1. A penhora
de créditos constitui um problema “clássico” do processo executivo
internacional: não há exposição sobre este processo que não procure fornecer
uma solução para esse problema. Assim, na sequência do breve comentário feito a
RC 16/9/2014,
aproveita-se para acrescentar algo sobre a temática da penhora – e,
consequentemente, do arresto – de créditos com elementos de estraneidade.
2. Nos
termos do art. 391.º, n.º 1, CPC, são aplicáveis ao arresto as disposições
relativas à penhora. Esta remissão envolve a aplicação do disposto no art.
773.º, n.º 1, CPC, segundo o qual a penhora de créditos – e, portanto, o
arresto de créditos – consiste na notificação ao terceiro devedor de que o
crédito fica à ordem do agente de execução.
Isto
significa que a notificação do terceiro devedor não é um acto integrante da
penhora de créditos, mas antes o próprio acto em que se traduz a penhora do
crédito. Dito de outra forma: a notificação do terceiro devedor não é uma
formalidade destinada a permitir-lhe que, nos termos do art. 773.º, n.º 2, CPC,
se pronuncie sobre a existência do crédito, as garantias que o acompanham, a
data do seu vencimento e ainda sobre quaisquer outras circunstâncias que possam
interessar à execução, mas antes o elemento constitutivo da penhora do crédito.
É por isso
que, na perspectiva da ordem jurídica portuguesa (assim como de muitas outras),
a penhora de créditos cujo terceiro devedor tenha o seu domicílio no
estrangeiro é tão problemática. Trata-se de impor a um sujeito com domicílio
num Estado e que não foi anteriormente ouvido em juízo os efeitos de um acto
soberano de um outro Estado.
3. Na
penhora de créditos, há três sujeitos envolvidos: o credor exequente, o devedor
executado e, por fim, o terceiro devedor (que é devedor do devedor executado).
Se o terceiro devedor tiver domicílio no Estado da execução, não há problemas:
o crédito do devedor executado pode ser penhorado, ainda que alguma ou ambas as
partes da execução sejam estrangeiras ou tenham domicílio no estrangeiro.
A situação
torna-se verdadeiramente problemática quando o terceiro devedor tiver domicílio
num Estado diferente do Estado da execução. Sobre esta situação escreveu P. Gottwald (IPRax 1991, 289), depois de
analisar o caso em que o terceiro devedor tem domicílio no Estado da execução e
que considera não ser problemático, o seguinte:
“Duvidoso
é […] o caso contrário, quando o devedor tem a sua situação jurisdicional geral
(domicílio/sede) no País, mas, em contrapartida, o terceiro devedor tem o seu
domicílio/sede no estrangeiro. Se, neste caso, se aplicar a regra sobre a
competência territorial que consta do § 828 II ZPO à competência internacional,
pode ser proferida no País, atendendo ao domicílio do devedor no País, uma
penhora e uma decisão que impõe o pagamento [ao exequente]. Alguns defendem até
a opinião de que¸ segundo os §§ 828 II e 23 ZPO, a penhora de um crédito é
admissível no País, quando o devedor não tenha nenhum domicílio no País, mas, apesar
disso, tenha neste património. O proferimento de uma decisão de penhora não
viola o direito internacional público. Pois, na verdade, o princípio da
territorialidade proíbe apenas a aplicação da força no território estrangeiro, mas
não o proferimento de actos de soberania destinados a produzir efeitos no
estrangeiro e que, na realidade, apenas possam ser atingidos após a colaboração
do estrangeiro.
Na maior
parte destes casos, contudo, a notificação ao terceiro devedor no estrangeiro é
irrealizável. O Estado estrangeiro recusa normalmente (segundo o art. 13 da
Convenção de Haia de 1965 Relativa à Citação e à Notificação
no Estrangeiro ou segundo o art. 4
da Convenção da Haia de 1954 Relativa ao Processo Civil) a sua colaboração na
necessariamente formal notificação no estrangeiro […] do terceiro devedor,
porque aquele vê no proferimento ou na notificação da proibição de pagamento
uma inadmissível medida soberana do Estado estrangeiro contra o terceiro
devedor”.
4. O tema
da penhora de créditos com elementos de estraneidade voltou a ser recentemente
analisado por T. Domej (in Hess
(Ed.), Die
Anerkennung im Internationalen Zivilprozessrecht – Europäisches Vollstreckungsrecht
(2014), 115 ss.) A Autora procura encontrar uma
solução para os problemas suscitados por essa penhora, ponderando os interesses
do credor exequente, do devedor executado e do terceiro devedor e acabando por
concluir que nem sempre é defensável que este devedor não deva ficar vinculado
a uma penhora decretada no estrangeiro. A Autora exemplifica com a necessidade
de vincular à penhora do crédito um Banco situado num outro Estado, de modo a evitar
que o executado possa transferir os seus depósitos para um Banco situado num
Estado pouco disposto a colaborar com o Estado da execução.
Esta metodologia
“subjectivista” é discutível (embora o exemplo fornecido reflicta muito bem as
dificuldades da matéria em análise). Parece que mais proveitosa do que qualquer
ponderação dos interesses dos vários interessados é a procura de um critério
objectivo (como o domicílio de qualquer um dos interessados ou o lugar do
cumprimento do crédito) que justifique que a penhora de um crédito cujo devedor
tenha domicílio no estrangeiro possa ser decretada no Estado da execução. A
conexão que importa considerar para estabelecer a competência internacional dos
tribunais de um Estado não deve ser subjectiva, mas antes objectiva. Tudo está
em saber se, em termos objectivos, a penhora do crédito apresenta uma conexão
suficiente com os tribunais de um Estado que justifica que, apesar de o
terceiro credor ter o seu domicílio num outro Estado, esses tribunais possam
decretar aquela penhora.
5. Como se
verificou, a penhora de créditos pode apresentar uma conexão subjectiva (isto
é, através dos interessados) ou objectiva (através, nomeadamente, do lugar do domicilio
de um dos interessados ou do cumprimento do crédito) com várias ordens
jurídicas. Quando assim sucede, há bons argumentos para as mais diferentes
opiniões doutrinárias, sendo precisamente por isso que o tema é dos mais
tratados no âmbito do processo executivo internacional. Verdadeira solução para
o problema só pode ser alcançada, todavia, através do emprego dos meios de
harmonização internacional, como um acto normativo europeu ou uma convenção
internacional, seja bilateral ou multilateral.
Neste
contexto, importa fazer uma referência ao Reg.
655/2014 (que estabelece um procedimento de decisão europeia de arresto de
contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil
e comercial), aplicável a partir de 18/1/2017 (art. 54, § 2.º, Reg. 655/2014).
Afirma-se
no consid. (7) Reg. 655/2014: “Um credor deverá poder obter uma medida
cautelar sob a forma de uma decisão europeia de arresto de contas («decisão de
arresto» ou «decisão») que impeça o levantamento ou a transferência de fundos
que o seu devedor possui numa conta bancária mantida num Estado-Membro se
existir o risco de, sem essa medida, a subsequente execução do seu crédito
sobre o devedor ser frustrada ou consideravelmente dificultada. O arresto de
fundos mantidos na conta do devedor deverá ter como efeito impedir que não
apenas o próprio devedor, mas também as pessoas por este autorizadas a fazer
pagamentos através dessa conta, por exemplo, por meio de uma ordem permanente,
através de débito direto ou da utilização de um cartão de crédito, utilizem os
ditos fundos”. Sobre a matéria, cf. art. 1.º, n.º 1, Reg. 655/2014.
Importante é também o esclarecido no
consid. (10) Reg. 655/2014: “O presente regulamento deverá aplicar-se apenas a
processos transfronteiriços e definir o que constitui um processo
transfronteiriço neste contexto específico. Para efeitos do presente
regulamento, deverá considerar-se que existe um processo transfronteiriço
quando o tribunal que aprecia o pedido de decisão de arresto se situar num
Estado-Membro e a conta bancária visada pela decisão for mantida noutro
Estado-Membro. Também poderá considerar-se que existe um processo
transfronteiriço quando o credor estiver domiciliado num Estado-Membro e o tribunal
e a conta bancária a arrestar estiverem localizados noutro Estado-Membro”.
Sobre este aspecto, cf. art. 3.º Reg. 655/2014.
Sobre os critérios determinativos da
competência do tribunal, há que ter presente o afirmado no consid. (13) Reg.
655/2014: “A fim de assegurar uma relação estreita
entre o processo relativo à decisão de arresto e o processo relativo ao mérito
da causa, a competência internacional para proferir a decisão deverá ser dos
tribunais do Estado-Membro cujos tribunais sejam competentes para decidir sobre
o mérito da causa. Para efeitos do presente regulamento, o conceito de
processos relativos ao mérito da causa deverá abranger todos os processos
destinados a obter um título executório para o crédito subjacente, incluindo,
por exemplo, processos sumários relativos a injunções de pagamento e processos
do tipo «procédure
de référé» existentes em França (processo de
medidas provisórias). Se o devedor for um consumidor domiciliado num Estado-Membro,
a competência para proferir a decisão deverá caber unicamente aos tribunais
desse Estado-Membro”. A competência encontra-se regulada no art. 6.º Reg.
655/2014.
O art. 22.º Reg. 655/2014 estabelece o
reconhecimento e a execução automática da decisão que decreta o arresto: ”Uma
decisão de arresto proferida num Estado-Membro em conformidade com o presente
regulamento é reconhecida nos outros Estados-Membros sem necessidade de
qualquer procedimento especial e é executória nos outros Estados-Membros sem que
seja precisa uma declaração de executoriedade”.
MTS