1. O
Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados publicitou um importante comunicado
intitulado “O
Mapa Judiciário: O Citius, o reconhecimento do justo impedimento e a prática
dos atos em papel”. Do referido comunicado, que foi elaborado na sequência
de uma Recomendação
elaborada pelo Grupo de Trabalho para a Implementação da Reforma da Organização
Judiciária, consta a seguinte passagem: “Convém esclarecer que a recomendação não
fundamenta o justo impedimento para a prática do ato nos termos e para os
efeitos previstos no art.º 140.º n.º 1 do CPC, o que levaria à sua admissão
fora do prazo, mas apenas e tão
só o justo impedimento para a prática do ato na plataforma Citius, justificando
a sua apresentação em suporte papel, a ser remetido por correio, por telecópia
ou por entrega directa na secretaria, nos termos previstos nos n.ºs 7 e 8 do
art.º 144.º do CPC”.
A interpretação realizada pelo Conselho Distrital de Lisboa é
perfeitamente compreensível dentro da óptica da “jurisprudência das cautelas”.
Andou bem o Conselho Distrital em chamar a atenção para que o sentido da Recomendação
(ou, pelo menos, o sentido menos favorável aos advogados) é o de que a situação
de justo impedimento quanto à prática dos actos no Portal Citius isenta os
mandatários do cumprimento do disposto no art. 144.º, n.º 1, CPC quanto à obrigação
da transmissão electrónica de dados, mas impõe a prática do acto escrito,
dentro do prazo legal, por entrega na secretaria ou por envio por correio ou
por telecópia (cf. art. 144.º, n.º 7, CPC).
A interpretação do Conselho Distrital de Lisboa é reforçada
pela circunstância de, na referida Recomendação, se estabelecer que, na
sequência do impedimento à utilização da transmissão electrónica de dados, “os
actos processuais devem ser praticados pelos meios alternativos legalmente
previstos”, ou seja, pela entrega na secretaria ou pelo envio por correio ou
por telecópia. Quer dizer: na referida Recomendação, entende-se que a
impossibilidade da prática do acto por transmissão electrónica de dados isenta
o mandatário de utilizar este meio, mas, em contrapartida, impõe-lhe que
utilize, dentro do prazo de que dispõe para a prática do acto, os meios
alternativos previstos na lei.
2. É neste ponto que o que consta da Recomendação não
coincide com o que consta do CPC. Enquanto na Recomendação se estabelece que,
perante a impossibilidade de utilizar a transmissão electrónica, o mandatário
deve utilizar os meios alternativos, o art. 144.º, n.º 8, CPC determina que,
perante aquela mesma impossibilidade, o mandatário pode recorrer àqueles meios
alternativos. A diferença de regimes (se é que a propósito da Recomendação se
pode falar de regime) é patente: a Recomendação constitui uma obrigação para os
mandatários, o art. 144.º, n.º 8, CPC atribui aos mandatários uma permissão.
Não é possível conhecer as razões que levaram os autores da
Recomendação a imporem, em contradição com o disposto no CPC, uma obrigação aos
mandatários das partes. Pode imaginar-se que esses autores partiram do
princípio de que os mandatários têm a obrigação de praticar os actos escritos
por transmissão electrónica de dados ou pelos meios alternativos (entrega na
secretaria e envio pelo correio ou por telecópia); sendo impossível o cumprimento
pela transmissão electrónica, subsiste a obrigação do cumprimento através dos
meios alternativos.
Ora, é seguro que não é este o regime legal. O art. 144.º,
n.º 1, CPC estabelece a obrigação da prática dos actos escritos por transmissão
electrónica de dados; em parte alguma do CPC se estabelece a obrigação da
prática desses actos, em alternativa, através da transmissão electrónica de
dados ou através dos meios alternativos. Bem pelo contrário: o
que se encontra no CPC é uma obrigação da prática desses actos pela transmissão
electrónica de dados (art. 144.º, n.º 1, CPC) e uma permissão da prática desses
actos pelos meios alternativos quando se verifique um justo impedimento quanto
à sua prática através daquela transmissão (art. 144.º, n.º 8, CPC). Isto é,
enquanto a Recomendação opera com duas obrigações dos mandatários, o CPC estabelece
para esses mandatários uma obrigação e uma permissão. Falta, portanto, qualquer base
legal para a obrigação da utilização dos meios alternativos que a Recomendação impõe aos mandatários das partes.
Sendo assim, como a Recomendação não tem nenhuma força normativa externa,
qualquer caso que seja apreciado em tribunal tem de ser exclusivamente
apreciado de acordo com o disposto no CPC e, em particular, com o estabelecido
no art. 144.º, n.º 8, CPC.
3. A referida diferença de regimes traduz-se no seguinte: a Recomendação
entende que a impossibilidade de utilizar a transmissão electrónica isenta o
mandatário da obrigação de utilizar este meio, mas, ao impor que o mandatário pratique o acto por um
meio alternativo, não o isenta da obrigação de praticar o acto dentro do prazo.
Em contrapartida, o CPC, perante a impossibilidade da transmissão electrónica
de dados, permite (mas não obriga) que o mandatário utilize os meios
alternativos. Isto significa que, segundo o regime do CPC, o mandatário pode
optar entre (i) praticar o acto, dentro do prazo de que dispõe, através de um
meio alternativo ou (ii) aguardar o termo da impossibilidade de praticar o acto
pelos meios electrónicos e vir, mais tarde, a realizar o acto através destes
meios.
Esta solução legal está longe de ser criticável, se se tiver
presente as situações a que a mesma é aplicável. O justo impedimento é um
evento não imputável às partes que obsta à prática do acto (art. 140.º, n.º 1,
CPC); por isso, o justo impedimento que obsta à transmissão electrónica de
dados não pode decorrer de algo sobre o qual a parte tenha ou deva ter domínio
(como, por exemplo, o mau funcionamento de um computador ou de uma ligação à
Internet); logo, esse justo impedimento só pode decorrer de problemas relacionados
com o Portal Citius e da responsabilidade dos seus gestores. Sendo assim,
compreende-se que o legislador permita que o mandatário, perante a
impossibilidade de utilizar a transmissão electrónica de dados e perante a sua
não responsabilidade nessa impossibilidade, pratique o acto por um meio
alternativo (nomeadamente, quando seja do interesse da parte que o acto seja
praticado o mais rapidamente possível), mas não imponha ao mandatário a
utilização desse meio.
Em reforço do que acaba de ser dito pode ainda acrescentar-se
que o disposto no art. 144.º, n.º 8, CPC e o sentido permissivo do preceito só
fazem sentido se a impossibilidade da prática do acto através da transmissão
electrónica de dados resultar de um facto não imputável ao mandatário. Só nesta
hipótese é que tem sentido isentar o mandatário da obrigação de realizar o acto
por transmissão electrónica e, ao mesmo tempo, permitir-lhe a prática por um
meio alternativo. Qualquer outra impossibilidade com outra causa –
nomeadamente, com uma causa imputável ao mandatário – teria de impor a este
mandatário a prática do acto por um meio alternativo. Quer dizer: o sentido
permissivo do art. 144.º, n.º 8, CPC só é coerente com uma situação de justo
impedimento, ou seja, com uma situação não imputável ao mandatário; é porque a
impossibilidade da prática do acto por transmissão electrónica não é imputável
ao mandatário que este pode recorrer a um meio alternativo.
Seria incoerente que, perante uma impossibilidade de
utilização da transmissão electrónica não imputável ao mandatário, se obrigasse
este a utilizar os meios alternativos. Em contrapartida, seria totalmente coerente
que, perante uma impossibilidade imputável ao mandatário, este estivesse
obrigado a recorrer aos meios alternativos. Mas esta hipótese é precisamente
aquela que não pode ser abrangida pelo art. 144.º, n.º 8, CPC, dado que este
preceito pressupõe que se verifica uma situação de justo impedimento e uma
impossibilidade imputável ao mandatário não pode constituir uma hipótese de
justo impedimento. Portanto, enquanto o regime instituído no art. 144.º, n.º 8,
CPC é perfeitamente coerente com o justo impedimento de utilização dos meios
electrónicos para a prática do acto, a obrigação imposta aos mandatários na
Recomendação é incoerente com esse justo impedimento, dado que essa obrigação
só se poderia justificar numa situação em que a impossibilidade da utilização dos
meios electrónicos fosse imputável ao mandatário.
4. Na perspectiva da “jurisprudência das cautelas”, é
totalmente compreensível que o Conselho Distrital de Lisboa tenha interpretado
a Recomendação no sentido de que a isenção da obrigação da prática do acto por
meio electrónico impõe a obrigação da prática atempada do acto por um meio
alternativo. Mas não se pode dizer que é isso que resulta do CPC, dado que, como
se julga ter demonstrado, o “devem” que consta da Recomendação não tem nenhuma
correspondência com o “podem” que se encontra no CPC.
MTS