"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/07/2014

Validade da decisão; "discursive dilemma"



1. O sumário de STJ 17/6/2014 é o seguinte:

“I. Se na prolação de um Acórdão, ambos os Adjuntos seguirem uma fundamentação diversa da porfiada pelo Relator, sem embargo de o resultado poder ser idêntico, o caminho para o alcançar não é igual, pelo que tal Aresto assim obtido mostra-se lavrado «sem o necessário vencimento», a que se alude no normativo inserto no artigo 716.º, n.º 1, do CPCivil [= art. 666.º, n.º 1, nCPC], porquanto se não seguiram os items aludidos no artigo 713.º [= art. 663.º nCPC], do mesmo diploma legal.

II. O Acórdão proferido com dois votos de vencido no que tange à fundamentação é nulo.

III. Esta nulidade é insuprível pelo Tribunal ad quem, devendo a mesma ser colmatada pelo Tribunal a quo e neste pelos mesmos Juízes que participaram na elaboração do Acórdão.

O acórdão não merece nenhuma censura: é efectivamente nula a decisão que, num tribunal colectivo, seja lavrada sem o necessário vencimento (art. 666.º, n.º 1, e 685.º, n.º 1, nCPC), isto é, em contradição com o sentido maioritário dos juízes do tribunal. O regime legal só se refere às decisões colectivas dos tribunais superiores, mas é necessariamente aplicável a qualquer decisão de qualquer tribunal colectivo.

O acórdão em referência também é interessante por permitir uma reflexão sobre a relevância dos fundamentos da decisão para a validade desta e, em especial, sobre a relevância da fundamentação de cada um dos juízes do tribunal colectivo para essa mesma validade. Normalmente, na análise das situações de nulidade da decisão, é descurado o aspecto relacionado com a necessidade de a decisão corresponder ao sentido maioritário dos juízes. O acórdão chama a atenção para este aspecto.

2. É um dado bem conhecido que a decisão tem de estar em consonância com os seus fundamentos. Assim, por exemplo, a decisão não pode ser condenatória do devedor demandado quando dos fundamentos consta o pagamento da dívida por esse mesmo devedor. No direito português, a contradição entre os fundamentos e a decisão conduz à nulidade desta (art. 615.º, n.º 1, al. c), 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC).

Menos conhecida é a relevância que deve ser concedida à fundamentação de cada um dos juízes de um tribunal colectivo. Como o acórdão mostra, a maioria tem de se formar ao nível desta fundamentação, não sendo suficiente uma concordância maioritária ou mesmo unânime quanto ao sentido (absolutório ou condenatório) da decisão. Se um juiz vota a decisão com o fundamento x e dois outros juízes votam essa mesma decisão com o fundamento y, a decisão tem de ser tomada por maioria com base no fundamento y. É por isso que, como se diz no acórdão, a decisão tomada por três juízes não pode ter dois votos de vencido. Estes votos de vencido correspondem, afinal, ao sentido maioritário da opinião dos juízes e, portanto, à decisão que deveria ter obtido vencimento.

3. A relevância concedida aos fundamentos da decisão colectiva conduziu à descoberta do chamado discursive dilemma ou doctrinal paradox (para uma primeira aproximação ao problema, cf. Wikipedia e referências dela constantes; para um interessante aprofundamento em open source, cf. Mongin, The doctrinal paradox, the discursive dilemma, and logical aggregation theory (MPRA Paper No. 37752 (2012)).

O discursive dilemma costuma ser exemplificado através de um exemplo jurídico (apesar de o seu âmbito ser muito mais vasto e pretender abranger a generalidade das decisões colectivas). Suponha-se que um tribunal composto por três juízes tem de decidir se (i) houve incumprimento contratual por parte do devedor e se (ii) houve danos resultantes desse incumprimento. As hipóteses quanto ao preenchimento destes elementos (da regra jurídica: p & qr) são as seguintes:



Coluna 1
Coluna 2
Coluna 3
Coluna 4

Incumprimento (p)
Danos (q)
p & q
Decisão
Juiz 1
Sim
Não
Não
Absolvição
Juiz 2
Não
Sim
Não
Absolvição
Juiz 3
Sim
Sim
Sim
Condenação
Maioria
[Condenação]
[Condenação]
Absolvição
Absolvição


O paradoxo reside – afirma-se – em que, atendendo à posição de cada um dos juízes quanto aos fundamentos da decisão (colunas 1 e 2), esta devia ser condenatória, dado que há maiorias de juízes a favor da verificação de cada um dos elementos do tipo legal; no entanto, a decisão final é absolutória (colunas 3 e 4). Importa procurar perceber porquê.

4. A circunstância de, no exemplo acima apresentado, a condenação do demandado pressupor uma maioria de juízes quanto à verificação do tipo legal (isto é, quanto à verificação conjunta de p e de q) permite duvidar de que, pelo menos no âmbito de uma análise jurídica, se possa dizer que exista um verdadeiro dilema ou paradoxo. 

Na verdade, dado que ambos os elementos do tipo legal (incumprimento (p) e danos (q)) têm de estar preenchidos para que o réu possa ser condenado, não parece que seja possível agrupar a votação elemento a elemento e concluir que há dois juízes que consideram que houve incumprimento e dois juízes que consideram que se verificaram danos (colunas 1 e 2). Qualquer jurista concluiria que, sendo o tipo legal constituído por p & q, uma decisão de condenação exige a verificação conjunta de p e de q e que, para o proferimento de uma decisão de absolvição, basta que falte um qualquer desses elementos do tipo legal.

Em termos jurídicos, o que conta é o voto sobre o conjunto constituído pelo incumprimento do contrato (p) e pelos danos sofridos pelo demandante (q), isto é, o resultado da coluna 3 (p & q). Nesta perspectiva, não há nenhum dilema, nem existe nenhum paradoxo, dado que os resultados da coluna 3 coincidem totalmente com o sentido da decisão constante da coluna 4 (decisão que é condenatória se p e q estiverem preenchidos e absolutória em todos os demais casos).

O exemplo mostra que o resultado da votação sobre cada um dos elementos do tipo legal (incumprimento (p), danos (d)) constante das colunas 1 e 2 é irrelevante para o sentido da decisão: relevante é apenas o resultado quanto à verificação conjunta desses mesmos elementos que consta da coluna 3 (para uma decisão condenatória, tem de haver incumprimento (p) e, além disso, têm de existir danos (d)). Em concreto: a soma dos votos realizada nas colunas 1 e 2 é juridicamente irrelevante, porque um único dos elemento de um tipo legal não pode desencadear nenhuma consequência jurídica. A ordem jurídica só opera com tipos legais, não com elementos isolados de tipos legais. Assim, o que interessa para se saber se, na opinião de cada juiz, um tipo legal está preenchido é sempre a sua posição sobre todos os elementos desse tipo (não a sua posição sobre cada um desses elementos), isto é, é sempre a sua votação sobre p & q (coluna 3).

É aliás por isso que é irrelevante que os juízes 1 e 2 não estejam de acordo quanto aos elementos do tipo legal que se encontram preenchidos (um entende que é o incumprimento (p), outro os danos (d)), mas, ainda assim, seja possível somar os seus votos no sentido da absolvição do demandado. Sucede assim, porque o que releva é que esses juízes estejam de acordo em que falta um dos elementos do tipo legal, qualquer que seja esse elemento, e que, por isso, o tipo não se encontra preenchido. É apenas este não preenchimento que tem significado para o sentido da decisão.

Em concreto, podem ser somados os votos ~p e q, p e ~q, e ainda ~p e ~q, dado que todos estes votos coincidem no não preenchimento do tipo legal. A não se entender assim, chegar-se-ia a um resultado verdadeiramente paradoxal. Se, no exemplo acima referido, não se pudessem somar os votos dos juízes 1 e 2 (que consideram que o tipo legal não está preenchido, apesar de cada um deles entender que falta um diferente elemento desse tipo), não seria possível nenhuma decisão maioritária, porque haveria que entender que existiriam três decisões distintas, uma por cada um dos três juízes (ver colunas 1, 2 e 3). Contraria o sentimento jurídico que, entendendo dois em três juízes que o tipo legal alegado pelo demandante não se encontra preenchido, o demandado não seja absolvido ou só o possa ser se esses juízes estiverem de acordo quanto ao elemento do tipo legal que não está preenchido.

5. Do exposto pode concluir-se que é possível a soma de votos com diferentes fundamentações quando se trata de concluir que um tipo legal não está preenchido. Os motivos pelo qual cada juiz considera que o demandado não é civilmente responsável podem ser vários: um juiz pode entender que a conduta não é ilícita, outro pode considerar que não há nenhum nexo causal entre a conduta e os danos. Isto não afasta que os seus votos se possam somar e, se forem maioritários, conduzam ao proferimento de uma decisão absolutória do demandado.

A justificação desta solução não é lógica, mas, acima de tudo, estritamente jurídica. Os tipos legais são normalmente compostos por vários elementos; a ordem jurídica só opera com tipos legais cujos elementos estejam, todos eles, preenchidos, isto é, não opera nem com elementos isolados de tipos legais, nem com tipos legais não preenchidos; logo, para essa mesma ordem, é indiferente o fundamento pelo qual se considera que o tipo legal não está preenchido, porque, desde que tal aconteça, a ordem jurídica não pode extrair nenhuma consequência dessa circunstância.

O discursive dilemma é uma muito interessante análise da decisão colectiva sob o ponto de vista lógico. Mas a ordem jurídica orienta-se por princípios que nem sempre podem ser reconduzidos à lógica: designadamente, a circunstância de, para a ordem jurídica, apenas o preenchimento de um tipo legal ser relevante implica o seu desinteresse dos motivos pelos quais um tipo legal não se encontra preenchido. Para a ordem jurídica releva apenas o tipo legal que esteja preenchido; se isso não suceder, a situação é juridicamente irrelevante. É por isso que, no âmbito de uma análise jurídica, as maiorias constantes das colunas 1 e 2 são irrelevantes: a ordem jurídica não lhes atribui nenhuma importância, porque não pode retirar delas nenhumas consequências.

Em última análise, é o princípio in dubio pro libertate que justifica esse desinteresse da ordem jurídica quanto aos fundamentos pelos quais o tipo legal não está preenchido: a ordem jurídica assegura que não intervém quando o tipo legal não se encontrar preenchido, ou seja, quando faltar algum dos elementos de um tipo legal. A circunstância de haver divergência entre os juízes de um tribunal quanto ao elemento de um tipo legal que não se encontra preenchido não pode alterar o princípio de não intervenção da ordem jurídica. Isto justifica a irrelevância dos motivos desses juízes numa decisão que conclui pelo não preenchimento de um tipo legal.

Em conclusão: o paradoxo a que se reporta o discursive dilemma só existe se os resultados das colunas 1 e 2 tiverem, por si só e em si mesmos, algum significado, isto é, se deles puder ser retirada alguma consequência. Não importa agora discutir se há alguma situação em que isso possa suceder, mas parece poder dizer-se que, na área do direito, isso não acontece. Se assim é, então no âmbito jurídico o discursive dilemma não se coloca.

6. Discursive dilemma à parte, o exemplo em análise confirma a relevância dos fundamentos da decisão, porque mostra que uma decisão é nula:

– Se não coincidir com a maioria formada quanto ao preenchimento do tipo legal, isto é, se houver contradição entre os resultados da coluna 3 e da coluna 4; nesta hipótese, a decisão é proferida sem o necessário vencimento (cf. art. 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC);

– Se a decisão sobre o preenchimento do tipo legal for contraditória com a decisão tomada sobre cada um dos elementos desse tipo, isto é, se houver contradição entre o que consta da coluna 3 ou 4 e o que foi apurado nas colunas 1 e 2; é o caso, por exemplo, de se dar como preenchido um tipo legal quando a maioria dos juízes considerou que um dos elementos desse tipo não se encontra preenchido; nesta hipótese, a decisão é nula quer por ser proferida sem o necessário vencimento (cf. art. 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC), quer por contradição com os seus fundamentos (cf. art. art. 615.º, n.º 1, al. c), 666.º, n.º 1, e 685.º nCPC).


MTS

Nota: Por imperícia informática, foi publicitada uma versão ainda de trabalho deste post. O texto que agora é publicitado é o que corresponde à versão final (que, atendendo ao tema em análise, não deve ser confundida com versão definitiva).