"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/09/2014

História e reforma do processo civil




1. No excelente resumo elaborado por H. Conrad (Deutsche Rechtsgeschichte II (1966), p. 456 ss.) sobre o designado processo comum – isto é, sobre o processo desenvolvido pela teoria e pela prática com base na revisão da Reichskammergerichtsordnung de 1555 realizada no Jüngste Reichsabschied de 1654 e que haveria de vigorar até ao Século XIX – encontram-se, entre outras, duas afirmações que tem interesse salientar.

Uma delas é relativa ao kammergerichtlicher Prozess do Século XVI e tem o seguinte teor (p. 457): “No processo por artigos (Artikelverfahren), igualmente recebido do processo romano-canónico, o autor tinha de dividir a sua petição (pontos) em factos individuais (positiones; artigos; artigos per posiciones), enquanto o réu tinha de tomar posição sobre cada um dos pontos (responsiones). Os artigos probatórios (Probatorialartikel) eram construídos com base nas positiones e responsiones […]. As testemunhas eram inquiridas, sob juramento, na ausência das partes sobre os chamados artigos probatórios (Probatorialartikel).”

A outra afirmação respeita ao princípio da preclusão nos primórdios do chamado processo comum – aliás, uma influência do processo saxónico (entenda-se, do Reino da Saxónia) – e tem o seguinte conteúdo (p. 459): “Na sequência [do processo saxónico], a determinação da prova (decisão sobre a prova) continha, no processo comum, as alegações individuais relevantes que deviam ser objecto de prova e dividia o procedimento processual em duas fases, a das alegações e a da prova.”

2. O que há de curioso é que ambas as afirmações podiam constar, até tempos bem recentes, de qualquer manual de direito processual civil português. A primeira poderia encontrar-se em qualquer manual escrito antes da entrada em vigor do nCPC, pelo menos se o mesmo optasse por reflectir, não tanto o que já resultava do aCPC, mas o que constituía prática comum nos nossos tribunais (nomeadamente, através da sobrevivência do antigo questionário na base instrutória introduzida pela Reforma de 1995/1996).

A segunda afirmação podia ser retirada de um manual escrito antes da Reforma de 1995/1996. Não seria mesmo impossível encontrar essa afirmação num manual posterior a essa Reforma, se se quisesse acentuar que, na prática, continuava a não ser frequente, apesar de o aCPC o permitir, a aquisição de factos durante as fases da instrução e da audiência final.

É indiscutível que o direito também vive de tradições (no caso do direito português, muitas delas herdadas do direito romano). Mas parece claro que se impunha afastar regimes próprios de um processo escrito, rígido e formalista de há cinco séculos atrás e que, talvez despercebidamente, se tinham mantido, muito provavelmente por uma inércia baseada na rotina, no processo civil português. Foi isso o que se procurou fazer – aliás, sem qualquer pretensão de “fim da história” – com a introdução do regime dos temas da prova (cf. art. 410.º e 596.º nCPC) e com a acentuação da possibilidade de aquisição de factos durante a instrução da causa (cf. art. 5.º, n.º 2, al. a) e b), nCPC).


MTS