"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/09/2014

Invocação de justo impedimento no "prazo de complacência" (2)


I. Um Colega do IPPC chamou-me a atenção para que em STJ 25/10/2012 (1627/04.7TBFIG-A.C1.S1) -- um acórdão subscrito pelos também nossos Colegas Maria dos Prazeres Beleza e Lopes do Rego -- se entendeu que "pode ser invocado como justo impedimento um facto ocorrido num dos três dias úteis previstos no n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil" [= art. 139.º, n.º 5, nCPC].

Do acórdão do STJ transcrevem-se as seguintes passagens:

"[...] 6. O acórdão recorrido considera que o “prazo suplementar de 3 dias” corresponde a uma “complacência” para com ovício de deixar para o fim dos prazos a realização dos actos processuais, e que a multa cujo pagamento é condição de validade do acto tem como objectivo sancionar o incumprimento do prazo, presumindo-se que essa inobservância foi negligente; e que, sendo diverso o fundamento que justifica a prática do acto depois de decorrido o prazo, em caso de justo impedimento, não podem utilizados cumulativamente” os dois meios.

Não se acompanha esta conclusão, nem os motivos que a apoiam.

Desde logo, não se pode partir do princípio de que a lei condescende com a negligência da parte ou do mandatário, ou que a multa sanciona essa negligência; muito menos presumi-la. Recorde-se que, se assim fosse, deveria ser possível evitar o pagamento da multa provando a ausência de qualquer comportamento negligente; o que não acontece.

Recorde-se que o objectivo com que o Decreto-Lei nº 323/70 veio alterar o artigo 145º do Código de Processo Civil, no ponto que agora nos interessa, foi o de permitir a prática do acto no dia seguinte ao do termo do prazo sem que a parte tivesse que invocar e provar justo impedimento; e que, como se sabe, nem sempre a exacta contagem dos prazos foi simples e isenta de controvérsia.

Seja como for, a verdade é que, ao permitir a prática de actos sujeitos a prazos peremptórios depois de estes terem terminado, fora dos casos de justo impedimento, a lei veio, na prática, alongar os prazos, sem impor a apresentação em juízo de qualquer justificação. Tal como sucede, por exemplo, com a junção de documentos de que a parte já dispunha, depois de apresentado o articulado onde foram alegados os factos a provar (artigo 523º, nº 1 do Código de Processo Civil), a multa exprime a preferência legal pelo cumprimento do prazo peremptório; mas não é possível associá-la a uma sanção por menor diligência processual.

Este regime possibilita ainda às partes e aos seus mandatários a gestão do tempo disponível, de acordo com as respectivas conveniências, ponderando se compensa ou não dilatar o prazo mediante o pagamento da multa; mas não legitima qualquer juízo de censura em relação à parte (ou ao seu mandatário) que dele decide beneficiar.

E prossegue, do mesmo passo, o objectivo (salientado por Antunes Varela [..]) da prossecução do “primado da justiça material sobre a pura legalidade formal”, valor decididamente protegido pelo legislador português nas recentes alterações das leis de processo. Recorde-se, por exemplo, o princípio da “prevalência do fundo sobre a forma”, desenvolvido no preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95 e inspirador de diversas soluções então introduzidas, ou o objectivo ali proclamado de se “obviar(…) a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos (…)”.

7. Acresce que a solução adoptada no acórdão recorrido, além de contrariar o significado de alongamento dos prazos peremptórios em que o regime previsto no nº 5 do artigo 145º se traduz, conduz a soluções contrárias às exigências do princípio do processo equitativo, por implicar uma consequência desproporcionada à conduta adoptada.

Pese embora um certo alargamento do conceito de justo impedimento que se verificou com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 329-A/95, a verdade é que um facto que obsta à “prática atempada do acto” só o integra se for estranho ao controlo da parte e do seu mandatário. A impossibilidade de o invocar num dos três dias previstos no nº 3 do artigo 145º torna excessivamente arriscado optar por beneficiar da correspondente extensão, porque essa opção pode conduzir à perda de um mecanismo antigo de protecção da parte contra obstáculos que lhe não são imputáveis e, por essa via, à perda do direito a praticar o acto.

Consequência essa que, nomeadamente no caso a que respeita o presente recurso – perda do direito de recorrer – é manifestamente desproporcionada à actuação processual da parte, que interpôs o recurso de apelação no primeiro dia útil subsequente à ocorrência do facto que invoca como justo impedimento, alegadamente ocorrido no terceiro dia útil a que se refere o nº 5 do artigo 145º do Código de Processo Civil, ou seja, dentro do prazo de que a parte dispunha para interpor o recurso. [...]".

II. Não pode deixar de se realçar que, sobre o problema de saber se é possível invocar o justo impedimento durante o "prazo de complacência", também existe jurisprudência bastante mais atenta aos princípios do processo equitativo e à substância das questões. 

MTS