"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/09/2014

Competência internacional; arresto de créditos




1. A penhora de créditos constitui um problema “clássico” do processo executivo internacional: não há exposição sobre este processo que não procure fornecer uma solução para esse problema. Assim, na sequência do breve comentário feito a RC 16/9/2014, aproveita-se para acrescentar algo sobre a temática da penhora – e, consequentemente, do arresto – de créditos com elementos de estraneidade.

2. Nos termos do art. 391.º, n.º 1, CPC, são aplicáveis ao arresto as disposições relativas à penhora. Esta remissão envolve a aplicação do disposto no art. 773.º, n.º 1, CPC, segundo o qual a penhora de créditos – e, portanto, o arresto de créditos – consiste na notificação ao terceiro devedor de que o crédito fica à ordem do agente de execução.

Isto significa que a notificação do terceiro devedor não é um acto integrante da penhora de créditos, mas antes o próprio acto em que se traduz a penhora do crédito. Dito de outra forma: a notificação do terceiro devedor não é uma formalidade destinada a permitir-lhe que, nos termos do art. 773.º, n.º 2, CPC, se pronuncie sobre a existência do crédito, as garantias que o acompanham, a data do seu vencimento e ainda sobre quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução, mas antes o elemento constitutivo da penhora do crédito.

É por isso que, na perspectiva da ordem jurídica portuguesa (assim como de muitas outras), a penhora de créditos cujo terceiro devedor tenha o seu domicílio no estrangeiro é tão problemática. Trata-se de impor a um sujeito com domicílio num Estado e que não foi anteriormente ouvido em juízo os efeitos de um acto soberano de um outro Estado.

3. Na penhora de créditos, há três sujeitos envolvidos: o credor exequente, o devedor executado e, por fim, o terceiro devedor (que é devedor do devedor executado). Se o terceiro devedor tiver domicílio no Estado da execução, não há problemas: o crédito do devedor executado pode ser penhorado, ainda que alguma ou ambas as partes da execução sejam estrangeiras ou tenham domicílio no estrangeiro.

A situação torna-se verdadeiramente problemática quando o terceiro devedor tiver domicílio num Estado diferente do Estado da execução. Sobre esta situação escreveu P. Gottwald (IPRax 1991, 289), depois de analisar o caso em que o terceiro devedor tem domicílio no Estado da execução e que considera não ser problemático, o seguinte:

“Duvidoso é […] o caso contrário, quando o devedor tem a sua situação jurisdicional geral (domicílio/sede) no País, mas, em contrapartida, o terceiro devedor tem o seu domicílio/sede no estrangeiro. Se, neste caso, se aplicar a regra sobre a competência territorial que consta do § 828 II ZPO à competência internacional, pode ser proferida no País, atendendo ao domicílio do devedor no País, uma penhora e uma decisão que impõe o pagamento [ao exequente]. Alguns defendem até a opinião de que¸ segundo os §§ 828 II e 23 ZPO, a penhora de um crédito é admissível no País, quando o devedor não tenha nenhum domicílio no País, mas, apesar disso, tenha neste património. O proferimento de uma decisão de penhora não viola o direito internacional público. Pois, na verdade, o princípio da territorialidade proíbe apenas a aplicação da força no território estrangeiro, mas não o proferimento de actos de soberania destinados a produzir efeitos no estrangeiro e que, na realidade, apenas possam ser atingidos após a colaboração do estrangeiro.

Na maior parte destes casos, contudo, a notificação ao terceiro devedor no estrangeiro é irrealizável. O Estado estrangeiro recusa normalmente (segundo o art. 13 da Convenção de Haia de 1965 Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro ou segundo o art. 4 da Convenção da Haia de 1954 Relativa ao Processo Civil) a sua colaboração na necessariamente formal notificação no estrangeiro […] do terceiro devedor, porque aquele vê no proferimento ou na notificação da proibição de pagamento uma inadmissível medida soberana do Estado estrangeiro contra o terceiro devedor”.

4. O tema da penhora de créditos com elementos de estraneidade voltou a ser recentemente analisado por T. Domej (in Hess (Ed.), Die Anerkennung im Internationalen Zivilprozessrecht – Europäisches Vollstreckungsrecht (2014), 115 ss.) A Autora procura encontrar uma solução para os problemas suscitados por essa penhora, ponderando os interesses do credor exequente, do devedor executado e do terceiro devedor e acabando por concluir que nem sempre é defensável que este devedor não deva ficar vinculado a uma penhora decretada no estrangeiro. A Autora exemplifica com a necessidade de vincular à penhora do crédito um Banco situado num outro Estado, de modo a evitar que o executado possa transferir os seus depósitos para um Banco situado num Estado pouco disposto a colaborar com o Estado da execução.

Esta metodologia “subjectivista” é discutível (embora o exemplo fornecido reflicta muito bem as dificuldades da matéria em análise). Parece que mais proveitosa do que qualquer ponderação dos interesses dos vários interessados é a procura de um critério objectivo (como o domicílio de qualquer um dos interessados ou o lugar do cumprimento do crédito) que justifique que a penhora de um crédito cujo devedor tenha domicílio no estrangeiro possa ser decretada no Estado da execução. A conexão que importa considerar para estabelecer a competência internacional dos tribunais de um Estado não deve ser subjectiva, mas antes objectiva. Tudo está em saber se, em termos objectivos, a penhora do crédito apresenta uma conexão suficiente com os tribunais de um Estado que justifica que, apesar de o terceiro credor ter o seu domicílio num outro Estado, esses tribunais possam decretar aquela penhora.

5. Como se verificou, a penhora de créditos pode apresentar uma conexão subjectiva (isto é, através dos interessados) ou objectiva (através, nomeadamente, do lugar do domicilio de um dos interessados ou do cumprimento do crédito) com várias ordens jurídicas. Quando assim sucede, há bons argumentos para as mais diferentes opiniões doutrinárias, sendo precisamente por isso que o tema é dos mais tratados no âmbito do processo executivo internacional. Verdadeira solução para o problema só pode ser alcançada, todavia, através do emprego dos meios de harmonização internacional, como um acto normativo europeu ou uma convenção internacional, seja bilateral ou multilateral.

Neste contexto, importa fazer uma referência ao Reg. 655/2014 (que estabelece um procedimento de decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial), aplicável a partir de 18/1/2017 (art. 54, § 2.º, Reg. 655/2014).

Afirma-se no consid. (7) Reg. 655/2014: “Um credor deverá poder obter uma medida cautelar sob a forma de uma decisão europeia de arresto de contas («decisão de arresto» ou «decisão») que impeça o levantamento ou a transferência de fundos que o seu devedor possui numa conta bancária mantida num Estado-Membro se existir o risco de, sem essa medida, a subsequente execução do seu crédito sobre o devedor ser frustrada ou consideravelmente dificultada. O arresto de fundos mantidos na conta do devedor deverá ter como efeito impedir que não apenas o próprio devedor, mas também as pessoas por este autorizadas a fazer pagamentos através dessa conta, por exemplo, por meio de uma ordem permanente, através de débito direto ou da utilização de um cartão de crédito, utilizem os ditos fundos”. Sobre a matéria, cf. art. 1.º, n.º 1, Reg. 655/2014.

Importante é também o esclarecido no consid. (10) Reg. 655/2014: “O presente regulamento deverá aplicar-se apenas a processos transfronteiriços e definir o que constitui um processo transfronteiriço neste contexto específico. Para efeitos do presente regulamento, deverá considerar-se que existe um processo transfronteiriço quando o tribunal que aprecia o pedido de decisão de arresto se situar num Estado-Membro e a conta bancária visada pela decisão for mantida noutro Estado-Membro. Também poderá considerar-se que existe um processo transfronteiriço quando o credor estiver domiciliado num Estado-Membro e o tribunal e a conta bancária a arrestar estiverem localizados noutro Estado-Membro”. Sobre este aspecto, cf. art. 3.º Reg. 655/2014.

Sobre os critérios determinativos da competência do tribunal, há que ter presente o afirmado no consid. (13) Reg. 655/2014: “A fim de assegurar uma relação estreita entre o processo relativo à decisão de arresto e o processo relativo ao mérito da causa, a competência internacional para proferir a decisão deverá ser dos tribunais do Estado-Membro cujos tribunais sejam competentes para decidir sobre o mérito da causa. Para efeitos do presente regulamento, o conceito de processos relativos ao mérito da causa deverá abranger todos os processos destinados a obter um título executório para o crédito subjacente, incluindo, por exemplo, processos sumários relativos a injunções de pagamento e processos do tipo «procédure de référé» existentes em França (processo de medidas provisórias). Se o devedor for um consumidor domiciliado num Estado-Membro, a competência para proferir a decisão deverá caber unicamente aos tribunais desse Estado-Membro”. A competência encontra-se regulada no art. 6.º Reg. 655/2014.

O art. 22.º Reg. 655/2014 estabelece o reconhecimento e a execução automática da decisão que decreta o arresto: ”Uma decisão de arresto proferida num Estado-Membro em conformidade com o presente regulamento é reconhecida nos outros Estados-Membros sem necessidade de qualquer procedimento especial e é executória nos outros Estados-Membros sem que seja precisa uma declaração de executoriedade”.


MTS