1. Continuando
a reflexão sobre o recorte dos factos complementares no actual processo civil
português, importa começar por chamar a atenção para a função e a natureza da
causa de pedir. A relevância da análise desta função e natureza é clara: se se
trabalha com a dualidade entre causa de pedir e factos complementares (hoje
imposta pela lei: cf. art. 5.º, n.º 1 e 2, al. b), CPC), importa atender à
função e natureza da causa de pedir para permitir a distinção entre esta causa petendi e os factos
complementares.
2. É
aceite, supõe-se que sem discussão, que a causa de pedir realiza, entre outras,
uma função de individualização do pedido (e, portanto, do objecto da causa). A
causa de pedir destina-se a permitir averiguar por que motivo o autor pede uma
determinada forma de tutela jurídica para uma certa situação jurídica (o que,
como se sabe, é essencial para apurar a verificação das excepções de
litispendência e de caso julgado). Por exemplo: o autor pede a condenação do
réu em 1000; é necessário saber se o pede porque celebrou um contrato com o
demandado, porque foi lesado por este demandado nesse mesmo montante ou ainda
porque tem direito a receber essa quantia por sucessão mortis causa. Desde que se perceba o fundamento do pedido do autor
– isto é, desde que se perceba o porquê daquele pedido –, há uma adequada causa
de pedir.
Contra
isto poder-se-ia objectar que não basta que se perceba o porquê do pedido
formulado pelo demandante, sendo necessário que a causa de pedir contenha todos
os factos que são indispensáveis para assegurar a procedência da acção. O
argumento não pode ser considerado relevante: a causa de pedir não é um
conceito substantivo, mas (tal como, aliás, os conceitos de objecto do processo
e de pedido) um conceito processual; consequentemente, a sua função é
processual (assegurar a individualização do objecto do processo), e não
substantiva (garantir a procedência da causa).
É na
mistura indevida do plano substantivo e processual que residem muitos dos
equívocos sobre a causa de pedir (e da sua relação com os factos
complementares). Uma coisa é um tipo legal e os elementos que o compõem, outra,
bem distinta, é a causa de pedir e os factos que são necessários para
individualizar um objecto processual. Sem o preenchimento de todos os elementos
de um tipo legal (x, y e z,
por exemplo), a acção não pode ser julgada procedente; mas sem todos os factos
que são subsumíveis a um tipo legal pode haver uma causa de pedir (x e y podem
ser suficientes para constituir uma causa de pedir, ou seja, para
individualizar um certo objecto processual). Supõe-se que esta última afirmação
é indesmentível: se a mesma não fosse (necessariamente) verdadeira, nunca
poderia haver uma improcedência da acção por falta de elementos de um
determinado tipo legal, dado que, se a causa de pedir tivesse de coincidir com
todos os factos necessários para preencher esse tipo legal, verificar-se-ia
então uma ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir (cf. art.
186.º, n.º 2, al. a), CPC).
Dito de
outro modo: para que, por exemplo, uma acção de indemnização proceda, é
necessário que estejam preenchidos os elementos x, y e z; o autor só alega x e y; apesar da falta de
alegação de z, está perfeitamente
claro qual é o acidente de automóvel a que o autor se refere, ou seja, está
perfeitamente demarcada a causa de pedir invocada por esse demandante; a falta
de alegação de z implica a
improcedência da acção, não a falta de causa de pedir e a ineptidão da petição
inicial.
Portanto,
é possível que um facto não seja essencial para constituir uma causa de pedir
(ou seja, para individualizar um certo objecto), mas seja essencial para obter
a procedência da acção. É precisamente isto que configura um facto
complementar.
3. Como se
referiu, o plano substantivo dos elementos do tipo legal não deve ser
confundido com o plano processual da causa de pedir. O direito português é
bastante explícito nesta distinção: se não houver causa de pedir, a
consequência desencadeia-se no plano processual (ou de admissibilidade), em
concreto, na ineptidão da petição inicial; se os elementos do tipo legal não
estiverem todos preenchidos, a consequência situa-se no plano da fundamentação:
a acção é julgada improcedente.
Estes planos
não devem ser misturados, não se devendo exigir que a causa de pedir – que é um
conceito processual, relevante para a admissibilidade da acção – deva cumprir
uma função substantiva, nomeadamente a de assegurar a fundamentação da acção.
Uma coisa é verificar se a acção é admissível por conter uma causa de pedir;
outra bem distinta é saber se os factos alegados pelo autor são suficientes
para assegurar a fundamentação da acção. Tal como, por exemplo, a legitimidade
do demandado (plano processual) não assegura a procedência da acção contra essa
parte (plano substantivo), também a causa de pedir (plano processual) pode não
ser suficiente para garantir a fundamentação da acção (plano substantivo).
As
confusões sobre a causa de pedir deixariam de existir se os referidos planos (o
processual e o substantivo) não fossem misturados, isto é, se não se atribuísse
à causa de pedir uma função que ela não tem de cumprir. Repete-se: a função da
causa de pedir é individualizar o objecto do processo; tudo o que não seja
necessário para realizar essa individualização não integra a causa de pedir,
por muito essencial que seja para assegurar a procedência da acção.
4. Esta
conclusão é relevante para o recorte dos factos complementares. As orientações
que integram os factos complementares na causa de pedir, com o argumento de que
os mesmos são relevantes (quiçá indispensáveis) para a procedência da acção,
são as mesmas que exigem que a causa de pedir cumpra uma função (de
fundamentação) que não lhe é própria.
O que
essas orientações não conseguem explicar é a própria distinção (que é hoje
legal: cf. art. 5.º, n.º 1 e 2, al. b), CPC) entre a causa de pedir e os factos
complementares. Acima defendeu-se que a causa de pedir não tem de coincidir com
todos os elementos de um tipo legal; agora pode argumentar-se que a previsão
legal dos factos complementares impede que a causa de pedir seja reconduzida a
todos os elementos de um tipo legal. Se há factos complementares de uma causa
de pedir e se esses factos, por preencherem um dos elementos do tipo legal, são
essenciais para a procedência da acção, então pode concluir-se que a causa de pedir
não tem de comportar todos os elementos do tipo legal. Há factos que se
reconduzem a alguns desses elementos e que constituem a causa de pedir; mas também
há factos que se reconduzem a outros elementos do tipo e que integram os factos
complementares. Negar isto equivale a negar a própria distinção – legal,
repita-se – entre causa de pedir e factos complementares.
Em suma: um
tipo legal exige o preenchimento de todos os seus elementos (objectivos,
subjectivos, temporais, etc.); a causa de pedir não integra os factos
complementares (sob pena de, contra legem,
não se fazer nenhuma distinção entre a causa de pedir e os factos
complementares); logo, a causa de pedir não tem de coincidir com todos os
elementos de um tipo legal. Assim, em vez de procurar reconduzir os factos
complementares à causa de pedir (e de, com isso, negar a distinção legal entre
a causa de pedir e esses factos), o que há que fazer é precisamente o contrário,
sob pena de a distinção não ter nenhum significado (e, acima de tudo, não ter
qualquer utilidade): o que, coerentemente com a referida distinção, há a fazer
é afastar os factos complementares da causa de pedir.
5. A
distinção entre a causa de pedir e os factos complementares pode ser conjugada
com uma classificação dos elementos de um tipo legal. Um tipo legal pode conter
elementos essenciais e elementos acessórios. Por exemplo: numa acção de
indemnização pelos danos sofridos num acidente de automóvel devem estar
preenchidos todos os elementos (essenciais) respeitantes à responsabilidade
civil; além disso, exige-se que o responsável pelo acidente tenha a direcção
efectiva do veículo e o utilize no seu próprio interesse (cf. art. 503.º, n.º
1, CC).
Pode
suceder que, para a individualização do objecto do processo, bastem factos
respeitantes aos elementos essenciais, apesar de, para a fundamentação da
causa, também serem indispensáveis factos referidos aos elementos acessórios. No
exemplo anterior: a descrição do acidente de viação e o enunciado dos danos
sofridos pelo lesado são suficientes para se perceber a razão pela qual o autor
quer ser indemnizado; mas este autor não consegue a procedência da acção se não
ficar demonstrado que quem é demandado (ou substituído pela sua seguradora) tem
a direcção efectiva do veículo e o utiliza no seu próprio interesse.
A
distinção entre a causa de pedir e os factos complementares passa precisamente por
aqui: a causa de pedir é integrada pelos factos subsumíveis aos elementos
essenciais de um tipo legal; os factos complementares são subsumíveis aos
elementos acessórios (ou complementares, poder-se-ia dizer) desse mesmo tipo.
6.
Independentemente de qualquer adesão ao que acima foi dito, supõe-se que uma
coisa é indiscutível: a lei opera com uma distinção entre causa de pedir e
factos complementares; assim, integrar os factos complementares na causa de
pedir com o fundamento de que os mesmos são essenciais para a procedência da
acção não só não corresponde à função da causa
petendi, como implica negar aquela distinção e contrariar a lei.
MTS