1. O sumário de STJ 17/6/2014 é o seguinte:
“I.
Se na prolação de um Acórdão, ambos os Adjuntos seguirem uma fundamentação diversa
da porfiada pelo Relator, sem embargo de o resultado poder ser idêntico, o
caminho para o alcançar não é igual, pelo que tal Aresto assim obtido mostra-se
lavrado «sem o necessário vencimento», a que se alude no normativo inserto no
artigo 716.º, n.º 1, do CPCivil [= art. 666.º, n.º 1, nCPC], porquanto se não
seguiram os items aludidos no artigo 713.º [= art. 663.º nCPC], do mesmo
diploma legal.
II.
O Acórdão proferido com dois votos de vencido no que tange à fundamentação é
nulo.
III.
Esta nulidade é insuprível pelo Tribunal ad quem, devendo a mesma ser colmatada pelo Tribunal a
quo e neste pelos mesmos Juízes que participaram na elaboração do Acórdão.”
O
acórdão não merece nenhuma censura: é efectivamente nula a decisão que, num
tribunal colectivo, seja lavrada sem o necessário vencimento (art. 666.º, n.º
1, e 685.º, n.º 1, nCPC), isto é, em contradição com o sentido maioritário dos
juízes do tribunal. O regime legal só se refere às decisões colectivas dos
tribunais superiores, mas é necessariamente aplicável a qualquer decisão de
qualquer tribunal colectivo.
O
acórdão em referência também é interessante por permitir uma reflexão sobre a
relevância dos fundamentos da decisão para a validade desta e, em especial,
sobre a relevância da fundamentação de cada um dos juízes do tribunal colectivo
para essa mesma validade. Normalmente, na análise das situações de nulidade da
decisão, é descurado o aspecto relacionado com a necessidade de a decisão
corresponder ao sentido maioritário dos juízes. O acórdão chama a atenção para
este aspecto.
2.
É um dado bem conhecido que a decisão tem de estar em consonância com os seus
fundamentos. Assim, por exemplo, a decisão não pode ser condenatória do devedor
demandado quando dos fundamentos consta o pagamento da dívida por esse mesmo
devedor. No direito português, a contradição entre os fundamentos e a decisão
conduz à nulidade desta (art. 615.º, n.º 1, al. c), 666.º, n.º 1, e 685.º
nCPC).
Menos
conhecida é a relevância que deve ser concedida à fundamentação de cada um dos
juízes de um tribunal colectivo. Como o acórdão mostra, a maioria tem de se
formar ao nível desta fundamentação, não sendo suficiente uma concordância maioritária
ou mesmo unânime quanto ao sentido (absolutório ou condenatório) da decisão. Se
um juiz vota a decisão com o fundamento x e dois outros juízes votam
essa mesma decisão com o fundamento y, a decisão tem de ser tomada por
maioria com base no fundamento y. É por isso que, como se diz no
acórdão, a decisão tomada por três juízes não pode ter dois votos de vencido.
Estes votos de vencido correspondem, afinal, ao sentido maioritário da opinião
dos juízes e, portanto, à decisão que deveria ter obtido vencimento.
3.
A relevância concedida aos fundamentos da decisão colectiva conduziu à
descoberta do chamado discursive dilemma ou doctrinal paradox (para
uma primeira aproximação ao problema, cf. Wikipedia e
referências dela constantes; para um interessante aprofundamento em open
source, cf. Mongin, The doctrinal paradox, the discursive dilemma,
and logical aggregation theory (MPRA Paper
No. 37752 (2012)).
O discursive
dilemma costuma ser exemplificado através de um exemplo jurídico (apesar de
o seu âmbito ser muito mais vasto e pretender abranger a generalidade das
decisões colectivas). Suponha-se que um tribunal composto por três juízes tem
de decidir se (i) houve incumprimento contratual por parte do devedor e se (ii)
houve danos resultantes desse incumprimento. As hipóteses quanto ao preenchimento
destes elementos (da regra jurídica: p & q → r) são as
seguintes:
O
paradoxo reside – afirma-se – em que, atendendo à posição de cada um dos juízes
quanto aos fundamentos da decisão (colunas 1 e 2), esta devia ser condenatória,
dado que há maiorias de juízes a favor da verificação de cada um dos elementos
do tipo legal; no entanto, a decisão final é absolutória (colunas 3 e 4). Importa procurar
perceber porquê.
Coluna 1
|
Coluna 2
|
Coluna 3
|
Coluna 4
|
|
Incumprimento (p)
|
Danos (q)
|
p & q
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Decisão
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|
Juiz 1
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Sim
|
Não
|
Não
|
Absolvição
|
Juiz 2
|
Não
|
Sim
|
Não
|
Absolvição
|
Juiz 3
|
Sim
|
Sim
|
Sim
|
Condenação
|
Maioria
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[Condenação]
|
[Condenação]
|
Absolvição
|
Absolvição
|
4.
A circunstância de, no exemplo acima apresentado, a condenação do demandado
pressupor uma maioria de juízes quanto à verificação do tipo legal (isto é,
quanto à verificação conjunta de p e de q) permite duvidar de que, pelo menos no âmbito de uma análise jurídica, se possa dizer que exista um verdadeiro dilema ou
paradoxo.
Na
verdade, dado que ambos os elementos do tipo legal (incumprimento (p) e danos
(q)) têm de estar preenchidos para que o réu possa ser condenado, não parece
que seja possível agrupar a votação elemento a elemento e concluir que há dois
juízes que consideram que houve incumprimento e dois juízes que consideram que
se verificaram danos (colunas 1 e 2). Qualquer jurista concluiria que, sendo o
tipo legal constituído por p & q, uma decisão de condenação exige a
verificação conjunta de p e de q e que, para o proferimento de uma decisão de
absolvição, basta que falte um qualquer desses elementos do tipo legal.
Em
termos jurídicos, o que conta é o voto sobre o conjunto constituído pelo
incumprimento do contrato (p) e pelos danos sofridos pelo demandante (q), isto
é, o resultado da coluna 3 (p & q). Nesta perspectiva, não há nenhum
dilema, nem existe nenhum paradoxo, dado que os resultados da coluna 3 coincidem
totalmente com o sentido da decisão constante da coluna 4 (decisão que é
condenatória se p e q estiverem preenchidos e absolutória em todos os demais
casos).
O
exemplo mostra que o resultado da votação sobre cada um dos elementos do tipo
legal (incumprimento (p), danos (d)) constante das colunas 1 e 2 é irrelevante para o sentido da decisão:
relevante é apenas o resultado quanto à verificação conjunta desses mesmos elementos que consta da
coluna 3 (para uma decisão condenatória, tem de haver incumprimento (p) e, além
disso, têm de existir danos (d)). Em concreto: a soma dos votos realizada nas colunas
1 e 2 é juridicamente irrelevante, porque um único dos elemento de um tipo legal não pode desencadear nenhuma consequência
jurídica. A ordem jurídica só opera com tipos legais, não com elementos isolados de tipos legais. Assim, o que interessa para se saber se, na opinião de cada juiz, um tipo
legal está preenchido é sempre a sua posição sobre todos os elementos desse
tipo (não a sua posição sobre cada um desses elementos), isto é, é sempre a sua votação sobre
p & q (coluna 3).
É
aliás por isso que é irrelevante que os juízes 1 e 2 não estejam de acordo
quanto aos elementos do tipo legal que se encontram preenchidos (um entende que
é o incumprimento (p), outro os danos (d)), mas, ainda assim, seja possível
somar os seus votos no sentido da absolvição do demandado. Sucede assim, porque
o que releva é que esses juízes estejam de acordo em que falta um dos elementos
do tipo legal, qualquer que seja esse elemento, e que, por isso, o tipo não se
encontra preenchido. É apenas este não preenchimento que tem significado para o sentido da decisão.
Em
concreto, podem ser somados os votos ~p e q, p e ~q, e ainda ~p e ~q, dado que
todos estes votos coincidem no não preenchimento do tipo legal. A não se entender assim, chegar-se-ia a um resultado verdadeiramente paradoxal. Se, no exemplo acima referido, não se pudessem somar os votos dos juízes 1 e 2 (que consideram que o tipo legal não está preenchido, apesar de cada um deles entender que falta um diferente elemento desse tipo), não seria possível nenhuma decisão maioritária, porque haveria que entender que existiriam três decisões distintas, uma por cada um dos três juízes (ver colunas 1, 2 e 3). Contraria o sentimento jurídico que, entendendo dois em três juízes que o tipo legal alegado pelo demandante não se encontra preenchido, o demandado não seja absolvido ou só o possa ser se esses juízes estiverem de acordo quanto ao elemento do tipo legal que não está preenchido.
5. Do exposto pode concluir-se que é possível a soma de votos com diferentes fundamentações quando se trata de concluir que um tipo legal não está preenchido. Os motivos pelo qual cada juiz considera que o demandado não é civilmente responsável podem ser vários: um juiz pode entender que a conduta não é ilícita, outro pode considerar que não há nenhum nexo causal entre a conduta e os danos. Isto não afasta que os seus votos se possam somar e, se forem maioritários, conduzam ao proferimento de uma decisão absolutória do demandado.
A justificação desta solução não é lógica, mas, acima de tudo, estritamente jurídica. Os tipos legais são normalmente compostos por vários elementos; a ordem jurídica só opera com tipos legais cujos elementos estejam, todos eles, preenchidos, isto é, não opera nem com elementos isolados de tipos legais, nem com tipos legais não preenchidos; logo, para essa mesma ordem, é indiferente o fundamento pelo qual se considera que o tipo legal não está preenchido, porque, desde que tal aconteça, a ordem jurídica não pode extrair nenhuma consequência dessa circunstância.
O discursive dilemma é uma muito interessante análise da decisão colectiva sob o ponto de vista lógico. Mas a ordem jurídica orienta-se por princípios que nem sempre podem ser reconduzidos à lógica: designadamente, a circunstância de, para a ordem jurídica, apenas o preenchimento de um tipo legal ser relevante implica o seu desinteresse dos motivos pelos quais um tipo legal não se encontra preenchido. Para a ordem jurídica releva apenas o tipo legal que esteja preenchido; se isso não suceder, a situação é juridicamente irrelevante. É por isso que, no âmbito de uma análise jurídica, as maiorias constantes das colunas 1 e 2 são irrelevantes: a ordem jurídica não lhes atribui nenhuma importância, porque não pode retirar delas nenhumas consequências.
Em última análise, é o princípio in dubio pro libertate que justifica esse desinteresse da ordem jurídica quanto aos fundamentos pelos quais o tipo legal não está preenchido: a ordem jurídica assegura que não intervém quando o tipo legal não se encontrar preenchido, ou seja, quando faltar algum dos elementos de um tipo legal. A circunstância de haver divergência entre os juízes de um tribunal quanto ao elemento de um tipo legal que não se encontra preenchido não pode alterar o princípio de não intervenção da ordem jurídica. Isto justifica a irrelevância dos motivos desses juízes numa decisão que conclui pelo não preenchimento de um tipo legal.
Em conclusão: o paradoxo a que se reporta o discursive dilemma só existe se os resultados das colunas 1 e 2 tiverem, por si só e em si mesmos, algum significado, isto é, se deles puder ser retirada alguma consequência. Não importa agora discutir se há alguma situação em que isso possa suceder, mas parece poder dizer-se que, na área do direito, isso não acontece. Se assim é, então no âmbito jurídico o discursive dilemma não se coloca.
6. Discursive dilemma à parte, o exemplo em análise confirma a relevância dos fundamentos da decisão, porque mostra que uma decisão é nula:
5. Do exposto pode concluir-se que é possível a soma de votos com diferentes fundamentações quando se trata de concluir que um tipo legal não está preenchido. Os motivos pelo qual cada juiz considera que o demandado não é civilmente responsável podem ser vários: um juiz pode entender que a conduta não é ilícita, outro pode considerar que não há nenhum nexo causal entre a conduta e os danos. Isto não afasta que os seus votos se possam somar e, se forem maioritários, conduzam ao proferimento de uma decisão absolutória do demandado.
A justificação desta solução não é lógica, mas, acima de tudo, estritamente jurídica. Os tipos legais são normalmente compostos por vários elementos; a ordem jurídica só opera com tipos legais cujos elementos estejam, todos eles, preenchidos, isto é, não opera nem com elementos isolados de tipos legais, nem com tipos legais não preenchidos; logo, para essa mesma ordem, é indiferente o fundamento pelo qual se considera que o tipo legal não está preenchido, porque, desde que tal aconteça, a ordem jurídica não pode extrair nenhuma consequência dessa circunstância.
O discursive dilemma é uma muito interessante análise da decisão colectiva sob o ponto de vista lógico. Mas a ordem jurídica orienta-se por princípios que nem sempre podem ser reconduzidos à lógica: designadamente, a circunstância de, para a ordem jurídica, apenas o preenchimento de um tipo legal ser relevante implica o seu desinteresse dos motivos pelos quais um tipo legal não se encontra preenchido. Para a ordem jurídica releva apenas o tipo legal que esteja preenchido; se isso não suceder, a situação é juridicamente irrelevante. É por isso que, no âmbito de uma análise jurídica, as maiorias constantes das colunas 1 e 2 são irrelevantes: a ordem jurídica não lhes atribui nenhuma importância, porque não pode retirar delas nenhumas consequências.
Em última análise, é o princípio in dubio pro libertate que justifica esse desinteresse da ordem jurídica quanto aos fundamentos pelos quais o tipo legal não está preenchido: a ordem jurídica assegura que não intervém quando o tipo legal não se encontrar preenchido, ou seja, quando faltar algum dos elementos de um tipo legal. A circunstância de haver divergência entre os juízes de um tribunal quanto ao elemento de um tipo legal que não se encontra preenchido não pode alterar o princípio de não intervenção da ordem jurídica. Isto justifica a irrelevância dos motivos desses juízes numa decisão que conclui pelo não preenchimento de um tipo legal.
Em conclusão: o paradoxo a que se reporta o discursive dilemma só existe se os resultados das colunas 1 e 2 tiverem, por si só e em si mesmos, algum significado, isto é, se deles puder ser retirada alguma consequência. Não importa agora discutir se há alguma situação em que isso possa suceder, mas parece poder dizer-se que, na área do direito, isso não acontece. Se assim é, então no âmbito jurídico o discursive dilemma não se coloca.
6. Discursive dilemma à parte, o exemplo em análise confirma a relevância dos fundamentos da decisão, porque mostra que uma decisão é nula:
– Se
não coincidir com a maioria formada quanto ao preenchimento do tipo legal, isto
é, se houver contradição entre os resultados da coluna 3 e da coluna 4; nesta
hipótese, a decisão é proferida sem o necessário vencimento (cf. art. 666.º,
n.º 1, e 685.º nCPC);
–
Se a decisão sobre o preenchimento do tipo legal for contraditória com a
decisão tomada sobre cada um dos elementos desse tipo, isto é, se houver
contradição entre o que consta da coluna
3 ou 4 e o que foi apurado nas colunas 1 e 2; é o caso, por exemplo, de se dar como preenchido um tipo legal quando a
maioria dos juízes considerou que um dos elementos desse tipo não se encontra
preenchido; nesta hipótese, a decisão é nula quer por ser proferida sem o necessário vencimento (cf. art. 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC), quer por contradição com os seus
fundamentos (cf. art. art. 615.º, n.º 1, al. c), 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC).
MTS
Nota: Por imperícia informática, foi publicitada uma versão ainda de trabalho deste post. O texto que agora é publicitado é o que corresponde à versão final (que, atendendo ao tema em análise, não deve ser confundida com versão definitiva).