"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/10/2025

Jurisprudência 2025 (17)


Prova testemunhal; livre apreciação da prova;
grau de prova; medida da prova*


1. O sumário de RG 23/1/2025 (100/20.0T8BGC.G1) é o seguinte:

I – Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.

II - Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos das testemunhas, os motivos pelos quais se lhes confere credibilidade têm subjacente elementos de racionalidade e experiência comum, avaliando-se a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os recorrentes consideram que foi incorretamente julgada a matéria dada como provada sob os nºs 13, 14, 15, 16, 22, 23, 24, 25, 26 e 27, a qual deveria ser dada como não provada e que os factos julgados como não provados e constantes das alíneas a) a h) deveriam ter sido julgados como provados.

Fundamentam a alteração pretendida nos depoimentos das testemunhas PP, QQ, RR, II, SS e AA que não foram devidamente valorados pelo tribunal.

Assim, a apreciação da impugnação situa-se no domínio da valoração da prova testemunhal em processo civil.

Decorre do disposto no artigo 396º do Código Civil e do princípio geral enunciado no artigo 655º do Código de Processo Civil que o depoimento testemunhal é hoje um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, devendo este avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência. [Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 248/2009, de 15.06.2009, disponível em www.dgsi.pt.]

A convicção é o estado de certeza ou incerteza na verdade de um facto. No que toca à valoração da prova no âmbito de um processo judicial, este estado não pode ser um estado de fé, impõe-se que seja um estado crítico, formado de acordo com critérios de prudência. [Neste sentido, Marta João Dias, Julgar, N.º 13 – 2011, pag. 178.]

Por consequênciao julgador é livre na valoração da prova, na justa medida em que os meios de prova sujeitos à sua apreciação não têm um valor legal predeterminado, mas a decisão não o é, pela simples mas determinante razão de que a convicção exteriorizável pela decisão não se subsume a uma “íntima convicção”, mas também não é uma “pura objetividade” lógico-racional, que se possa demonstrar.

O estado de certeza da verdade, que há-de corresponder sempre a uma probabilidade, manifesta-se num juízo de certeza prático-emocional que, usando as palavras de Marta João Dias assente nos ensinamentos de Castanheira Neves em questão-de-facto - questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade, p. 479,  “não obstante a inapagável nota pessoal, não cai num subjectivismo arbitrário, mas é antes marcada pela “objectividade da vida”, isto é, no decidir, o julgador convoca a sua experiência ou vivência pessoal, o que mais não é do que o património de saberes e experiências comum ou da comunidade em que se insere e que viabiliza o nosso conviver, pelo que a verdade a emergir há-de ser a intersubjectivamente partilhada e experimentada”. [Ob. Cit. pag. 178/179.]

Analisar criticamente as provas é valorá-las.

Num sistema de prova livre, o legislador abstém-se, em abstrato, de determinar o valor da prova e reconduz essa tarefa ao julgador, a quem cabe aferir, em concreto, o “valor relativo” de cada meio de prova face ao conjunto, isto é, como refere Marta João Dias, o julgador terá que fazer um conciso dos meios de prova produzidos, ponderando o valor de cada e estabelecendo entre eles a hierarquia de valor determinante para a formação da sua convicção. Com isto está a “pesar” as provas [In Julgar Nº 13, 2011, pag. 194.]

Quanto à prova testemunhal, há que referir que para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. [Assim também acórdão da Relação de Évora de 09-01-2018, disponível em www.dgsi.pt.]

Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos das testemunhas, os motivos pelos quais se lhes confere credibilidade têm subjacente elementos de racionalidade e experiência comum, avaliando-se a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.~

Por isso, a atividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as razões de ciência, as garantias de imparcialidade, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as coincidências e contradições, ademais de os conjugar com os demais elementos objetivos.

Compreende-se, em razão disso, que a lei disponha que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Certo, no entanto, como já se expressou, que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, mas apreciação que se realiza de acordo com critérios lógicos e objetivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objetivável e motivável [Neste sentido, acórdão do STJ de 4.11.98, Coletânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, III-201.]

Na situação presente, os réus admitem que o dinheiro depositado nas contas bancárias pertencia a GG, tendo os réus transferido este dinheiro para as suas contas pessoais (em dois momentos, um pouco antes do GG falecer e outro logo após o seu falecimento), competia-lhes demonstrar o título legitimo para a transferência, a alegada doação ou instituição como herdeiros.

Assim, a centralidade da questão incide na prova dessa causa legitima de apropriação do dinheiro.

As testemunhas ouvidas, de laços familiares ou de vizinhança muito próxima dos réus, referiram que o GG sempre disse que tudo o que tinha seria para os réus.

Quando questionados sobre os termos da concretização ou manifestação dessa intenção ou vontade, nada esclareceram, por nada saberem.

Sem uma explicação credível e lógica a este facto concreto, os seus depoimentos revelaram-se inconsistentes e de pouca relevância, quedando-se por uma “repetida intenção de recompensa”, sem materialização concreta.

O que a propósito foi declarado pelas testemunhas mostra-se infirmado pelo que resulta dos documentos quanto às anteriores contas bancárias que tinham o sobrinho do falecido como movimentador, para o auxiliar nos levantamentos necessários à gestão do seu quotidiano, à própria personalidade do falecido, por todos descrito como pessoa poupada e com uma vida regrada, que amealhou ao longo da vida para as suas necessidades futuras.

Ora, para demonstração da versão dos réus, no que se conforma a sua impugnação de facto, estes testemunhos superficiais desacompanhados de elementos objetivos concretizadores daquela intenção de beneficiar os réus, revelaram-se manifestamente insuficientes.

A prova de um facto requer o preenchimento do designado standard mínimo da prova [A este propósito, pode ver-se LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, in O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, disponível em www.trl.mj.pt, pág. 1]. A este propósito, exige-se que, através dos meios de prova que foram apresentados, seja possível afirmar que o facto é verosímil, no sentido de, como afirma Miguel Teixeira de Sousa, 'excluir, segundo o padrão que na vida prática é tomado como certeza, outra configuração da realidade dada como provada[In As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 201]. Exige-se também que seja possível elaborar um raciocínio lógico que permita justificar externamente esta verosimilitude, não se limitando ao mero convencimento subjetivo do julgador [Como afirma GUILHERME RECENA COSTA, in Livre Convencimento e Standards de Prova, pág. 363, princípio da livre apreciação da prova corresponde a uma 'valoração segundo parâmetros racionais, objectivos e controláveis'. A este propósito, são particularmente expressivas as palavras de JOÃO DE CASTRO MENDES, in Do Conceito de Prova em Processo Civil, pág. 325, para quem 'quanto ao grau de convicção que é necessário para se falar em prova, diremos que é aquele que for necessário para justificar a decisão. (…) domina aqui a ideia de justificabilidade. Toda a prova é, portanto, uma prova bastante; bastante para justificar o acto que se vai praticar'.].

A confirmação do facto deverá atingir este patamar mínimo - sufficiency of evidence - sob pena de a parte a quem compete o ónus da prova suportar a consequência jurídica da falta de confirmação.

A prova produzida, considerada na sua globalidade e por referência às regras da experiência comum, não impõe decisão diversa (artigo 662º, nº 1, do Código de Processo Civil), pelo que os pontos relacionados com a impugnação não merecem acolhimento, sendo a decisão de facto correspondente à realidade processualmente adquirida.

*3. [Comentário] a) Salvo a devida consideração, a "verosimilitude" não é suficiente para satisfazer a exigência da medida da prova que se exige numa acção, ou seja, da prova stricto sensu. É possível estabelecer a seguinte correspondência entre o grau e a medida da prova:

                                     Grau de prova                                   Medida da prova

                                     Prova stricto sensu                           Verdade do facto
                                     Mera justificação                               Verosimilhança do facto
                                     Princípio de prova                             Hipótese do facto

b) O citado artigo de Recena Costa pode ser consultado aqui.

MTS