Carece de fundamento uma interpretação extensiva da norma prevista no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, que conduza a integrar no seu âmbito as acções declarativas, como a presente, respeitantes à determinação dos bens que compõem o património comum do ex-casal que se encontra a ser partilhado em sede de processo de inventário judicial intentado na sequência de acção de divórcio.
O n.º 2 do art. 122.º da LOSJ dispõe o seguinte:
“Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”.
A recorrente argumenta que o n.º 2 do art. 122.º da LOSJ se limita a atribuir a competência em razão da matéria aos tribunais de família e menores nos processos de inventário ali identificados – o que, alega, não é manifestamente o caso presente –, acrescentando que, “a menos que a lei estipule de forma expressa em sentido contrário, a competência material do tribunal há-de buscar-se pela matéria discutida e não pela ligação da questão ou questões em causa no processo de inventário, situação que até está prevista no artº 1105º, nº 5 do CPC.”.
Vejamos.
A competência em razão da matéria atribui a diferentes espécies ou categorias de tribunais, que se situam entre si no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia entre eles, o conhecimento de determinados domínios do Direito.
De acordo com o art. 65.º do CPC, “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”, estipulando o art. 40.º da LOSJ o seguinte:
“1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.”. [...]
Com a presente causa, visa a autora determinar a titularidade da quota de € 6.600,00 na sociedade por quotas “Farmácia M..., Lda”, invocando existir controvérsia a respeito da questão de saber se tal quota é um bem próprio do réu ou, ao invés, um bem comum do ex-casal.
Coloca-se, pois, a questão – que, tanto quanto foi possível apurar, não foi até à data objecto de apreciação pela jurisprudência deste Supremo Tribunal – de saber se integra a previsão constante do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ (“Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”) a acção, intentada após instauração de processo de inventário subsequente a divórcio, destinada a determinar se um bem consistente numa quota social integra o património comum ou o património próprio de um dos ex-cônjuges.
A jurisprudência dos Tribunais da Relação encontra-se dividida a este respeito, identificando-se acórdãos que defendem que são os tribunais cíveis os competentes para julgar acções declarativas intentadas na sequência de processos de inventário para partilha de bens comuns subsequentes a divórcio (cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020, proc. n.º 1029/20.8T8PRD.P1, do Tribunal da Relação de Évora de 11-05-2023, proc. n.º 3723/22.0T8FAR.E1, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-12-2023, proc. n.º 754/23.6T8LRA.C1, e de 21-05-2024, proc. n.º 2944/23.2T8LRA, todos disponíveis em www.dgsi.pt), enquanto outros arestos sustentam que tal competência material reside nos tribunais de família (cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-05-2021, proc. n.º 592/20.8T8PBL.C1 (com voto de vencido) e de 16-05-2023, proc. n.º 612/22.1T8CTB.C1, consultáveis em www.dgsi.pt). Já o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-07-2024, proc. n.º 2566/22.5T8LRA-B.C1, in www.dgsi.pt, adoptou uma posição intermédia, defendendo que a competência material para a acção declarativa de condenação, intentada na sequência da suspensão de inventário para separação de meações, subsequente a divórcio, por força da remessa para os meios comuns da decisão da questão inventarial controvertida, cabe, por regra, aos juízos de família e menores, apenas se excluindo tal competência se a situação a decidir for para além da partilha de determinado bem e a sua averiguação/resolução se impuser a outros intervenientes processuais (que não apenas os ex-cônjuges).
A questão é comumente analisada a propósito da competência para a apreciação da acção declarativa que é intentada na sequência da remessa, operada em processo de inventário, para os meios comuns, prevista no art. 1093.º, n.º 1, do CPC, no qual se prescreve o seguinte:
“Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.”.
No caso sub judice, não é claro, através da leitura dos esclarecimentos prestados pela recorrente no requerimento datado de 17-06-2024, que essa remessa tenha sido decretada na sequência da reclamação à relação de bens apresentada no processo de inventário, circunstância que, porém, não altera os pressupostos com base nos quais a discussão em torno da questão da competência material tem sido equacionada.
A corrente jurisprudencial que se pronuncia pela competência dos tribunais cíveis alicerça o seu entendimento nos seguintes argumentos: (i) as decisões a tomar nos meios comuns sê-lo-ão fora de um processo de inventário, num processo autónomo, não fazendo sentido que o juízo de família e menores decida no âmbito de um inventário no sentido da remessa para os meios comuns e depois seja o mesmo juízo a decidir questões cíveis relacionadas com direitos reais, de natureza contratual ou de competência dos tribunais do comércio, num desvio à regra da especialização dos tribunais; (ii) a matéria que extravasa o processo de inventário extravasa também o âmbito da jurisdição da família e menores e cairá no âmbito estritamente cível; (iii) não resulta expressamente da lei que os juízos de família e menores sejam competentes para apreciar as acções declarativas em apreço, sendo que a referência do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ aos processos de inventário se esgota em si mesma; (iv) a competência para a tramitação de acções comuns encontra-se definida no art. 117.º, alínea a), da LOSJ, salvo nos casos em que a mesma seja atribuída aos juízos locais cíveis, por força do art. 130.º, n.º 1, igualmente da LOSJ; (v) não resulta do processo legislativo que levou à introdução do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ que tenha existido o propósito de incluir na competência dos juízos de família e menores acções comuns instauradas por força do regime previsto no art. 1093.º, n.º 1, do CPC.
Por seu turno, a corrente jurisprudencial que insere no âmbito de competência material dos tribunais de família as acções declarativas sob escrutínio elenca os seguintes fundamentos: (i) também nesta sede se fazem sentir as razões que determinam que a competência para a tramitação dos autos de inventário para partilha dos bens comuns, subsequente a divórcio, resida nos juízos de família e menores, que se prendem com a relação de dependência e conexão entre ambos os processos, justificada por razões de economia processual, considerando que no processo de divórcio constarão – ou poderão constar – elementos relevantes para a determinação da partilha a efectuar no inventário subsequente; (ii) se o legislador pretendesse estabelecer qualquer diferenciação entre as questões a resolver no processo de inventário e, designadamente, que a competência dos juízos de família e menores ficava limitada aos termos estritos do processo de inventário, e não já às acções instauradas na sequência deste, por remessa para os meios comuns, tê-lo-ia dito, o que não fez; (iii) caso não existisse decisão de suspender o processo de inventário para remessa para os meios comuns relativamente a uma determinada questão pela sua complexidade, sempre seria o juízo de família e menores a decidir a questão.
7. Há que tomar posição, começando por analisar o regime legal aplicável.
De acordo com a alínea b) do n.º 1 do art. 1083.º do CPC, o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.
Estatui, por seu lado, o n.º 1 do art. 1133.º do mesmo diploma que, “decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”.
Como se referiu, o n.º 2 do art. 122.º da LOSJ preceitua que “os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”. Esta norma, como advertem Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 669), terá de ser devidamente adaptada ao novo quadro normativo relacionado com a distribuição de competências relativamente aos processos de inventário, que alterou profundamente o regime de exclusividade que, nesta matéria, era atribuída aos cartórios notariais pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março. [...]
E quanto às acções declarativas, como a presente, intentadas na sequência de um processo de inventário subsequente a divórcio, em que se discute a determinação dos bens que compõem o património comum: integrar-se-ão estas na previsão normativa contida no n.º 2 do art. 122.º da LOSJ?
A resposta a tal questão dependerá dos resultados da actividade interpretativa desenvolvida a respeito da norma em causa. Neste exercício, há que ter em conta, como notou o acórdão deste Supremo Tribunal de 22-06-2023 (proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, “a importância de na interpretação da lei processual, o modelo constitucional do processo equitativo exigir que a definição do sentido das normas que indiquem às partes um determinado comportamento processual que devam seguir, incluindo a daquelas que estabelecem quais os tribunais onde devem ser propostas as ações que os cidadãos decidam instaurar para defesa dos seus direitos, não se traduza numa solução de difícil previsibilidade, afetando a confiança da parte no que a letra do preceito legal dispõe. Essa situação ocorreria, com manifesta ofensa dessa exigência constitucional caso se entendesse que o tribunal competente não é aquele que é indicado no preceito que especificamente determina qual o tribunal onde devem ser propostas um concreto tipo de ações.”.
Importa, assim, lançar mãos dos critérios hermenêuticos previstos no art. 9.º do Código Civil para determinar o sentido da norma consagrada no n.º 2 do art. 122.º da LOSJ, apelando aos elementos gramatical, teleológico (consistente no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), sistemático (que compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo em que se integra a norma interpretanda) e histórico (que abrange elementos relativos à história do preceito, desde logo a história evolutiva do regime em causa) - cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 181-184.
Segundo o comando ínsito no art. 9.º do CC, há que partir da letra da lei – do seu enunciado linguístico – para perscrutar o pensamento que lhe está subjacente, funcionando o elemento gramatical simultaneamente como limite, uma vez que não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei o pensamento legislativo “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do art. 9.º do CC) – cfr. Baptista Machado, ob. cit., págs. 188-189.
Sob a perspectiva da interpretação declarativa, é inegável que a letra da norma em causa (“os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio (...)”) restringe a competência dos tribunais de família aos processos de inventário instaurados em consequência de acções matrimoniais, não abarcando, na sua literalidade, acções declarativas, ainda que as pretensões nas mesmas deduzidas pudessem ser apreciadas, por via incidental, no processo de inventário (cfr. art. 91.º do CPC).
Será que a razão de ser da norma postula a sua aplicação a estes casos, que não são directamente abrangidos pela sua letra?
Não nos parece.
Com efeito, se é verdade que se poderá verificar uma vantagem, em termos de celeridade e de boa administração da justiça, na concentração, no mesmo tribunal, da competência para a resolução das questões que se prendem com a definição do acervo a partilhar pelo ex-casal, esta vantagem seria neutralizada pelo desvio à especialização que implicaria atribuir a um tribunal de família e menores o julgamento de acções em que se discutirão temas estranhos às matérias relativas ao estado civil das pessoas e família, a menores e filhos maiores, e ao domínio tutelar educativo e de protecção que tipicamente integram a sua competência (cfr. arts. 122.º a 124.º da LOSJ).
Ora, é comumente sabido que o alargamento de jurisdições especializadas constituiu um objectivo estrutural da reforma do sistema judiciário, pelas óbvias vantagens que oferece, sob o ponto de vista da eficiência processual, ante a complexidade e especificidade normativas dos diversos ramos do direito substantivo. Não é, pois, configurável que o legislador, intensamente comprometido com o princípio da especialização, pretendesse estender a competência dos tribunais de família nos termos defendidos pelo tribunal a quo – para além dos processos de inventário que constituem decorrência imediata da dissolução do casamento ou eventos análogos –, justamente para causas que, presumivelmente, apresentarão uma complexidade atípica, não compaginável com a tramitação simplificada e as limitações probatórias inerentes ao processo de inventário.
Na verdade, em acções como a presente – ao contrário do que sucede com o processo de inventário – não está em causa a concretização da separação da meação dos bens comuns do ex-casal. Nesta medida, entende-se que apenas o processo de inventário – e já não as acções declarativas, como a presente, em que se discutam questões prejudiciais relativamente ao mesmo inventário – constitui uma decorrência directa da dissolução do casamento por sentença judicial, justificando a competência por conexão estabelecida pelo n.º 2 do art. 122.º da LOSJ.
Sob outra perspectiva, dir-se-á que alargar aos tribunais de família a competência para julgar as mencionadas acções declarativas significaria reconhecer a existência de um critério desigual, que não se nos afigura materialmente fundado, de aferição da competência material quanto a processos incidentes sobre questões prejudiciais aos processos de inventário referidos no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, relativamente a processos incidentes sobre questões prejudiciais aos restantes processos de inventário judicial. Também nestes últimos, certamente, se sentiriam as vantagens de ter o mesmo tribunal, já familiarizado com a matéria do processo de inventário, a decidir questões que lhe são prejudiciais – e o legislador não consagrou qualquer competência por conexão fundamentadora de uma excepção às regras gerais que disciplinam a competência em razão da matéria.
Deste modo, afigura-se carecer de fundamento, pelas razões expostas, uma interpretação extensiva, a concretizar mediante extensão teleológica, da norma prevista no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, que conduza a integrar no âmbito desta norma as acções declarativas, como a presente, respeitantes à determinação dos bens que compõem o património comum do ex-casal que se encontra a ser partilhado em sede de processo de inventário judicial intentado na sequência de acção de divórcio.
MTS