"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/07/2014

Jurisprudência (24)


Temas da prova

1. O sumário de RL 29/5/2014 é o seguinte:

"I) Enunciar os temas de prova é atividade processual que se dirige primacialmente à fase da produção da prova, enquanto na sentença, ultrapassada que se encontra aquela fase, cabe ao juiz declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados.

II) Os temas de prova podem ser enunciados como factos concretos ou como conclusões, factuais e/ou jurídicas. 

III) Quando não contenham factos concretos, é evidente que não serão os “temas de prova” a ser julgados provados ou não provados na sentença, «já [que] a decisão sobre a matéria de facto nunca se poderá bastar com tais formulações genéricas, de direito ou conclusivas,  exigindo-se que o tribunal se pronuncie sobre os factos essenciais e instrumentais (que devem transitar para a sentença) pertinentes à questão enunciada».

IV) Em tal caso, o que deve considerar-se provado ou não provado são os factos com base nos quais se pode concluir ou não pela conclusão fáctica enunciada como tema da prova.

V) Decidindo a primeira instância de facto por referência ao tema conclusivo, pode a Relação proferir decisão sobre os factos de que se infere."

2.  O acórdão reflecte, com clareza, a essência dos temas da prova, que foram introduzidos no nCPC, acima de tudo, com a finalidade de acabar com o rendilhado conceptual que tinha sido construído a partir do questionário e, posteriormente, da base instrutória prevista no aCPC, nomeadamente a impossibilidade de esta base conter tanto factos conclusivos, como conceitos de direito. Tudo isto tinha como consequência atomizar o objecto do processo numa multiplicidade de factos e afastar esse mesmo processo, e, em especial, a actividade instrutória nele realizada, da realidade da vida. Por exemplo: se, numa acção em que se alega a destruição de uma coisa e se pede uma indemnização por essa destruição, for controvertido se a coisa pertencia ao autor ou ao réu, não é compreensível que não se possa enunciar como objecto da prova a questão relativa a essa propriedade, com o argumento de que tal é um facto conclusivo ou de que "propriedade" é um conceito jurídico. 

Quanto a este último aspecto, a prática judiciária era particularmente discutível, atendendo a que o objecto do processo é construído a partir de conceitos jurídicos (porque apenas factos subsumíveis a fontes do direito são factos juridicamente relevantes) e considerando que a sentença tem de aplicar esses mesmos conceitos jurídicos (porque só com base em factos a eles subsumíveis pode considerar a acção procedente ou improcedente). Sendo assim, não era clara a razão pela qual, durante o processo, esses mesmos conceitos tinham de deixar de ser utilizados na selecção do objecto da prova. Os conceitos que tinham estado subjacentes à construção do objecto do processo e que tinham de ser utilizados pelo juiz na sentença final eram precisamente os conceitos que não podiam ser utilizados no momento de seleccionar a matéria de facto controvertida (que, por sua vez, tinha necessariamente de ser subsumível a um desses conceitos). No fundo, a construção pressuponha uma estrita e artificial separação entre a matéria de facto e a matéria de direito que a moderna metodologia do direito tende a rejeitar.

3. O acórdão também chama a atenção para que uma coisa são os temas de prova, outra bem diferente são os factos concretos que, na sentença final, têm de ser dados como provados para que a acção possa ser julgada procedente. Se, por exemplo, o tema da prova for o de determinar quem é o proprietário da coisa que foi destruída, na sentença final têm de ser apreciados (e, eventualmente, dados como provados) factos concretos que possam ser reconduzidos a um dos títulos de aquisição da propriedade (como o contrato ou a usucapião).

4. Aproveita-se a oportunidade para chamar a atenção para uma das diferenças entre os factos controvertidos que integravam a base instrutória e os temas da prova que agora são seleccionados como objecto da prova. A referida diferença consiste no seguinte:

--  Um facto controvertido é um facto alegado por uma parte e impugnado pela outra; portanto, uma questão relativa a esse facto não pode referir mais do que esse mesmo facto; por exemplo: o autor alega que atravessou a passadeira com o sinal verde para peões; o réu alega que o autor passou com o sinal vermelho; o que é controvertudo é o facto alegado pelo autor, pelo que só pode ser questionada na base instrutória se o autor passou com o sinal verde;

-- Um tema de prova é uma questão de facto controvertida; assim, utilizando o mesmo exemplo, o tema de prova é a questão de saber se o autor atravessou a passadeira com o sinal verde ou vermelho.

Enquanto o enunciado do facto controvertido só permite determinar se o autor atravessou com o sinal verde, o tema da prova possibilita determinar se o autor atravessou com o sinal verde ou vermelho. O enunciado do tema da prova permite que o resultado probatório corresponda tanto à prova (o autor atravessou com o sinal verde), como à prova do contrário (o autor atravessou com o sinal vermelho), pelo só ele é compatível com todas as possíveis decisões do tribunal: está provado que o autor atravessou com o sinal verde (prova); não está provado que o autor atravessou com o sinal verde (não prova); está provado que o autor atravessou com o sinal vermelho (prova do contrário). No rigor dos princípios, o facto controvertido que consta da base instrutória não permite que o tribunal dê como provado um facto contrário, dado que este não integra o objecto da prova (no exemplo, o objecto da prova é apenas determinar se o peão atravessou com o sinal verde); isso não sucede nos temas da prova, porque estes são compatíveis com qualquer das provas realizadas em juízo e com qualquer das decisões sobre essas provas.


MTS