"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/09/2014

Jurisprudência (27)


Invocação de justo impedimento no "prazo de complacência"

I. De acordo com o seu sumário, o RC 1/7/2014 (704/07.7TBCNT-B.C1decidiu o seguinte:

"1. O «justo impedimento» não vale para o prazo de complacência (dele «independente») condescendido residualmente pelo art. 145º/5 do CPC (139º NCPC).  

2. Esse prazo residual, concedendo uma última oportunidade para a prática do acto e constituindo já de si uma «condescendência», não poderá contar – sob pena de descaracterização dos prazos peremptórios e da finalidade da sua peremptoriedade (maxime, a celeridade da marcha processual) – com o amparo concedido ao prazo peremptório pelo instituto do «justo impedimento».

3. O justo impedimento só pode ser invocado em situações em que ainda não tenha decorrido o prazo peremptório estabelecido na lei para a prática do acto processual, não o podendo ser no período temporal adicional de três dias úteis, estabelecido no n.º 5 do art. 145.º do Cód. Proc. Civil (139.º NCPC)."

II. A solução encontrada no acórdão -- que acompanha a jurisprudência que nele é citada -- é muito discutível. Se, ainda que mediante o pagamento de uma multa, a parte tem a faculdade de praticar o acto nos três dias subsequentes ao termo do prazo peremptório (art. 139.º, n.º 5, CPC), não há, à partida, nenhum obstáculo à aplicação do regime do justo impedimento (cf. art. 140.º CPC). Suponha-se, por exemplo, que a parte (ou o advogado) é acometida (ou acometido) de uma doença súbita que exige a sua hospitalização; entender que, porque já se está no "prazo de complacência", essa circunstância é irrelevante implica fazer recair sobre a parte, durante o referido prazo, o risco de um evento que não lhe imputável e que obsta à prática do acto.

As dificuldades que actualmente se verificam no acesso ao Portal Citius ("Sítios", na designação que o acórdão imputa a uma das partes) constituem um bom exemplo do carácter muito discutível da orientação defendida no acórdão. A seguir-se esta orientação, isso implicaria a perda do prazo por todas as partes que contavam com o "prazo de complacência" para a prática de um acto antes do aparecimento daquelas dificuldades e que entretanto, em virtude destas, ficaram impossibilitadas de o fazer. Sendo público e notório que as referidas dificuldades são completamente alheias às partes, não é aceitável que, pela circunstância de beneficiarem de um "prazo de complacência", lhes seja imputado o risco do mau funcionamento do Portal Citius e acabem por perder o prazo para a prática do acto.

O regime do justo impedimento é geral: ele abrange a prática de qualquer acto que a parte tenha a faculdade de praticar. Se a parte tem essa faculdade porque está dentro do prazo ou porque beneficia do "prazo de complacência" estabelecido no art. 139.º, n.º 5, CPC, isso tem de ser indiferente. Aquele regime destina-se a desonerar a parte do risco de um evento que lhe não é imputável e que obsta à prática do acto. Ao contrário do que se entende no acórdão, não parece haver motivos para impor que, durante o "prazo de complacência", esse risco deva correr pela parte.

III. Outra coisa bem diferente do que acaba de se afirmar é saber se a situação sobre a qual a Relação teve de se pronunciar -- a apresentação de umas alegações de recurso cujo procedimento de envio no Portal Citius se iniciou às 23 h e 39 m do terceiro dia mas só terminou às 0 h e 6 m do quarto dia -- constitui realmente, de acordo com a definição do art. 140.º, n.º 1, CPC, uma situação de justo impedimento. Era talvez a análise desta questão que se impunha à Relação.


MTS