"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/07/2014

Dupla conforme e recurso subordinado



1. O art. 671.º, n.º 3, CPC manteve, embora com algumas alterações, o regime da chamada dupla conforme instituído pelo DL 303/2007, de 24/8 (art. 721.º, n.º 3, aCPC). A dupla conforme é um mau regime para cumprir uma função indispensável: a de impor um “filtro” à admissibilidade do recurso de revista, isto é, do recurso a interpor para o STJ.

O regime da dupla conforme levanta vários problemas, nomeadamente quando a parte recorrente obtém na Relação uma decisão mais favorável do que aquela que tinha obtido na instância recorrida. A jurisprudência, seguindo a única orientação possível, tem entendido – pelo menos, recentemente – que a situação não impede o funcionamento da regra da dupla conforme (cf., por exemplo, STJ 12/7/2011). A justificação desta solução é evidente: se, na 1.ª instância, o autor obtivera € 50.000 e consegue obter € 75.000 na 2.ª instância, é claro que não pode recorrer para o STJ; afinal, se tivesse obtido na 2.ª instância os mesmos € 50.000 também não poderia recorrer, porque a isso obstaria o regime da dupla conforme.

2. A regra acima enunciada vale para o caso em que a parte pretende interpor um recurso independente. Importa verificar se a mesma regra de irrecorribilidade também vale quando a parte pretende interpor um recurso subordinado.

O problema coloca-se porque, segundo o disposto no art. 633.º, n.º 5, CPC, o recurso subordinado não fica dependente da regra da sucumbência, isto é, a sua admissibilidade não é condicionada pela circunstância de a parte ter ficado vencida em montante que é igual ou inferior a metade da alçada do tribunal a quo.

Interessa saber se deste regime pode ser retirado algo para a hipótese em que, atendendo ao critério da dupla conforme, o recurso é admissível para uma das partes, mas inadmissível para a outra parte. Imagine-se a seguinte situação: o autor pede € 100.000 e obtém € 80.000 na 1.ª instância; ambas as partes recorrem (o autor ficou vencido em € 20.000, o réu em € 80.000); a Relação baixa para € 60,000 a condenação do réu; o autor pode recorrer (ficou agora vencido em € 40.000), mas funciona o critério da dupla conforme para o réu (fora condenado em € 80.000, agora é apenas condenado em € 60.000, pelo que é beneficiado pela decisão da Relação); o que se pode perguntar é se, interpondo o autor recurso de revista, o réu pode interpor um recurso subordinado, procurando uma decisão mais favorável do que a condenação em € 60.000.

Pode responder-se à questão colocada dizendo que os problemas nada têm em comum: a relevância ou irrelevância da sucumbência refere-se à legitimidade da parte para recorrer; a relevância ou irrelevância da dupla conforme respeita à recorribilidade da decisão. Não parece, no entanto, que esta orientação puramente formal deva ser seguida.

3. Atendendo à regra que se encontra no art. 633.º, n.º 5, CPC, há que considerar duas hipóteses:

– A parte que interpõe o recurso subordinado ficou vencida em valor superior a metade da alçada da Relação (isto é, em mais de €15.000);

– A parte que interpõe o recurso subordinado ficou vencida em valor igual ou inferior a metade da alçada da Relação.

4. No primeiro caso, a irrelevância do critério da dupla conforme significa apenas que se concede à parte a possibilidade de procurar obter no STJ uma decisão ainda mais favorável do que aquela que conseguiu na 2.ª instância. Por exemplo: o autor pede em 1.ª instância €150.000; nesta instância obtém € 50.000; ambas as partes recorrem para a Relação e esta condena o réu em € 40.000; o autor interpõe recurso de revista; a irrelevância do "filtro" da dupla conforme permite que o réu possa recorrer subordinadamente, procurando obter uma absolvição total.

A favor desta irrelevância há um forte argumento: se se atribuir relevância ao sistema da dupla conforme no recurso subordinado (isto é, se se admitir que a dupla conforme pode obstar a esse recurso), uma das partes pode interpor o recurso com a garantia de que a outra parte (igualmente vencida) não pode recorrer, nem que seja de forma subordinada. No entanto, a circunstância de ambas as partes terem ficado vencidas e de uma delas não poder sequer interpor um recurso subordinado viola o princípio da igualdade das partes. Foi aliás o respeito desta igualdade que impôs a irrelevância da sucumbência da parte no art. 633.º, n.º 5, CPC: como se estabelece neste preceito, se o recurso independente for admissível, também o é o recurso subordinado, ou seja, se uma das partes fizer uso da faculdade de recorrer, a outra parte também tem igual faculdade. A igualdade das partes impõe a irrelevância do regime da dupla conforme no recurso subordinado, de acordo com o princípio de que, se uma das partes recorre, a outra pode sempre recorrer de forma subordinada.

5. O segundo caso implica a conjugação da regra da irrelevância da sucumbência da parte com o regime da dupla conforme. Em relação a esse caso vale igualmente o argumento relativo à igualdade das partes, mas a sua particularidade reside em que se pode perguntar se, apesar de não relevar no recurso subordinado o montante da sucumbência da parte, ainda assim este recurso pode ser considerado inadmissível por força do regime da dupla conforme. Mais em concreto, o que importa determinar é se o regime da dupla conforme se pode sobrepor ao regime da irrelevância da sucumbência da parte.

Se, no recurso subordinado, é irrelevante que a parte tenha ficado vencida numa quantia igual ou inferior a metade da alçada da Relação, ou seja, se o art. 633.º, n.º 5, CPC estabelece um favor impugnationis, não é sistematicamente coerente destruir esse favor impugnationis com o regime da dupla conforme. Por exemplo: o autor pede em 1.ª instância € 150.000; em 1.ª instância obtém € 50.000; ambas as partes recorreram para a Relação e esta condenou o réu apenas em € 10.000; o autor interpõe recurso de revista; o réu pode recorrer subordinadamente, apesar de o valor da sua sucumbência ser inferior a metade da alçada da Relação (€ 15.000) e de o critério da dupla conforme tornar inadmissível o recurso.

6. Desconhece-se se o legislador de 2007 anteviu todas as consequências da introdução do regime da dupla conforme, mas o art. 9.º, n.º 3, CC impõe que se presuma que o legislador não pretendeu nem violar o princípio da igualdade das partes, permitindo apenas que, havendo duas partes vencidas, somente uma delas possa interpor recurso, nem criar uma incongruência entre a irrelevância do montante da sucumbência no recurso subordinado e a relevância da dupla conforme nesse mesmo recurso.

7. Não é preciso acrescentar que a problemática da relevância da dupla conforme no recurso subordinado merece ser aprofundada e enriquecida com outras reflexões.

MTS