"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/10/2025

Jurisprudência 2025 (11)


Arresto;
direito de crédito; objecto da providência


1. O sumário de RP 23/1/2025 (1163/24.5T8STS.P1) é o seguinte:

I - O arresto preventivo depende, em conformidade com o disposto no art. 392.º, n.º 1, do CPC, da verificação de duas circunstâncias: a probabilidade de existência do crédito; o justo receio de perda da garantia patrimonial.

II - Não resultando indiciariamente provada a existência do pretenso direito de crédito (indemnização pelo prejuízo decorrente da falta de restituição de imóvel objeto de contrato de comodato celebrado com o requerido, após interpelação deste para tal restituição), mas antes factualidade que indicia uma relação jurídica distinta – arrendamento –, falece o pressuposto da provável existência do direito de crédito.

III - Ainda que fosse titular de outro direito de crédito (não alegado) emergente de relação jurídica distinta da por si configurada e alegada, não poderia ser decretado qualquer arresto de bens para garantir tal outro pretenso e indeterminado crédito (fundado em rendas vencidas e não pagas, não alegadas), por tal se traduzir numa completa distorção e violação de princípios basilares do processo civil: princípio do pedido e da contradição e proibição de decisões surpresa (art. 3.º do Cód. Proc. Civil), ónus de alegação e poderes de cognição do tribunal (art. 5.º do Cód. Proc. Civil), princípio da estabilidade da instância (arts. 260.º, 264.º e 265.º do Cód. Proc. Civil), limites da instrução e da decisão (arts. 411.º e 609.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1.2. Requisito da provável existência do crédito.

O arresto, enquanto procedimento cautelar especificado, visa afastar o perigo de demora da decisão a proferir (ou já proferida caso em que se destina a garantir o pagamento do crédito já existente) na ação de que é dependência, nos termos do art. 364.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil. Assim (sem prejuízo dos casos de inversão do contencioso), a decisão a proferir não constitui uma apreciação ou juízo definitivo da existência do direito mas uma decisão provisória fundada numa averiguação perfunctória da existência desse direito, destinada a garantir a efetividade do direito de crédito acautelado.

O arresto preventivo depende, em conformidade com o disposto no art. 392.º, n.º 1, do CPC, da verificação de duas circunstâncias:

a probabilidade de existência do crédito;
o justo receio de perda da garantia patrimonial.

No que concerne à probabilidade de existência do crédito, exige-se que exista um "fumus boni iuris", ou seja, que se possa afirmar como verosímil ou provável o direito de crédito cuja efetividade se pretende acautelar através do arresto requerido.

Quanto ao primeiro requisito – probabilidade de existência do crédito –, o requerente invocou ser titular de um crédito de € 6.300,00 sobre os requeridos, depreendendo-se suficientemente da alegação efetuada no requerimento inicial, completada pelos esclarecimentos prestados em 17/04/2024 (ref. 38780991), que tal crédito corresponde ao valor mensal da renda de € 1.050,00 que o requerente alega ter deixado de obter, por se ter visto impedido de arrendar o imóvel (emprestado ao requerido e ocupado pela sociedade), em consequência da não restituição do imóvel pelo requerido e manutenção da sua ocupação pela sociedade, apesar de o requerente ter interpelado o requerido para desocupar o imóvel que lhe havia emprestado gratuitamente até 31/10/2023, ascendendo o referido crédito de € 6.300,00 ao referido valor de € 1.1050,00 multiplicado por 6 meses (novembro e dezembro de 2023; janeiro a abril de 2024), contabilizados a partir da data em que devia ter sido efetuada a restituição exigida e até à propositura, em abril de 2024, da providência cautelar de arresto: 6 meses x € 1.050,00 = € 6.300,00.

Atenta a factualidade alegada pelo requerente como fundamento do invocado crédito, este emerge do incumprimento, pelo requerido, da obrigação de restituição do imóvel que o requerente lhe emprestou para ser usado pelo mesmo, de forma gratuita.

A causa de pedir, tal como foi configurada pelo requerente, consistiu na alegação do concreto dano da perda de obtenção de proveitos decorrentes da impossibilidade de arrendamento do imóvel a terceiro em consequência do incumprimento pelo requerido BB da obrigação de restituição de imóvel objeto de contrato de comodato celebrado com o requerente, sem estipulação de prazo, sendo fundamento da pretensa responsabilidade da sociedade requerida a manutenção, pela mesma, da ocupação ilícita do referido espaço a partir da data em que foi exigida ao requerido a restituição do imóvel (arts. 1129.º, 1135.º, 1137.º, n.º 2, 762.º e 798.º, e arts. 483.º e 562.º a 564.º, todos do Cód. Civil).

Ora, da factualidade apurada não resulta indiciariamente provado contrato de comodato invocado pelo requerente; o que se indicia é, antes, uma ocupação lícita do imóvel, fundada num contrato de arrendamento não rescindido, alegado pelos requeridos na oposição deduzida. Ou seja, o requerente fundou a causa de pedir do pretenso crédito na alegação da celebração com o requerido de um contrato de comodato e do incumprimento pelo requerido da obrigação de restituição do imóvel entregue, sendo o incumprimento dessa obrigação de restituição o facto gerador dos danos cujo direito de indemnização constitui o crédito alegado; o que emerge dos factos provados indicia a existência de uma relação jurídica distinta – arrendamento – que não suporta a afirmação do direito de crédito de € 6.300,00 alegado, referente ao prejuízo sofrido pelo requerente com a ocupação ilícita do referido armazém.

Ainda que o requerente pudesse, eventualmente, ser titular de um qualquer outro direito de crédito (aqui não alegado), não pode obviamente obter neste procedimento cautelar qualquer arresto de bens para garantir tal outro qualquer pretenso e indeterminado crédito (fundado em rendas vencidas e não pagas, não alegadas), distinto do direito de crédito que alegou neste procedimento e fundado numa relação jurídica distinta da que aqui alegou, ainda que as partes dessa outra relação jurídica possam ser as mesmas. Tal traduzir-se-ia numa completa distorção e violação de princípios basilares do processo civil: princípio do pedido e da contradição e proibição de decisões surpresa (art. 3.º do Cód. Proc. Civil), ónus de alegação e poderes de cognição do tribunal (art. 5.º do Cód. Proc. Civil), princípio da estabilidade da instância (arts. 260.º, 264.º e 265.º do Cód. Proc. Civil), limites da instrução e da decisão (arts. 411.º e 609.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).

Concluímos, deste modo, pela inexistência do invocado direito de crédito de € 6.300,00 do requerente – seja por rendas vencidas e não pagas, de resto, não alegadas (e que integram uma causa de pedir distinta da que fundamenta o direito de crédito alegado pelo requerente); seja pelo prejuízo decorrente da impossibilidade de arrendar o imóvel por força da ocupação ilícita do imóvel (uma vez que o que se indica é uma ocupação lícita do imóvel).

Em conformidade, falecendo o preenchimento do primeiro dos pressupostos de que depende o decretamento da providência cautelar de arresto, é de confirmar a decisão recorrida, improcedendo a apelação."

[MTS]