"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/10/2025

Jurisprudência 2025 (21)


Segredo profissional;
segredo médico; consentimento


1. O sumário de RE 16/1/2025 (746/22.2T8SSB.E1) é o seguinte:

- em acção de anulação de testamento por incapacidade da testadora deve admitir-se o depoimento de médico, sobre a situação da testadora, com base em consentimento de descendente da testadora ou em consentimento presumido da testadora.

- é admissível a impugnação da decisão sobre a matéria de facto relativa a factos atinentes ao estado mental da testadora quando na alegação do recurso este estado mental é indicado como objecto da impugnação de facto e nas conclusões se identificam directamente os factos que se reportam àquele estado mental.

- o ónus da prova da situação de incapacidade da testadora incumbe ao A., não sendo necessário, na falta de demonstração daquela incapacidade, discutir factualmente a verificação da capacidade da testadora.

- o art. 278º n.º3 do CPC permite dispensar a avaliação da ilegitimidade processual do A. quando a decisão de mérito seja integralmente favorável ao R..
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV.1. A primeira questão probatória colocada diz respeito à valoração dos depoimentos prestados por dois médicos.

As testemunhas em causa, enquanto médicos, estavam sujeitos ao segredo médico profissional derivado da sua qualidade, estando também a matéria sobre que depuseram inserida no âmbito de protecção desse segredo, como deriva com clareza do art. 139º n.º 2 do Estatuto da ordem dos médicos (aprovada pelo DL 282/77, de 05.07, doravante EOM), dada a larga abrangência da previsão.

Este segredo, constituindo também suporte da relação de confiança a estabelecer com o paciente e instrumento de dignificação da actividade médica [---], é no entanto primacialmente justificado pela protecção da reserva da vida privada, e mesmo íntima (quanto à saúde), da pessoa [---], reserva esta que constitui objecto de um direito fundamental da pessoa (art. 26º n.º 1 da CRP), e é também emanação, a nível infraconstitucional, do direito à personalidade e aos vários aspectos em que este se desdobra (art. 70º n.º 1 e 80º n.º 1 do CC). Segredo, e inerente protecção, que, em linha com o regime do art. 71º n.º 1 do CC, se mantém após a morte do doente (art. 139º n.º 4 do EOM).

Por isso que, não podendo o médico dispor por si do segredo, deve, em caso de intimação como testemunha (na qualidade de médico), comparecer no tribunal, mas não poderá prestar declarações ou produzir depoimento sobre matéria de segredo médico, a não ser com o consentimento do doente, do seu representante legal se houver incapacidade para consentir, ou do Presidente da Ordem (art. 91º n.º 1 do CDM e art. 417º n.º 3 al. c) do CPC).

Deste modo, a violação do segredo profissional corresponde também a uma violação de um direito fundamental da pessoa (citados art. 26º n.º 1 da CRP e art. 80º n.º 1 do CC, em conjugação com o art. 32º n.º 8 da CRP [---]), a qual pode redundar, a estar em causa actividade probatória, na ilicitude da própria prova (diferente do vício meramente processual), acarretando a inadmissibilidade da utilização da prova assim produzida. Proibição de valoração esta que poderia impedir o seu aproveitamento probatório (embora esta seja esta questão cujos exactos contornos e efeitos sejam discutidos).

Não sendo absoluto, o segredo pode ser afastado nas hipóteses do art. 139º n.º 6 do EOM, onde avulta o consentimento do doente (al. a)), sintoma da subordinação deste segredo profissional aos interesses do doente (e, assim, da localização do fundamento essencial deste segredo na referida protecção da vida privada do doente) - todas as normas do EOM referidas vêm repetidas no Regulamento de deontologia médica, aprovado pelo Regulamento 707/2016, de 21.07 (doravante RDM).

No caso, atentos os seus contornos e inexistindo notícia de autorização do Bastonário da ordem dos médicos, fica afastada a possibilidade de aplicação das hipóteses derrogadoras do segredo profissional constantes das al. b) a d) do n.º 6 do referido art. 139º do EOM (ou art. 32º do RDM, que, com propriedade, se refere à exclusão do segredo médico). O afastamento daquele segredo só poderia decorrer, assim, da existência de conflito de valores ou de consentimento do doente. Quanto àquele conflito, supondo uma recusa legítima de depor e um mecanismo processual específico (art. 417º n.º4 do CPC e art. 135º n.º 3 do CPP), inexistentes, também não releva no caso.

Quanto ao consentimento, e tendo falecido o paciente, coloca-se a questão de saber a quem cabe prestar tal consentimento [---]. A lei não faculta uma resposta directa mas decorre do art. 77º do CC, em conjugação com o art. 76º n.º 2 do CC para que aquele remete, que a legitimidade para consentir a divulgação de escritos reportados à intimidade da vida privada cabe às pessoas designadas no art. 71º n.º2 do CC, na ordem neste artigo indicada. Assim, dada a inexistência de cônjuge sobrevivo no caso, aquela legitimidade caberia aos descendentes do falecido. Esta solução deve valer, ao menos por identidade de razão, para a divulgação de dados médicos (que também se reportam à reserva da vida privada, não havendo razão para tratamento diferenciado). E uma vez que a lei não efectua distinções dentro de cada grupo de interessados, nem coloca exigências adicionais, partindo de uma igualação básica dos descendentes entre si (o art. 76º n.º 2 do CC hierarquiza os grupos de interessados - o que o art. 71º n.º2 do CC não faz [---] - mas não faz distinções dentro de cada grupo), deve valer uma solução de solidariedade, em que cada descendente pode agir isoladamente [---]. À luz desta solução, teria que aceitar-se que, embora inexista consentimento expresso do A., este consentimento deriva tacitamente da sua conduta processual, de forma segura, pelo que tal consentimento, não violando qualquer princípio da ordem púbica, tornaria lícita a limitação (ou exclusão) do dever de segredo, no quadro do art. 81º n.º1 do CC. O que poderia existir, dada a posição assumida pelo R. (o qual é igualmente descendente do doente protegido pelo segredo médico), era um conflito entre titulares do consentimento, portadores de posições opostas. Este conflito deveria resolver-se de acordo com a vontade real ou presumida do falecido [Adoptando este critério, em situação paralela, R. Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, Coimbra editora 1995, pág. 194.]. Ora, atendendo a que o que está em causa é, em último termo, avaliar e respeitar a real vontade da testadora (pois uma vontade viciada não é uma vontade real e aquela quereria exclui-la; simetricamente, teria interesse em manter a sua vontade se não viciada), seria de presumir que esta consentiria na divulgação dos elementos em causa (a fim de se salvaguardar a sua real vontade). Aferição esta ainda acentuada pelo facto de a posição do R. não se basear directamente na tutela de valores atinentes à sua mãe mas, notoriamente, na promoção de interesses pessoais, radicados na manutenção do testamento que o beneficia. O que torna lícito o depoimento daquelas testemunhas.

Por outra via, afirma-se também que em situações de conflito entre herdeiros, após a morte, em que «são necessários certos conhecimentos que apenas podem ser obtidos através do médico que tratou o falecido», deve intervir o consentimento presumido, o qual, dado o exposto interesse no apuramento da vontade real que o próprio testador teria, deveria legitimar a restrição do seu direito à reserva da vida privada, autorizando o depoimento, tendo em conta o disposto no art. 341º n.º1 e 3 do CC [ Assim, André Gonçalo Dias Pereira, O Sigilo Médico: análise do direito português, pág. 29 (disponível online), solução a que também aderiu o Ac. do TRG proc. 1108/14.0TJVNF.G1, in 3w.dgsi.pt]

Naturalmente, esta solução abrange também os elementos médicos revelados através dos documentos juntos aos autos [---]

Inexiste assim ilicitude probatória."

[MTS]