"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/09/2014

Jurisprudência (31)


Competência internacional; arresto de créditos

1. É o seguinte o sumário de RC 16/9/2014 (1782/14.8TBLRA-A.C1):

"I – Configura-se o arresto (artigos 391.º e segs. do CPC), no plano processual, como antecipação da penhora em vista da ulterior necessidade de adjectivação executiva, assegurando cautelarmente a conservação da garantia patrimonial do credor. 

II – Existe, neste sentido, uma sobreposição funcional entre a garantia cautelar mediante arresto e a execução. 

III – Assim, a colocação de uma questão de competência internacional para o decretamento de um arresto por um tribunal português deve ser resolvida em termos idênticos à da competência internacional para a acção executiva. 

IV – A circunstância de a realização coactiva da prestação, por via da acção executiva, dever incidir sobre bens existentes no estrangeiro coloca uma questão de competência internacional dos tribunais portugueses, quando o alcance executivo pretendido incida sobre bens situados no estrangeiro, o mesmo valendo quando se pretende que esse alcance opere, cautelarmente, mediante arresto. 

V – A adjectivação executiva está submetida ao princípio da territorialidade, no sentido de referenciação ao monopólio que cada Estado possui quanto ao desencadear de medidas coactivas (executivas) no seu território. 

VI – Embora um direito, como objecto de uma penhora, no quadro de uma acção executiva (e isto vale para o arresto de um direito), seja de difícil localização espacial, deve entender-se referida essa localização ao “lugar de cumprimento da obrigação” quando se trata de determinar o local relevante para a adopção de medidas coactivas sobre o devedor respeitantes a esse direito, designadamente quanto à realização da prestação envolvida a um terceiro não credor (quanto à realização da prestação devida a um credor do credor).

VII – Assim, num quadro exterior à União Europeia e ao chamado “espaço Lugano”, onde são convocadas fontes específicas de Direito convencional relevantes em matéria de competência internacional, deve considerar-se internacionalmente incompetente um Tribunal português para decretar o arresto de um direito cujo lugar de cumprimento da obrigação se situe no estrangeiro.

VIII – Vale esta conclusão num quadro de bilateralização da competência internacional, no sentido em que, se os Tribunais portugueses se consideram exclusivamente competentes, por via da projecção interpretativa do artigo 63.º, alínea e) [d)] do CPC, para execuções (arrestos) incidentes sobre bens situados em Portugal, devem referenciar essa competência como exclusiva de um Tribunal estrangeiro quando a execução (arresto) pretende alcançar um bem situado no estrangeiro."

2. O acórdão resolve um caso muito interessante: trata-se de saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para decretar o arresto de um crédito que deve ser cumprido no estrangeiro (in casu, em Israel). Dado que Israel não é Estado-membro do Reg. 44/2001 e não é Parte Contratante da CLug II e porque não há nenhuma convenção internacional multilateral ou bilateral aplicável, a solução só pode ser procurada no âmbito do direito interno português.

O acórdão argumenta com a territorialidade das medidas executivas para não reconhecer aos tribunais portugueses competência internacional para decretarem o arresto de dois créditos da requerida, atendendo à circunstância de esses créditos deverem ser satisfeitos pelo terceiro devedor em Israel.

Argumenta-se no acórdão: "é nessa outra ordem jurídica [isto é, em Israel] que o efeito aqui pretendido obter deverá ser feito actuar, não tendo sentido um Tribunal português ordenar uma medida executiva cujo sentido é o de determinar uma determinada actuação a um sujeito domiciliado no estrangeiro, quando essa injunção visa um comportamento que ocorrerá num outro país e, por isso mesmo, o Tribunal português não está em posição de verdadeiramente condicionar, a partir de cá, o comportamento desse sujeito. Dizer-se [como argumenta a requerente] que isso se resolve com uma notificação (com a transmissão de uma ordem com origem num Tribunal português) é fechar os olhos à realidade da adjectivação executiva, é aceitar que essa adjectivação se baste com a criação de uma espécie de obrigação natural (estamos, obviamente, a fornecer uma imagem) sem possibilidade de assegurar verdadeiramente um cumprimento coactivo da prestação devida."

O acórdão também argumenta com a bilateralização do disposto no art. 63.º, al. d), CPC, relativo à competência exclusiva dos tribunais portugueses quando a execução tenha por objecto imóveis situados em território português, extraindo desse preceito que, se não houver uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa, a execução não pode decorrer em Portugal. No fundo, o que o acórdão faz é reconhecer que os tribunais israelitas, de acordo com o próprio critério utilizado pela ordem jurídica portuguesa para atribuir competência executiva aos tribunais portugueses, têm, atendendo ao lugar do cumprimento dos créditos, uma conexão mais relevante com o pedido de arresto do que os tribunais portugueses.

3. Contra a orientação que fez vencimento no acórdão poder-se-ia argumentar que, seguindo-se essa mesma orientação, então haveria que concluir que, numa execução pendente em Portugal, nunca seria possível penhorar um crédito cujo lugar de cumprimento se situasse no estrangeiro. 

É fácil concluir que o argumento não pode ser considerado procedente. Se a execução se encontra pendente num tribunal português, é porque essa execução possui uma conexão suficiente com a ordem jurídica portuguesa que justifica a atribuição de competência internacional executiva dos tribunais portugueses: é o que acontece, por exemplo, quando se trata da execução de uma sentença proferida em Portugal. Nesse caso, a conexão com a ordem jurídica portuguesa é estabelecida por um elemento completamente estranho a qualquer penhora de um crédito, nada impedindo então que, nessa execução, possa vir a ser penhorado um crédito cujo lugar do cumprimento se situa no estrangeiro.

Dito de outra forma: a doutrina defendida no acórdão impede que o domicílio do executado, apenas pela circunstância de este ser credor do crédito que se pretende penhorar, possa ser admitida como uma conexão suficiente com a ordem jurídica portuguesa quando o lugar do cumprimento desse crédito se situe no estrangeiro; no entanto, essa doutrina não impede que, estando a competência internacional dos tribunais portugueses para uma execução estabelecida por uma qualquer outra conexão, possa vir a ser penhorado nessa execução um crédito cujo lugar de cumprimento se situa no estrangeiro.

É claro que esta resposta é, como sucede necessariamente quando se analisa a competência internacional com base em regras internas (isto é, em regras que não visam nenhuma harmonização supranacional), puramente unilateral. Só se está a afirmar que, estando pendente uma execução pendente em Portugal num tribunal internacionalmente competente, é possível, na perspectiva da ordem jurídica portuguesa, penhorar um crédito nessa execução, ainda que o lugar do cumprimento desse crédito se situe no estrangeiro. A resposta abstrai de todas as possíveis dificuldades que podem decorrer do não reconhecimento dessa penhora no Estado do lugar do cumprimento do crédito e da eventual impossibilidade de executar o terceiro devedor nesse Estado.

 4. A latere, importa acrescentar que o acórdão aproxima, em termos de natureza jurídica, o arresto da penhora, o que é totalmente correcto quer pelos efeitos do arresto -- que são equivalentes aos da penhora (cf. art. 622.º e 819.º, n.º 1, CC) --, quer pela conversão ex lege do arresto em penhora (cf. art. 762.º CPC) -- o que só é possível, porque o arresto e a penhora comungam da mesma natureza jurídica.

MTS