1. O Reg.805/2004 permite que uma decisão sobre um crédito não contestado proferida num
Estado-membro seja certificada, verificadas certas condições, como Título
Executivo Europeu (TEE) (art. 6.º Reg.
805/2004). Para que essa certificação seja admissível, é necessário que o
processo em que a decisão foi proferida tenha respeitado algumas “normas mínimas”
(cf. art. 13.º a 19.º Reg. 805/2004).
Algumas
destas “normas mínimas” referem-se aos requisitos da citação (art. 13.º a 15.º
Reg. 805/2004), outras às informações que devem ser transmitidas ao devedor
(art. 16.º e 17.º Reg. 805/2004) e, por fim, outras à revisão da decisão em
casos excepcionais (art. 19.º).
O CPC
satisfaz as “normas mínimas” relativas aos requisitos da citação e da informação
do devedor, mas é muito discutível que cumpra o requisito constante do art.
19.º Reg. 805/2004, assim redigido:
“Artigo 19.º
Normas mínimas de revisão em
casos excepcionais
1. Por força dos artigos 13.º a 18.º, uma decisão só pode ser
certificada como Título Executivo Europeu se o devedor tiver direito, segundo a
legislação do Estado-Membro de origem, a requerer uma revisão da decisão,
quando:
a) i) O
documento que dá início à instância ou acto equivalente ou, se for caso disso,
a ordem para comparecer em audiência tiver sido notificada por um dos meios previstos
no artigo 14.º e
ii) A
citação ou notificação não tiver sido efectuada em tempo útil para lhe permitir
preparar a defesa, sem que haja qualquer culpa da sua parte;
ou
b) O
devedor tiver sido impedido de deduzir oposição ao crédito por motivo de força
maior ou devido a circunstâncias excepcionais, sem que haja qualquer culpa da
sua parte, desde que, em qualquer dos casos, actue prontamente.
2. O presente artigo não
prejudica a possibilidade de os Estados-Membros facultarem o acesso à revisão
da decisão em condições mais favoráveis do que as previstas no n.º 1."
O assunto em
análise prende-se com dois temas já tratados neste Blog: o da compatibilidade do
processo civil português com o processo civil europeu (neste caso, com as “normas
mínimas” exigidas por um Regulamento europeu); o da impossibilidade de reacção
contra uma decisão proferida à revelia.
2. O art.
19.º, n.º 1, Reg. 805/2004 exige que o devedor tenha direito, “segundo a
legislação do Estado-Membro de origem” da decisão, em alternativa a:
– Requerer
a revisão da decisão com fundamento em que a citação foi efectuada sem lhe ter
deixado tempo útil para preparar a sua defesa, sem que tal se deva a ficar a
culpa própria;
– Requerer
a revisão da decisão com fundamento em que esteve impedido de deduzir oposição
por motivo de força maior ou devido a circunstâncias excepcionais, sem que haja
qualquer culpa da sua parte.
A
compatibilidade do processo civil português com estas “normas mínimas” já foi
analisada com profundidade na doutrina portuguesa (cf. P. Costa e Silva, O Título Executivo Europeu (2005), 64 ss.). A
Autora conclui que “o sistema português não se conforma com os parâmetros
estabelecidos pelo art. 19.º do Regulamento (69), o que significa que os
tribunais portugueses não podem certificar uma decisão como TEE.
3. Antes
de avançar na apreciação da posição defendida pela Prof. Costa e Silva, convém
referir que, nos termos do art. 30.º, n.º 1, al. a), Reg. 805/2004, Portugal
teve de notificar a Comissão Europeia sobre o procedimento de revisão da
decisão correspondente ao disposto no art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004. Pode
presumir-se que a informação transmitida à Comissão não foi no sentido de essas
“normas mínimas” não terem correspondência na ordem jurídica portuguesa e de,
portanto, os tribunais portugueses não poderem certificar uma decisão como TEE.
Ignora-se, no entanto, a correspondência que foi encontrada entre as “normas
mínimas” do art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004 e o direito interno português.
4.
Consultados os fundamentos do recurso extraordinário de revisão que constam do
art. 696.º CPC, verifica-se que nenhum deles tem correspondência com o disposto
no art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004. Aquele que mais se aproxima é o referido no
art. 696.º, al. e): a falta ou a nulidade da citação do réu revel. Mas uma
coisa é a inexistência ou irregularidade da citação, outra é uma citação que
não é atempada, ou seja, que não é realizada a tempo de o réu poder deduzir a
sua defesa. Portanto, o disposto no art. 19.º, n.º 1, al. a), Reg. 805/2004 não
encontra nenhuma correspondência com o direito interno português.
A
conclusão é ainda mais indiscutível – dir-se-á – quanto ao outro fundamento de
revisão segundo o disposto no art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004: aquele que
respeita ao caso de força maior ou às circunstâncias excepcionais que
justificam a revisão da decisão proferida à revelia. Este fundamento “europeu”
não é subsumível a nenhum dos fundamentos enumerados no art. 696.º CPC.
Sendo assim,
parece que há que concluir como a Prof. Costa e Silva: o direito interno
português não satisfaz as “normas mínimas” exigidas pelo art. 19.º, n.º 1, Reg.
805/2004, pelo que os tribunais portugueses não podem certificar uma decisão
como TEE.
5. A
inconveniência desta solução (os tribunais portugueses não podem certificar um
TEE, o que, aliás, não impede que possam ser executas em Portugal TEEs provenientes
de outros Estados-Membros) leva a procurar esgotar as possibilidades oferecidas
pelo direito interno português.
A solução
do problema começa por se confrontar com o pretenso carácter taxativo dos
fundamentos de revisão enumerados no art. 696.º. A verdade é que esses
fundamentos não podem ser considerados taxativos: pense-se, por exemplo, numa
decisão que atribui valor probatório a uma declaração obtida sob tortura (cf.
art. 449.º, n.º 1, al. e), CPP).
Conseguida
esta abertura, é possível admitir que o justo impedimento possa constituir um fundamento
do recurso de revisão. É verdade que o art. 140.º CPC pressupõe que o justo
impedimento é levado ao conhecimento do tribunal antes do proferimento da
decisão, mas nada obsta a que o justo impedimento se mantenha durante toda a
pendência da causa e só possa ser levado ao conhecimento do tribunal depois do
proferimento da decisão. Suponha-se, por exemplo, que um incapaz de facto,
citado pela via postal, não intervém durante todo o processo; nada pode impedir
que o justo impedimento venha a ser alegado por um posterior representante
legal desse incapaz, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão.
Esta
conclusão é relevante, porque não parece impossível aproximar o fundamento de
revisão estabelecido no art. 19.º, n.º 1, al. b), Reg. 805/2004 do justo impedimento:
o caso de força maior ou as circunstâncias excepcionais constituem um evento
não imputável à parte que obsta à prática atempada do acto. Se esta equiparação
for admissível, pode então concluir-se que o disposto naquele preceito tem
correspondência com um possível fundamento de revisão da decisão na ordem
interna portuguesa e que, por conseguinte, os tribunais portugueses podem certificar uma decisão
proferida à revelia como TEE.
6. A
solução propugnada é uma solução de recurso: melhor seria que se tivesse
cuidado de compatibilizar o direito interno português com o direito europeu
(para além de também ser imperioso repensar os fundamentos do recurso de
revisão). Também isto demonstra que foi muito precipitado considerar que uma
reforma do CPC que foi pensada apenas para resolver os problemas mais urgentes
poderia esgotar as necessidades de reformulação do processo civil português.
MTS