"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/10/2025

Jurisprudência 2025 (15)


Protecção jurídica;
deferimento tácito; revogação

1. O sumário de RC 14/1/2025 (2491/23.2T8ACB-B.C1) é o seguinte:

No domínio da proteção jurídica, e em abono da verdade e da justiça material, a decisão tacita oriunda do mero decurso do tempo – artº 25º nº 2 da Lei 34/2004, de 29.07, - pode ser revogada, expressa ou implicitamente, por ulterior decisão adrede proferida, nos termos do artºs 167º nº 2 al. b) do CPA aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07.1. e do artº 10º nº 1 als. a) e b) Lei 34/2004, aplicáveis a acervo factual análogo.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6.1.

O direito à proteção jurídica implica para o interessado o ónus de demonstrar estar em situação de insuficiência económica. – artº 7º da Lei 34/2004, de 29 de Julho.

Entendendo-se que está nesta situação se não tem condições objetivas para suportar pontualmente os custos de um processo – artº 8º.

Transferido para os Serviços da Segurança social, ao processo de petição, apreciação e concessão do beneficio do apoio judiciário, aplica-se, na sua tramitação, designadamente no que tange à formação e revogação do atos, o regime do CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07 de Janeiro.

Está aqui em causa a formação e revogação do chamado ato tácito.

Este ato apenas pode ser formado se existir lei que expressamente o permita.

No caso vertente ela existe.

É o artigo 25º da referida Lei 34/2004, o qual estatui:

«1 - O prazo para a conclusão do procedimento administrativo e decisão sobre o pedido de protecção jurídica é de 30 dias, é contínuo, não se suspende durante as férias judiciais e, se terminar em dia em que os serviços da segurança social estejam encerrados, transfere-se o seu termo para o 1.º dia útil seguinte.
 
2 - Decorrido o prazo referido no número anterior sem que tenha sido proferida uma decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de protecção jurídica.»

O deferimento de uma pretensão com base num ato tácito assenta apenas numa vontade presumida da administração, adveniente, v.g., e no que ora interessa, do decurso de um certo lapso temporal.

Tal presunção pode, assim, assentar mais numa ficção formal do que numa realidade substantiva.

Sendo que, obviamente, e em abono da verdade e da justiça, é esta última realidade a necessária à fundamentação do direito concedido.

O que pode não acontecer com o deferimento tácito; basta pensar que ele derive de uma inação forçada da administração, v.g. oriunda de insuficiência de meios para decidir, atempadamente, as pretensões que lhe são submetidas.

Na verdade:

«O acto tácito de deferimento constitui uma manifestação de vontade presumida e, porque assim é, a prolação de acto expresso em sentido contrário ao da vontade presumida faz com deixe de fazer sentido falar-se em vontade presumida e, portanto, em acto tácito.» - Ac STA de 09.10.2002, p. 047598 in dgsi.pt. como os infra cits.

Nesta conformidade:

«O deferimento tácito do apoio judiciário não se sobrepõe ao indeferimento expresso subsequente, constante de decisão proferida pela entidade competente e que não foi objecto de impugnação.» - Ac. RP de 18.10.2012, p. 6672/10.0YYPRT-A.P1.

Daqui decorre que, se em relação aos atos expressos, a sua revogação ou anulação é possível de efetivar pela administração, em relação aos atos tácitos tal poder, por maioria de razão – argumento a fortiori – pode/deve emergir com maior acuidade e pertinência.

A revogação constitui a válvula de escape do sistema.

Sendo que, assim, ela convoca:

«uma ponderação sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade, quando esteja em causa um ato tácito constitutivo de direitos tal não haverá de ser diferente, sendo tal princípio chamado a encontrar o correto equilíbrio de interesses quando esteja em causa desfazer um direito que só se formou pela conjugação da inércia da Administração com o efeito da lei.» - Angela Lucas: in O REGIME DA REVOGAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO E A INDEMNIZAÇÃO DO BENEFICIÁRIO DE BOA-FÉ in https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/43063/1/203381700.pdf. [...].

Porém, o poder revogatório da administração não é discricionário e ilimitado, estando sujeito a limites e condições.

Assim:

Artigo 167.º do DL n.º 4/2015:

Condicionalismos aplicáveis à revogação

1 - Os atos administrativos não podem ser revogados quando a sua irrevogabilidade resulte de vinculação legal ou quando deles resultem, para a Administração, obrigações legais ou direitos irrenunciáveis.

2 - Os atos constitutivos de direitos só podem ser revogados:

a) Na parte em que sejam desfavoráveis aos interesses dos beneficiários;

b) Quando todos os beneficiários manifestem a sua concordância e não estejam em causa direitos indisponíveis;

c) Com fundamento na superveniência de conhecimentos técnicos e científicos ou em alteração objetiva das circunstâncias de facto, em face das quais, num ou noutro caso, não poderiam ter sido praticados;

d) Com fundamento em reserva de revogação, na medida em que o quadro normativo aplicável consinta a precarização do ato em causa e se verifique o circunstancialismo específico previsto na própria cláusula.

Por outro lado, estatui o artº 10º da Lei 34/2004:

Cancelamento da protecção jurídica

1 - A protecção jurídica é cancelada, quer na sua totalidade quer relativamente a alguma das suas modalidades:

a) Se o requerente ou o respectivo agregado familiar adquirirem meios suficientes para poder dispensá-la;

b) Quando se prove por novos documentos a insubsistência das razões pelas quais foi concedida;

c) Se os documentos que serviram de base à concessão forem declarados falsos por decisão com trânsito em julgado;

Havendo ainda que atentar no disposto no artº 23.º da mesma Lei, a saber:

Audiência prévia

1 - A audiência prévia do requerente de protecção jurídica tem obrigatoriamente lugar, por escrito, nos casos em que está proposta uma decisão de indeferimento, total ou parcial, do pedido formulado, nos termos do Código do Procedimento Administrativo.

2 - Se o requerente de protecção jurídica, devidamente notificado para efeitos de audiência prévia, não se pronunciar no prazo que lhe for concedido, a proposta de decisão converte-se em decisão definitiva, não havendo lugar a nova notificação.»

Finalmente, urge ter presente que a decisão final sobre o pedido de proteção jurídica, máxime a decisão expressa, só pode ser atacada via impugnação judicial – artº 26º e 27 da aludida Lei 34/2004.

6.2.

In casu.

Não tendo sido proferida decisão no prazo de trinta dias, formou-se, numa visão formal estrita, um ato tácito de deferimento pelo mero decurso do tempo.

Porém, desde logo há que perspetivar que, ao que parece, ainda dentro de tal prazo, a SS formulou um juízo negativo de improcedência do pedido de apoio judiciário.

Tanto assim que, apesar de já depois do prazo decorrido, ou seja, em 22.04.2024, notificou a requerente para uma audiência prévia, nos termos do artº 23º sup. cit.

A requerente faltou, pelo que a SS converteu a sua proposta de indeferimento em indeferimento definitivo.

Existiu, pois, uma decisão expressa de indeferimento.

Esta decisão constitui uma revogação implícita do deferimento tácito apenas decorrente do decurso do tempo.

E tal revogação é possível porque dos aludidos artºs 167º nº 2 al. c) e 10º nº 1 als. a) e b).

Pois que se, perante eles, ela é admissível no caso de se provarem novos elementos factuais que contrariem os anteriores, também o deve ser, por igualdade ou maioria de razão – argumento a fortiori - , nos casos, como o presente, em que, no entender dos serviços da SS, a insuficiência económica nunca foi, ao menos suficientemente, provada.

Aliás, mesmo que a decisão revogatória fosse ilegal, há quem entenda que ela, desde que não impugnada, relevaria no sentido da infirmação da decisão tácita - cfr. Ac. RP de 27.03.2008, p. 0831359.

Assim, e bem vistas as coisas, o deferimento tácito apenas existiu formalmente, pelo decurso do tempo, sendo que, na realidade, nunca existiu, pois que, como se viu, a administração nunca esteve convencida da insuficiência económica da requerente.

Tanto assim que a convidou para a audiência prévia.

Na qual, ela poderia melhor explicitar e fundamentar a sua pretensão.

Não tendo comparecido na audiência, a requerente postergou o seu dever de colaboração e o seu ónus de provar e convencer sobre a sua insuficiência económica.

E, aqui também ao menos tacitamente, aceitou uma possível decisão desfavorável.

Ademais, notificada desta decisão, a recorrente com ela se conformou, não a impugnando judicialmente.

Destarte, esta decisão ulterior deve, em abono da verdade material e da realização da justiça, relevar e sobrepor-se ao deferimento tácito oriundo do mero decurso do tempo.

Improcede o recurso."

[MTS]