facto;
acção de reconhecimento; competência material*
O tribunal competente para tramitação de ação de reconhecimento de união de facto para efeito de Lei da Nacionalidade é o cível.
2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:
"b) O tribunal competente para a ação de reconhecimento de união de facto em matéria de nacionalidade:
Como consta expressamente da decisão recorrida, esta é uma questão que tem merecido tratamento díspar ao nível da jurisprudência, sendo, manifestamente, matéria a carecer de uniformização.
Invoca o tribunal recorrido, a este propósito, jurisprudência unânime da Relação de Coimbra no sentido da atribuição de competência à jurisdição de família e divergências jurisprudenciais nos outros tribunais superiores.
Pode aduzir-se, reforçando este sentido, que a Relação do Porto, em decisão singular do seu Presidente em sede de conflito de competência relativo a esta questão, tomou partido precisamente pela competência do Tribunal de Família (decisão singular Relação do Porto de 15/2/24, Igreja Matos, ecli.pt), ainda que se encontre abundante jurisprudência desta Relação do Porto em sentido oposto, (vide acórdãos do ano de 2024, de 19/3/24, Alberto Taveira e 26/1/24, Judite Pires, ambos em ecli.pt.)
No Distrito Judicial de Lisboa a orientação dominante tem sido a oposta, como se pode ver, designadamente, pelos acórdãos de 4/7/24 (Laurinda Gemas); 7/7/22 (Inês Moura); 23/6/22 (Anabela Calafate), todos em ecli.pt.
Significativa será a decisão do Vice-Presidente desta Relação, Carlos Castelo Branco, em sede de conflito de competência sobre esta matéria que, designadamente, por decisão de 15/4/24, perfilhou entendimento de atribuição de competência à jurisdição cível (https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2024:2052.23.6T8SXL.L1.8.D9/) – vide ampla jurisprudência aí referida e considerada.
Também ao nível do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a questão não tem merecido tratamento uniforme, podendo referir-se, no sentido de atribuir competência à jurisdição de família, o acórdão de 16/11/23 (Clara Sottomayor) e, no sentido de a atribuir à jurisdição cível, o acórdão de 22/6/23 (João Cura Mariano), ambos loc. cit.
Antes de avançar com uma tomada de posição firme sobre a questão em apreço, deve salientar-se que esta disparidade jurisprudencial é indutora de insegurança nos utilizadores da justiça ou, apresentando a questão sob perspetiva constitucional, potencialmente violadora do princípio da confiança que os utilizadores do sistema devem ter das instituições judiciais.
Sendo este o caso, a decisão desta questão neste quadro de divergências interpretativas e aplicativas não deve perder esta orientação, procurando assegurar o máximo de confiança e previsibilidade que se mostre possível para a decisão, que é, em última análise, o também correspondente ao grau máximo de garantia de acesso à justiça.
Tal confiança poderia ser buscada na procura da orientação jurisprudencial do tribunal supremo, algo que os dados de jurisprudência conhecida não permitem afirmar.
Não sendo possível estabelecê-lo a tal nível, poderia buscar-se um caminho de confiança com referência ao que pudesse ser uma jurisprudência passível de ser qualificada dominante ao nível das Relações, algo que também não se pode afirmar, com segurança.
Neste caso, a única consideração possível será da orientação dominante ao nível desta Relação de Lisboa, área correspondente àquela em que a questão está a ser tratada. Nesta Relação pode afirmar-se uma clara linha orientadora no sentido da atribuição de competência para a tramitação destas ações à jurisdição cível.
Para tanto, além dos acórdãos referidos (incluindo desta Secção), atente-se particularmente o decidido em sede de conflito de competência, estabelecendo uma orientação clara no sentido da competência da jurisdição cível e um critério que considerado à luz desta orientação de segurança e confiança, que qualquer decisão da questão não deve olvidar (pelo menos enquanto se mantiverem as divergências jurisprudenciais que se verificam).
Se este um elemento adjuvante da decisão, o essencial, como não poderia deixar de ser, refere-se à materialidade da questão.
A este nível, apesar de existirem argumentos válidos em ambos os sentidos, entende-se que se apresentam mais sólidos os que apontam para a competência da jurisdição cível.
A exegese do preceito em causa (artigo 3.º, n.º 3 Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril - Lei da Nacionalidade) refere expressa e claramente o tribunal cível.
Não se ignora a argumentação que tem sido usada para desvalorizar essa literalidade, face à superveniência da Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), seja apontando uma imprecisão genética ao legislador (que, eventualmente, teria querido referir-se aos tribunais judiciais-civis, excluindo a jurisdição administrativa e fiscal), seja apontando-lhe esquecimento ou inércia, aquando da aprovação (e alterações) deste regime de organização do sistema de justiça (ao não revogar expressamente esta norma).
Mesmo sabendo das frequentes faltas do legislador, este tipo de argumentação compatibiliza mal com critérios básicos de correta exegese, desde logo com o disposto no art.º 9.º n.º 3 do Código Civil, partindo do princípio precisamente oposto àquele que a lei manda seguir – que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (se de forma acertada, ou não, seria um outro debate).
Este tipo de avaliação também enferma de uma clara petição de princípio, que, consabidamente, é o vício lógico de dar por assente à partida a conclusão que se quer afirmar, ao concluir que a competência é da jurisdição de família e que, portanto, o preceito em causa está errado.
A verdade é que, em termos literais, o preceito é claro e não foi afastado pela LOSJ, sucessivamente revista, e esse elemento de interpretação tem que ser preponderante.
Mais relevante, todavia, será uma argumentação a partir de critérios de sucessão de leis no tempo, que também tem sido convocada para este debate.
Neste caso, sustenta-se que o art. 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ, ao atribuir aos tribunais de família a competência para decidir todas as ações relativas ao estado civil das pessoas e família, teria revogado aquele preceito da Lei da Nacionalidade.
A reforçar este entendimento, como expressamente convocado pela decisão recorrida, poderiam ser chamados critérios de interpretação conforme à Constituição, que impõe um igual tratamento de todas as situações familiares, independentemente da sua forma de origem, algo que seria desrespeitado caso se retirasse da jurisdição especializada familiar estas únicas ações relativas a união de facto.
Seguindo esta linha que, repete-se, tem valor e vem sendo repetida, a definição da questão tem natureza substantiva familiar e o preceito em causa quis absorver para esta jurisdição todas as questões desta natureza.
É uma argumentação, a despeito do referido valor, salvo devido respeito, passa ao lado de um ponto essencial da questão e que é de direito material – assumir que o legislador tratou esta ação como uma estrita questão familiar. Se se quiser, existe aqui uma outra petição de princípio, que é afirmar, sem qualquer avaliação adicional, que esta questão é estritamente de natureza familiar.
A ação de reconhecimento da união de facto, sendo de declaração de uma situação familiar, é-o para uma finalidade legal muito específica – a atribuição de nacionalidade. A verificação e declaração dessa situação familiar é apenas um requisito para futura atribuição de uma situação jurídica, que é complexa, com elementos de direito privado (do complexo dos direitos de personalidade) e elementos de estatuto jurídico público (incluindo um feixe de faculdades, direitos, permissões, obrigações e deveres na relação com um Estado - pessoa coletiva).
Neste quadro, sobrelevando esta finalidade normativa, que não é familiar (mas é de nacionalidade), pode encontrar-se fundamento material para uma opção legislativa de remeter para a jurisdição cível esta avaliação, área onde são dirimidas as questões relativas a direitos de personalidade.
Neste sentido, dir-se-ia até que uma concorrência mais direta ao conhecimento desta questão pelos juízos cíveis seria da jurisdição administrativa, enquanto esfera de decisão das questões entre os particulares e o Estado e, nesse caso, sobrelevando a componente de estatuto público que encerra a atribuição da nacionalidade, poderia o legislador ter remetido a decisão da questão a esta jurisdição (sendo que, nesse caso, nenhuma dúvida exegética se apresentaria e os argumentos de igualdade perderiam ampla base de sustentação).
O argumento da desigualdade entre situações familiares também não se afigura, a esta luz, decisivo.
Em primeiro lugar, trata-se de uma questão adjetiva e de competência, o que mitiga, à partida, grandemente a relevância efetiva e substantiva da disparidade .
Mais importante, porém, é a consideração da referida especialidade – trata-se de uma declaração judicial especial e instrumental de uma finalidade extrafamiliar (a atribuição de nacionalidade).
A correspondência efetiva deve encontrar-se, neste caso, entre famílias constituídas formalmente, por contrato de casamento, isto é, aquelas em que existe um ato jurídico voluntário que cria e documenta a situação (e, portanto, permite solicitar imediatamente nacionalidade, sem qualquer processo judicial) e famílias não constituídas por contrato (e, portanto, em que é necessária uma prévia declaração judicial da situação familiar, para aquela específica finalidade, que é jus-privada e jus-pública).
Não se quer com as reflexões anteriores sequer afirmar, ou concluir, que a opção legal é a mais correta.
Está-se apenas a indagar de jure condito a lei que é e não de jure condendo a lei que deveria ser.
A esta luz, seja em termos literais, seja em termos históricos, seja em termos sistemáticos (sendo este o argumento decisivo – lei especial não é revogada por lei geral), a conclusão que se afigura mais correta é a mesma – a competência da jurisdição cível.
Não se vê, por fim, uma entorse relevante à igualdade entre situações familiares que ponha em causa a constitucionalidade do referido preceito da Lei da Nacionalidade e, portanto, conclui-se sem necessidade de maiores considerações, que deve ser provido o recurso, o que se decide."
*3. [Comentário] Já houve oportunidade de tomar posição contra a orientação que fez vencimento no acórdão: clicar aqui.
Do acórdão consta uma afirmação com a qual se concorda totalmente: não havendo argumentos decisivos em nenhum dos sentidos possíveis, era desejável uma uniformização de jurisprudência sobre a questão da competência material para as acções de reconhecimento da união de facto para efeito de atribuição da nacionalidade. Pior que uma uniformização que sempre alguém qualificaria como discutível é realmente a incerteza que recai sobre sobre qualquer acção de reconhecimento.
*3. [Comentário] Já houve oportunidade de tomar posição contra a orientação que fez vencimento no acórdão: clicar aqui.
Do acórdão consta uma afirmação com a qual se concorda totalmente: não havendo argumentos decisivos em nenhum dos sentidos possíveis, era desejável uma uniformização de jurisprudência sobre a questão da competência material para as acções de reconhecimento da união de facto para efeito de atribuição da nacionalidade. Pior que uma uniformização que sempre alguém qualificaria como discutível é realmente a incerteza que recai sobre sobre qualquer acção de reconhecimento.
MTS