"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/07/2014

Âmbito de aplicação do procedimento de injunção e da acção especial relativa ao cumprimento de obrigações pecuniárias




1. A lei estabelece dois procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000 (art. 1.º DL 269/98, de 1/9):

– O procedimento de injunção (art. 7.º a 21.º do Regime Anexo ao DL 269/98 (= RPOP)); no caso de o crédito resultar de uma transacção comercial, o procedimento de injunção pode ser utilizado qualquer que seja o montante do crédito (art. 10.º, n.º 1, DL 62/2013, de 10/5);

– A acção declarativa, conhecida frequentemente pelo acrónimo AECOP (art. 1.º a 5.º RPOP).

Como decorre do disposto no art. 1.º DL 269/98, estes dois procedimentos têm o mesmo âmbito de aplicação, pelo que tem de ser considerados como alternativos entre si. Quer isto dizer que o credor pode optar entre o procedimento de injunção e a AECOP. Exceptua-se o caso de o crédito ser superior a € 15.000 e decorrer de uma transacção comercial, porque, nesta hipótese, só pode ser utilizado o procedimento de injunção (e depois, eventualmente, o processo comum: cf. art. 10.º, n.º 2, DL 62/2013).

2. Têm surgido algumas dúvidas quanto à relação entre a AECOP e o processo comum. Já se tem entendido que a AECOP constitui uma opção concedida ao credor, que assim, quanto a um crédito não superior a € 15.000 e emergente de um contrato, pode optar entre a AECOP e o processo comum. Esta orientação, favorável a um carácter facultativo da AECOP, não pode ser seguida.

A razão para a rejeição da referida orientação não é doutrinária, mas legal. O art. 546.º, n.º 1, nCPC estabelece que o processo, declarativo ou executivo, pode ser comum e especial; o art. 546.º, n.º 2 1.ª parte, nCPC determina que o processo especial se aplica aos casos expressamente designados na lei, ou seja, aos casos nos quais a lei define o âmbito de aplicação de um determinado processo em função de determinados critérios (quase sempre relativos ao objecto).

É precisamente isso que sucede no caso da AECOP: esta acção tem um âmbito de aplicação delimitado em função da matéria (obrigação pecuniária emergente de contrato) e do valor (obrigação pecuniária não superior a € 15.000). Perante esta delimitação, o processo comum tem um âmbito de aplicação residual (art. 546.º, n.º 2 2.ª parte, nCPC), o que, em concreto, significa que este processo só é aplicável se a AECOP não dever ser aplicada.

Quer isto dizer que a orientação que entende que a AECOP é uma opção atribuída ao credor desrespeita o disposto no art. 546.º, n.º 2, nCPC, dado que, perante um processo especial, não lhe atribui a prevalência perante o processo comum que é imposta por aquele preceito.

3. O entendimento de que a AECOP não é uma forma processual facultativa é reforçado pelo que se dispõe no art. 10.º, n.º 2 e 4, DL 62/2013: o primeiro preceito (n.º 2) estabelece que, se a injunção se referir a um crédito de valor superior a € 15.000, a sua convolação, decorrente da oposição ou da frustração da notificação do requerido, implica a aplicação do processo comum; o segundo preceito (n.º 4) estatui que as acções para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transacções comerciais seguem os termos da AECOP quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação (isto é, € 15.000).

Estes regimes estão em completa harmonia com o que resulta do disposto no art. 546.º, n.º 2, nCPC: aplica-se o processo especial – isto é, a AECOP – se estiverem preenchidas as condições que determinam a sua aplicação em função da matéria e do valor; aplica-se o processo comum a acções que não cabem no âmbito de aplicação da AECOP. Se a AECOP fosse facultativa, o legislador teria consagrado que, mesmo quando estivesse preenchido o respectivo campo de aplicação, o credor poderia escolher entre a AECOP e o processo comum.

4. A estas razões acresce ainda uma outra. O entendimento segundo o qual o credor pode escolher entre a AECOP e o processo comum origina necessariamente um tratamento diferenciado entre os devedores: alguns são demandados nos termos da AECOP, outros, também devedores de quantias não superiores a € 15.000 e igualmente emergentes de contratos, são demandados num processo comum.

A lei pode criar regimes diferenciados para diferentes créditos (é precisamente o que faz quando delimita o campo de aplicação da AECOP e do processo comum), mas não pode permitir que o credor trate diferentemente os seus devedores. O que está em causa é a própria igualdade perante a lei (cf. art. 13.º CRP), dado que, a admitir-se o carácter facultativo ou opcional da AECOP, o tratamento diferenciado dos devedores resultaria de uma opção arbitrária do credor.

MTS