"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/09/2014

Jurisprudência (28)


Protecção da confiança e prática de actos processuais


I. De acordo com o seu sumário, o STJ 9/7/2014 (2577/05.5TBPMS-P.C3.S1) decidiu o seguinte:

1. As acções apensadas ao processo de insolvência, nos termos do art. 85.º do CIRE, passam a ter, a partir da apensação, carácter urgente, nos termos do art. 9.º do mesmo diploma: "tudo o que se relaciona com o processo é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos.

2. Tendo uma acção apensada ao processo de insolvência nos termos do art.º 85.º do CIRE sido processada durante mais de seis anos após a apensação, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a parte admitisse que o entendimento do Tribunal fosse no sentido de que o processo não era urgente.

3. Aquele facto era, pelo menos, adequado a criar na parte a convicção de que o prazo de que dispunha para apresentar as alegações de recurso para o Tribunal da Relação não corria em férias, de acordo com o regime previsto no art. 144., n.º 1, do CPC (então em vigor).

4. Esta convicção é fundada e legítima e merece, por isso, a tutela do direito, como se reconheceu, para situação similar, na fundamentação do AUJ deste Tribunal de 31.03.2009.

5. Estamos perante uma situação de confiança justificada, assente na boa fé e gerada pela aparência, que deve ser protegida, conduzindo à "preservação da posição nela alicerçada"."

II. que começar por realçar a orientação seguida neste importante acórdão (que, aliás, retoma a orientação que foi adoptada pela 1.ª instância): apesar de o STJ entender que a tramitação das acções apensas a um processo de insolvência também é urgente, ainda assim, nunca se tendo levantado e discutido numa acção apensa a um desses processos a questão da sua natureza urgente, tem de se admitir que, nessa mesma acção, não pode ser considerada extemporânea a interposição de um recurso cujo prazo de interposição não foi contado de acordo com a tramitação urgente (cf. art. 138.º, n.º 1, CPC), já que a parte o contou partindo do princípio de que o mesmo se suspendia em férias.

Como se afirma no acórdão, "sendo a acção processada [...] durante mais de seis anos após a apensação, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a recorrente admitisse que o entendimento do Tribunal fosse realmente aquele e que tivesse actuado em conformidade. [/] Aquele facto era, pelo menos, adequado a criar na Recorrente a convicção de que o prazo de que dispunha não corria em férias, de acordo com o regime previsto no art. 144.º, n.º 1, do CPC (então em vigor)" [= art. 138.º, n.º 1, nCPC]. Isto é, o acórdão considera que a circunstância de o processo ter estado pendente durante cerca de seis anos na 1.ª instância é suficiente para criar nas partes a convicção de que o tribunal não qualificava o processo como urgente. Como se afirma no acórdão, essa longa pendência é bastante para criar "uma situação de confiança, assente na boa fé e gerada pela aparência – o modo como a acção foi processada até aí". 

Quer dizer: uma aparência que não é contrariada por nenhuma realidade justifica que as partes façam o correspondente investimento de confiança nessa aparência e que o seu comportamento deva ser aferido por esse investimento e pela protecção que ele merece. Em concreto, não é exigível que as partes se comportem em contradição com o investimento de confiança que justificadamente realizaram em função de uma aparência que não tinham motivos para duvidar de que não correspondia à realidade.

Isto significa que, em caso de divergência entre a aparência e a realidade, o tribunal tem de avaliar as condutas das partes em juízo de acordo com o que lhes era exigível em função da aparência que esse mesmo tribunal construi.

III. O acórdão apoia-se -- ou talvez melhor, inspira-se -- no "AUJ deste Tribunal de 31.03.2009". Trata-se, na realidade, do Ac. 9/2009, de 19/5, no qual se entendeu que, tendo o tribunal definido num despacho, que não chegou a adquirir força de caso julgado, que o procedimento cautelar não tinha natureza urgente, há que considerar tempestiva a apresentação de oposição em prazo apenas compatível com a não urgência, apesar de realmente dever ser entendido que o procedimento cautelar também na fase de oposição mantém essa natureza urgente.

As situações apreciadas em ambos os acórdãos são análogas, mas, exactamente por isso, não são as mesmas. No acórdão em análise, trata-se de uma confiança induzida nas partes pela omissão de qualquer pronúncia do tribunal sobre a natureza urgente do processo, confiança aliás reforçada pela circunstância de o processo ter estado pendente em 1.ª instância durante seis anos; no Ac. 9/2009 trata-se da confiança que deve merecer um despacho não transitado em julgado (ou, no caso concreto, que não pode adquirir valor de caso julgado) que atribuiu a um procedimento cautelar a natureza não urgente. Noutros termos: no acórdão em análise, o que está em causa é protecção que merece a confiança numa aparência; no Ac. 9/2009 do que se trata é da protecção que deve ser dispensada à confiança numa realidade (in casu, numa declaração do tribunal).

O princípio não pode deixar de ser o de que as partes devem poder confiar nos actos do tribunal e da secretaria, ou seja, na realidade que lhes é comunicada através de citações e notificações. Assim, se, por exemplo, a secretaria se equivocar e enviar ao réu, não a segunda petição inicial que o autor entregou na sequência de um convite ao aperfeiçoamento desse articulado, mas a primeira petição entregue pelo autor, o réu pode invocar a respectiva nulidade da citação logo que se aperceba do respectivo vício, qualquer que seja a fase em que se encontre o respectivo processo (cf. art. 191.º, n.º 1, nCPC). Fornecendo um exemplo legal: nos termos do art. 191.º, n.º 2, nCPC, se a nulidade da citação decorrer da indicação de um prazo de defesa do réu superior ao que a lei concede, a defesa desta parte deve ser admitida dentro do prazo indicado, a não ser que o autor tenha feito citar novamente o réu em termos regulares.

IV. Como se referiu, as situações apreciadas em ambos os acórdãos não são as mesmas; comum é apenas a protecção que merece um justificado investimento de confiança realizado pelas partes. Depois de o Ac. 9/2009 ter protegido a confiança numa declaração do juiz (e, portanto, numa declaração expressa), o acórdão em análise avança um pouco mais na protecção que é devida à confiança induzida nas partes, já que reconhece a necessidade dessa protecção também no caso em que a confiança decorre de uma mera aparência criada pelo tribunal. 

O acórdão em análise constitui um excelente exemplo de uma jurisprudência atenta à realidade da vida e um desejável precedente para qualquer outra situação em que deva ser garantida em juízo a tutela de uma justificada confiança das partes.


MTS