1. Um dos
desafios que é colocado pelo nCPC à jurisprudência e à doutrina é aquele que
respeita à necessidade de repensar ideias feitas em função de novos
enquadramentos legais. Neste Blog tem-se insistido na repercussão do dever de
colaboração do tribunal na decisão da causa e no controlo desta decisão em
recurso: aquele dever impede que o tribunal possa considerar a acção
improcedente com base na falta da alegação de um facto que o tribunal devia ter
convidado a parte a alegar. Refere-se agora um outro problema: o das
consequências do regime dos factos complementares para a configuração da causa
de pedir.
A chamada
teoria da substanciação é aquela segundo a qual a causa de pedir é constituída
pelos factos necessários à procedência da causa. Ora, a verdade é que, pelo
menos desde a introdução, no art. 264.º, n.º 3, aCPC, do poder de o tribunal
considerar factos complementares adquiridos durante a instrução da causa que a
teoria da substanciação deixou de ter correspondência com os dados do direito
positivo. Esta incompatibilidade entre a teoria da substanciação e o direito
positivo mantém-se (e até se acentua) no nCPC, atendendo ao disposto no art.
5.º, n.º 2, al. b). O facto
complementar não integra a
causa de pedir, pela simples razão de que a causa de pedir não pode ser
adquirida (e nem sequer completada) durante a instrução da causa.
Também nunca se
entendeu o (agora) disposto no art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, nCPC como
permitindo suprir a inexistência ou insuficiência da causa de pedir; logo, não
se pode admitir que os factos complementares que sejam alegados na sequência do
convite ao aperfeiçoamento sejam factos integrantes da causa de pedir. Esta causa petendi tem de constar da petição
inicial, sob pena de ineptidão deste articulado (art. 186.º, n.º 2, al. a),
nCPC); assim, se a petição não é inepta por conter uma causa de pedir, nenhum
facto que seja adquirido durante a tramitação da causa pode integrar essa mesma
a causa de pedir. O que já está completo na petição inicial não pode ser
completado por nenhum outro facto.
Fornecendo
um exemplo: o facto de a direcção efectiva de um veículo pertencer ao demandado
é essencial para a procedência da acção de responsabilidade civil decorrente de
um acidente rodoviário (cf. art. 503.º, n.º 1. CC), mas não integra a causa de
pedir desta acção, dado que não se pode concluir que a omissão desse facto
torne inepta a petição inicial da respectiva acção; consequentemente, a
aquisição desse facto durante a tramitação da acção (em consequência de convite
ao aperfeiçoamento ou da instrução da acção) não pode ser vista como a
aquisição de um elemento da causa de pedir. Não há que confundir o que é
necessário para a procedência da causa (e que tem a ver com o plano da fundamentação
da acção) com o que é necessário para a constituição da causa de pedir (e que
se move no plano da admissibilidade da causa). Dito de outra forma: nem tudo o
que é essencial para a procedência da causa é essencial para constituir a causa
de pedir.
É, aliás,
por isso que os art. 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d), nCPC só impõem a
alegação da causa de pedir, dado que essa alegação é o que é necessário para
que a petição inicial não seja inepta por falta de causa petendi. Dito de outro modo: aqueles preceitos movem-se no
plano da admissibilidade da causa, dado que só definem o que é necessário para
que a petição inicial não seja inepta. Se o que é suficiente para assegurar a
admissibilidade da acção é também bastante para assegurar a sua fundamentação, isso
só pode ser visto caso a caso. Por exemplo: numa acção destinada a obter o
cumprimento de uma prestação contratual, os elementos da causa de pedir serão,
em regra, suficientes para garantir a sua procedência; em contrapartida, numa
acção de responsabilidade extracontratual, poderão existir tactos
complementares (relativos, nomeadamente, às condições em que se verificou a
violação do direito do lesado) que são indispensáveis à sua procedência.
2. O que acima
se afirmou é completado por outros aspectos do regime dos factos
complementares. Além de poderem ser adquiridos durante a instrução da causa, os
factos complementares também podem ser adquiridos na sequência do convite ao
aperfeiçoamento do articulado da parte (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4); como
não se pode entender que este convite possa servir para a parte completar uma
causa de pedir insuficiente (dado que este vício determina a ineptidão da petição
inicial e esta ineptidão não é sanável), só se pode concluir que os factos
complementares não integram a causa de pedir. Por exemplo: (i) se o autor de
uma acção de indemnização por acidente de viação não invocar que sofreu danos,
a petição inicial é inepta, por falta de um elemento essencial da causa de
pedir dessa acção; (ii) se, nessa mesma acção, o autor não alegar que o
demandado tem a direcção efectiva do veículo, a petição não é inepta e o
tribunal pode convidar a parte a alegar esse facto; se esse facto for alegado
pela parte, isso não significa nenhuma correcção ou complemento da causa de
pedir alegada pelo autor.
A
conclusão de que os factos complementares não integram a causa de pedir é
confirmada pelo disposto no art. 590.º, n.º 6, nCPC: este preceito estabelece
que os factos alegados pela parte na sequência do convite formulado pelo
tribunal não podem implicar uma alteração da causa de pedir. Isto significa que
os factos que são susceptíveis de ser invocados pela parte não podem constituir
nenhuma nova causa de pedir, ou seja, só podem ser factos complementares da
causa de pedir invocada pelo autor.
3. Os factos complementares são isso mesmo: factos complementares de uma causa de pedir. Os factos complementares não integram a causa de pedir (ou seja, são irrelevantes para a admissibilidade da acção), embora possam ser essenciais para a procedência desta acção. Mutatis mutandis, o mesmo vale para os factos complementares de uma excepção peremptória: embora não integrem essa excepção, podem ser essenciais para a improcedência da acção com base naquela excepção.
3. Os factos complementares são isso mesmo: factos complementares de uma causa de pedir. Os factos complementares não integram a causa de pedir (ou seja, são irrelevantes para a admissibilidade da acção), embora possam ser essenciais para a procedência desta acção. Mutatis mutandis, o mesmo vale para os factos complementares de uma excepção peremptória: embora não integrem essa excepção, podem ser essenciais para a improcedência da acção com base naquela excepção.
MTS