Advogado;
conflito de interesses
I - Identifica-se um antagonismo entre os interesses de um insolvente, numa insolvência em que um imóvel apreendido para a massa vai ser vendido, e os de um proponente à respectiva aquisição no âmbito da liquidação nesse mesmo processo de insolvência.II - Em razão de tal conflito de interesses, o mesmo advogado não pode representar simultaneamente o insolvente a o proponente comprador.III - Para a identificação do conflito de interesses, é irrelevante a não identificação de um concreto prejuízo resultante da representação simultânea de tais diferentes entidades, ou a falta de oposição de qualquer sujeito processual.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Cabe, sucessivamente, apreciar a ocorrência da anunciada incompatibilidade entre a intervenção do Il. Advogado Dr. BB enquanto mandatário da insolvente e representante da sociedade licitante do imóvel desta, no âmbito do leilão ocorrido em sede de liquidação da correspondente massa insolvente.
Nesta discussão será igualmente útil ponderar se é determinante, para a identificação dessa incompatibilidade, a eventual circunstância de nenhum credor se ter oposto à validade da proposta apresentada pelo mesmo Dr. BB em representação da licitante A..., Lda e da alegação de nenhum prejuízo daí haver de decorrer, quer para a proponente, quer para a insolvente.
Sobre matéria de conflito de interesses, com relevância para a situação em apreço, dispõe o art. 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, nos termos seguintes:
“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.2 – (…).3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.5 - (…)6 – (…)."
Em face do regime assim construído, começa por assinalar-se a indiferença para a solução, da eventual concordância ou mera falta de oposição de qualquer interveniente, sejam os diferentes sujeitos processuais que aparecem representados pelo mesmo advogado, sejam quaisquer outros interessados.
Para além disso, constata-se ser também irrelevante a verificação de um efectivo prejuízo para qualquer das partes representadas pelo mesmo advogado, para que se conclua pela ocorrência de um conflito de interesses.
Com efeito, nos termos do nº 1 e do nº 3 da norma citada, o que determina a inviabilidade de representação de um determinado cliente é a circunstância de o advogado já ter intervindo em qualquer outra qualidade na mesma questão ou em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária, não podendo aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
No caso, o Dr. BB vem representando a insolvente no respectivo processo de insolvência. Assim, não pode representar qualquer outro interveniente no processo, que seja titular de interesses eventualmente conflituantes com as da insolvente.
Ora, quando o mesmo advogado aparece a representar uma entidade que, no apenso de liquidação da mesma insolvência, apresenta uma proposta para adquirir um bem da massa insolvente, é evidente o antagonismo entre os respectivos interesses e os interesses da própria insolvente.
Com efeito, a insolvente pretenderá que o bem seja vendido pelo maior valor possível e, no caso concreto, até o mais tarde possível, para resolver o problema de habitação que a perda da disponibilidade do imóvel lhe trará. É esse, de resto, o tema do outro recurso interposto da decisão em crise. No caso, sendo o valor dos créditos reclamados pouco superior a 100.000,00€, a maximização do preço da venda poderá até vir a permitir não só a satisfação de todos os créditos, mas até a sobre de capital a reverter para a própria insolvente.
Pelo contrário, por natureza, qualquer adquirente terá interesse em pagar o menor preço possível e em obter a entrega do bem negociado tão breve quanto possível, para dele passar a tirar proveito.
É, pois, por demais evidente o conflito de interesses entre a insolvente e a licitante A..., Lda, tanto bastando para que se não possa permitir que o Dr. BB ambas represente em simultâneo.
Nestas circunstâncias, um tal conflito só não se verificaria se a intervenção da A..., Lda não se destinasse à efectiva aquisição do imóvel, mas tão só a obstar a que outrem o adquirisse, a fim de conseguir que previamente à concretização da venda em leilão electrónico viesse a ser decidida outra questão que a própria insolvente suscitou, sugerindo outro destino negocial para a o imóvel, em ordem a impedir aquela venda.
Todavia, não sendo admissível tal hipótese teórica, havendo até mecanismos processuais adequados ao respectivo tratamento se a mesma se verificasse, só podemos concluir pela presença de um efectivo conflito de interesses entre a insolvente e a A..., Lda, tal como entendeu o tribunal recorrido. E, como tal, pela inadmissibilidade da representação de ambas pelo Dr. BB.
Como antes se referiu, é irrelevante para o caso a circunstância de nenhum sujeito processual se ter oposto à intervenção do Dr. BB em representação também da A..., Lda, tal como o é a circunstância de não ter sido identificado um concreto prejuízo em resultado dessa intervenção.
Com efeito, identificado o conflito, a actuação da norma, isto é, do nº 4 do art. 99º do E.O.A., impedindo a continuidade da representação simultânea de sujeitos com interesses antagónicos, basta-se com o risco de que algum desses interesses seja preterido em favor de outro, não exigindo a concreta afectação de qualquer deles."
[MTS]
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