"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/07/2014

Pode uma decisão portuguesa ser certificada como Título Executivo Europeu?




1. O Reg.805/2004 permite que uma decisão sobre um crédito não contestado proferida num Estado-membro seja certificada, verificadas certas condições, como Título Executivo Europeu (TEE)  (art. 6.º Reg. 805/2004). Para que essa certificação seja admissível, é necessário que o processo em que a decisão foi proferida tenha respeitado algumas “normas mínimas” (cf. art. 13.º a 19.º Reg. 805/2004).

Algumas destas “normas mínimas” referem-se aos requisitos da citação (art. 13.º a 15.º Reg. 805/2004), outras às informações que devem ser transmitidas ao devedor (art. 16.º e 17.º Reg. 805/2004) e, por fim, outras à revisão da decisão em casos excepcionais (art. 19.º).

O CPC satisfaz as “normas mínimas” relativas aos requisitos da citação e da informação do devedor, mas é muito discutível que cumpra o requisito constante do art. 19.º Reg. 805/2004, assim redigido:

“Artigo 19.º
Normas mínimas de revisão em casos excepcionais

1. Por força dos artigos 13.º a 18.º, uma decisão só pode ser certificada como Título Executivo Europeu se o devedor tiver direito, segundo a legislação do Estado-Membro de origem, a requerer uma revisão da decisão, quando:
a) i) O documento que dá início à instância ou acto equivalente ou, se for caso disso, a ordem para comparecer em audiência tiver sido notificada por um dos meios previstos no artigo 14.º e
ii) A citação ou notificação não tiver sido efectuada em tempo útil para lhe permitir preparar a defesa, sem que haja qualquer culpa da sua parte;
ou
b) O devedor tiver sido impedido de deduzir oposição ao crédito por motivo de força maior ou devido a circunstâncias excepcionais, sem que haja qualquer culpa da sua parte, desde que, em qualquer dos casos, actue prontamente.
2. O presente artigo não prejudica a possibilidade de os Estados-Membros facultarem o acesso à revisão da decisão em condições mais favoráveis do que as previstas no n.º 1."
 
O assunto em análise prende-se com dois temas já tratados neste Blog: o da compatibilidade do processo civil português com o processo civil europeu (neste caso, com as “normas mínimas” exigidas por um Regulamento europeu); o da impossibilidade de reacção contra uma decisão proferida à revelia.

2. O art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004 exige que o devedor tenha direito, “segundo a legislação do Estado-Membro de origem” da decisão, em alternativa a:

– Requerer a revisão da decisão com fundamento em que a citação foi efectuada sem lhe ter deixado tempo útil para preparar a sua defesa, sem que tal se deva a ficar a culpa própria;

– Requerer a revisão da decisão com fundamento em que esteve impedido de deduzir oposição por motivo de força maior ou devido a circunstâncias excepcionais, sem que haja qualquer culpa da sua parte.

A compatibilidade do processo civil português com estas “normas mínimas” já foi analisada com profundidade na doutrina portuguesa (cf. P. Costa e Silva, O Título Executivo Europeu (2005), 64 ss.). A Autora conclui que “o sistema português não se conforma com os parâmetros estabelecidos pelo art. 19.º do Regulamento (69), o que significa que os tribunais portugueses não podem certificar uma decisão como TEE.

3. Antes de avançar na apreciação da posição defendida pela Prof. Costa e Silva, convém referir que, nos termos do art. 30.º, n.º 1, al. a), Reg. 805/2004, Portugal teve de notificar a Comissão Europeia sobre o procedimento de revisão da decisão correspondente ao disposto no art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004. Pode presumir-se que a informação transmitida à Comissão não foi no sentido de essas “normas mínimas” não terem correspondência na ordem jurídica portuguesa e de, portanto, os tribunais portugueses não poderem certificar uma decisão como TEE. Ignora-se, no entanto, a correspondência que foi encontrada entre as “normas mínimas” do art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004 e o direito interno português.

4. Consultados os fundamentos do recurso extraordinário de revisão que constam do art. 696.º CPC, verifica-se que nenhum deles tem correspondência com o disposto no art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004. Aquele que mais se aproxima é o referido no art. 696.º, al. e): a falta ou a nulidade da citação do réu revel. Mas uma coisa é a inexistência ou irregularidade da citação, outra é uma citação que não é atempada, ou seja, que não é realizada a tempo de o réu poder deduzir a sua defesa. Portanto, o disposto no art. 19.º, n.º 1, al. a), Reg. 805/2004 não encontra nenhuma correspondência com o direito interno português.

A conclusão é ainda mais indiscutível – dir-se-á – quanto ao outro fundamento de revisão segundo o disposto no art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004: aquele que respeita ao caso de força maior ou às circunstâncias excepcionais que justificam a revisão da decisão proferida à revelia. Este fundamento “europeu” não é subsumível a nenhum dos fundamentos enumerados no art. 696.º CPC.

Sendo assim, parece que há que concluir como a Prof. Costa e Silva: o direito interno português não satisfaz as “normas mínimas” exigidas pelo art. 19.º, n.º 1, Reg. 805/2004, pelo que os tribunais portugueses não podem certificar uma decisão como TEE.

5. A inconveniência desta solução (os tribunais portugueses não podem certificar um TEE, o que, aliás, não impede que possam ser executas em Portugal TEEs provenientes de outros Estados-Membros) leva a procurar esgotar as possibilidades oferecidas pelo direito interno português.

A solução do problema começa por se confrontar com o pretenso carácter taxativo dos fundamentos de revisão enumerados no art. 696.º. A verdade é que esses fundamentos não podem ser considerados taxativos: pense-se, por exemplo, numa decisão que atribui valor probatório a uma declaração obtida sob tortura (cf. art. 449.º, n.º 1, al. e), CPP).

Conseguida esta abertura, é possível admitir que o justo impedimento possa constituir um fundamento do recurso de revisão. É verdade que o art. 140.º CPC pressupõe que o justo impedimento é levado ao conhecimento do tribunal antes do proferimento da decisão, mas nada obsta a que o justo impedimento se mantenha durante toda a pendência da causa e só possa ser levado ao conhecimento do tribunal depois do proferimento da decisão. Suponha-se, por exemplo, que um incapaz de facto, citado pela via postal, não intervém durante todo o processo; nada pode impedir que o justo impedimento venha a ser alegado por um posterior representante legal desse incapaz, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão.

Esta conclusão é relevante, porque não parece impossível aproximar o fundamento de revisão estabelecido no art. 19.º, n.º 1, al. b), Reg. 805/2004 do justo impedimento: o caso de força maior ou as circunstâncias excepcionais constituem um evento não imputável à parte que obsta à prática atempada do acto. Se esta equiparação for admissível, pode então concluir-se que o disposto naquele preceito tem correspondência com um possível fundamento de revisão da decisão na ordem interna portuguesa e que, por conseguinte, os tribunais portugueses podem certificar uma decisão proferida à revelia como TEE.

6. A solução propugnada é uma solução de recurso: melhor seria que se tivesse cuidado de compatibilizar o direito interno português com o direito europeu (para além de também ser imperioso repensar os fundamentos do recurso de revisão). Também isto demonstra que foi muito precipitado considerar que uma reforma do CPC que foi pensada apenas para resolver os problemas mais urgentes poderia esgotar as necessidades de reformulação do processo civil português.


MTS