1. O art. 671.º,
n.º 3, CPC manteve, embora com algumas alterações, o regime da chamada dupla
conforme instituído pelo DL 303/2007, de 24/8 (art. 721.º, n.º 3, aCPC). A dupla
conforme é um mau regime para cumprir uma função indispensável: a de impor um “filtro”
à admissibilidade do recurso de revista, isto é, do recurso a interpor para o
STJ.
O regime da
dupla conforme levanta vários problemas, nomeadamente quando a parte recorrente
obtém na Relação uma decisão mais favorável do que aquela que tinha obtido na
instância recorrida. A jurisprudência, seguindo a única orientação possível,
tem entendido – pelo menos, recentemente – que a situação não impede o
funcionamento da regra da dupla conforme (cf., por exemplo, STJ
12/7/2011). A justificação desta solução é evidente: se, na 1.ª instância,
o autor obtivera € 50.000 e consegue obter € 75.000 na 2.ª instância, é claro
que não pode recorrer para o STJ; afinal, se tivesse obtido na 2.ª instância os
mesmos € 50.000 também não poderia recorrer, porque a isso obstaria o regime da
dupla conforme.
2. A regra
acima enunciada vale para o caso em que a parte pretende interpor um recurso
independente. Importa verificar se a mesma regra de irrecorribilidade também
vale quando a parte pretende interpor um recurso subordinado.
O problema
coloca-se porque, segundo o disposto no art. 633.º, n.º 5, CPC, o recurso
subordinado não fica dependente da regra da sucumbência, isto é, a sua
admissibilidade não é condicionada pela circunstância de a parte ter ficado
vencida em montante que é igual ou inferior a metade da alçada do tribunal a quo.
Interessa saber se
deste regime pode ser retirado algo para a hipótese
em que, atendendo ao critério da dupla conforme, o recurso é admissível para
uma das partes, mas inadmissível para a outra parte. Imagine-se a seguinte
situação: o autor pede € 100.000 e obtém € 80.000 na 1.ª
instância; ambas as partes recorrem (o autor ficou vencido em € 20.000, o réu
em € 80.000); a Relação baixa para € 60,000 a condenação do réu; o autor pode
recorrer (ficou agora vencido em € 40.000), mas funciona o critério da dupla
conforme para o réu (fora condenado em € 80.000, agora é apenas condenado em € 60.000,
pelo que é beneficiado pela decisão da Relação); o que se pode perguntar é se,
interpondo o autor recurso de revista, o réu pode interpor um recurso
subordinado, procurando uma decisão mais favorável do que a condenação em € 60.000.
Pode responder-se à questão
colocada dizendo que os problemas nada têm em comum: a relevância ou irrelevância
da sucumbência refere-se à legitimidade da parte para recorrer; a relevância ou
irrelevância da dupla conforme respeita à recorribilidade da decisão. Não parece,
no entanto, que esta orientação puramente formal deva ser seguida.
3. Atendendo à regra que se
encontra no art. 633.º, n.º 5, CPC, há que considerar duas hipóteses:
– A parte que interpõe o
recurso subordinado ficou vencida em valor superior a metade da alçada da
Relação (isto é, em mais de €15.000);
– A parte que interpõe o
recurso subordinado ficou vencida em valor igual ou inferior a metade da alçada
da Relação.
4. No primeiro caso, a
irrelevância do critério da dupla conforme significa apenas que se concede à
parte a possibilidade de procurar obter no STJ uma decisão ainda mais favorável
do que aquela que conseguiu na 2.ª instância. Por exemplo: o autor pede em 1.ª
instância €150.000; nesta instância obtém € 50.000; ambas as partes recorrem
para a Relação e esta condena o réu em € 40.000; o autor interpõe recurso de
revista; a irrelevância do "filtro" da dupla conforme permite que o
réu possa recorrer subordinadamente, procurando obter uma absolvição total.
A favor desta irrelevância
há um forte argumento: se se atribuir relevância ao sistema da dupla conforme
no recurso subordinado (isto é, se se admitir que a dupla conforme pode obstar
a esse recurso), uma das partes pode interpor o recurso com a garantia de que a
outra parte (igualmente vencida) não pode recorrer, nem que seja de forma
subordinada. No entanto, a circunstância de ambas as partes terem ficado
vencidas e de uma delas não poder sequer interpor um recurso subordinado viola
o princípio da igualdade das partes. Foi aliás o respeito desta igualdade que
impôs a irrelevância da sucumbência da parte no art. 633.º, n.º 5, CPC: como se
estabelece neste preceito, se o recurso independente for admissível, também o é
o recurso subordinado, ou seja, se uma das partes fizer uso da faculdade de
recorrer, a outra parte também tem igual faculdade. A igualdade das partes impõe
a irrelevância do regime da dupla conforme no recurso subordinado, de acordo
com o princípio de que, se uma das partes recorre, a outra pode sempre recorrer
de forma subordinada.
5. O segundo caso implica a
conjugação da regra da irrelevância da sucumbência da parte com o regime da
dupla conforme. Em relação a esse caso vale igualmente o argumento relativo à
igualdade das partes, mas a sua particularidade reside em que se pode perguntar
se, apesar de não relevar no recurso subordinado o montante da sucumbência da
parte, ainda assim este recurso pode ser considerado inadmissível por força do
regime da dupla conforme. Mais em concreto, o que importa determinar é se o regime
da dupla conforme se pode sobrepor ao regime da irrelevância da sucumbência da
parte.
Se, no recurso subordinado,
é irrelevante que a parte tenha ficado vencida numa quantia igual ou inferior a
metade da alçada da Relação, ou seja, se o art. 633.º, n.º 5, CPC estabelece um
favor impugnationis, não é
sistematicamente coerente destruir esse favor
impugnationis com o regime da dupla conforme. Por exemplo: o autor pede em
1.ª instância € 150.000; em 1.ª instância obtém € 50.000; ambas as partes
recorreram para a Relação e esta condenou o réu apenas em € 10.000; o autor
interpõe recurso de revista; o réu pode recorrer subordinadamente, apesar de o
valor da sua sucumbência ser inferior a metade da alçada da Relação (€ 15.000) e de o critério da
dupla conforme tornar inadmissível o recurso.
6. Desconhece-se se o
legislador de 2007 anteviu todas as consequências da introdução do regime da
dupla conforme, mas o art. 9.º, n.º 3, CC impõe que se presuma que o legislador
não pretendeu nem violar o princípio da igualdade das partes, permitindo apenas
que, havendo duas partes vencidas, somente uma delas possa interpor recurso,
nem criar uma incongruência entre a irrelevância do montante da sucumbência no
recurso subordinado e a relevância da dupla conforme nesse mesmo recurso.
7. Não é preciso acrescentar
que a problemática da relevância da dupla conforme no recurso subordinado merece
ser aprofundada e enriquecida com outras reflexões.
MTS