"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/07/2014

Factos complementares e causa de pedir



1. Um dos desafios que é colocado pelo nCPC à jurisprudência e à doutrina é aquele que respeita à necessidade de repensar ideias feitas em função de novos enquadramentos legais. Neste Blog tem-se insistido na repercussão do dever de colaboração do tribunal na decisão da causa e no controlo desta decisão em recurso: aquele dever impede que o tribunal possa considerar a acção improcedente com base na falta da alegação de um facto que o tribunal devia ter convidado a parte a alegar. Refere-se agora um outro problema: o das consequências do regime dos factos complementares para a configuração da causa de pedir.

A chamada teoria da substanciação é aquela segundo a qual a causa de pedir é constituída pelos factos necessários à procedência da causa. Ora, a verdade é que, pelo menos desde a introdução, no art. 264.º, n.º 3, aCPC, do poder de o tribunal considerar factos complementares adquiridos durante a instrução da causa que a teoria da substanciação deixou de ter correspondência com os dados do direito positivo. Esta incompatibilidade entre a teoria da substanciação e o direito positivo mantém-se (e até se acentua) no nCPC, atendendo ao disposto no art. 5.º, n.º 2, al. b). O facto complementar não integra a causa de pedir, pela simples razão de que a causa de pedir não pode ser adquirida (e nem sequer completada) durante a instrução da causa. 

Também nunca se entendeu o (agora) disposto no art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4, nCPC como permitindo suprir a inexistência ou insuficiência da causa de pedir; logo, não se pode admitir que os factos complementares que sejam alegados na sequência do convite ao aperfeiçoamento sejam factos integrantes da causa de pedir. Esta causa petendi tem de constar da petição inicial, sob pena de ineptidão deste articulado (art. 186.º, n.º 2, al. a), nCPC); assim, se a petição não é inepta por conter uma causa de pedir, nenhum facto que seja adquirido durante a tramitação da causa pode integrar essa mesma a causa de pedir. O que já está completo na petição inicial não pode ser completado por nenhum outro facto.

Fornecendo um exemplo: o facto de a direcção efectiva de um veículo pertencer ao demandado é essencial para a procedência da acção de responsabilidade civil decorrente de um acidente rodoviário (cf. art. 503.º, n.º 1. CC), mas não integra a causa de pedir desta acção, dado que não se pode concluir que a omissão desse facto torne inepta a petição inicial da respectiva acção; consequentemente, a aquisição desse facto durante a tramitação da acção (em consequência de convite ao aperfeiçoamento ou da instrução da acção) não pode ser vista como a aquisição de um elemento da causa de pedir. Não há que confundir o que é necessário para a procedência da causa (e que tem a ver com o plano da fundamentação da acção) com o que é necessário para a constituição da causa de pedir (e que se move no plano da admissibilidade da causa). Dito de outra forma: nem tudo o que é essencial para a procedência da causa é essencial para constituir a causa de pedir.

É, aliás, por isso que os art. 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d), nCPC só impõem a alegação da causa de pedir, dado que essa alegação é o que é necessário para que a petição inicial não seja inepta por falta de causa petendi. Dito de outro modo: aqueles preceitos movem-se no plano da admissibilidade da causa, dado que só definem o que é necessário para que a petição inicial não seja inepta. Se o que é suficiente para assegurar a admissibilidade da acção é também bastante para assegurar a sua fundamentação, isso só pode ser visto caso a caso. Por exemplo: numa acção destinada a obter o cumprimento de uma prestação contratual, os elementos da causa de pedir serão, em regra, suficientes para garantir a sua procedência; em contrapartida, numa acção de responsabilidade extracontratual, poderão existir tactos complementares (relativos, nomeadamente, às condições em que se verificou a violação do direito do lesado) que são indispensáveis à sua procedência. 

2. O que acima se afirmou é completado por outros aspectos do regime dos factos complementares. Além de poderem ser adquiridos durante a instrução da causa, os factos complementares também podem ser adquiridos na sequência do convite ao aperfeiçoamento do articulado da parte (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4); como não se pode entender que este convite possa servir para a parte completar uma causa de pedir insuficiente (dado que este vício determina a ineptidão da petição inicial e esta ineptidão não é sanável), só se pode concluir que os factos complementares não integram a causa de pedir. Por exemplo: (i) se o autor de uma acção de indemnização por acidente de viação não invocar que sofreu danos, a petição inicial é inepta, por falta de um elemento essencial da causa de pedir dessa acção; (ii) se, nessa mesma acção, o autor não alegar que o demandado tem a direcção efectiva do veículo, a petição não é inepta e o tribunal pode convidar a parte a alegar esse facto; se esse facto for alegado pela parte, isso não significa nenhuma correcção ou complemento da causa de pedir alegada pelo autor.

A conclusão de que os factos complementares não integram a causa de pedir é confirmada pelo disposto no art. 590.º, n.º 6, nCPC: este preceito estabelece que os factos alegados pela parte na sequência do convite formulado pelo tribunal não podem implicar uma alteração da causa de pedir. Isto significa que os factos que são susceptíveis de ser invocados pela parte não podem constituir nenhuma nova causa de pedir, ou seja, só podem ser factos complementares da causa de pedir invocada pelo autor.

3. Os factos complementares são isso mesmo: factos complementares de uma causa de pedir. Os factos complementares não integram a causa de pedir (ou seja, são irrelevantes para a admissibilidade da acção), embora possam ser essenciais para a procedência desta acção. Mutatis mutandis, o mesmo vale para os factos complementares de uma excepção peremptória: embora não integrem essa excepção, podem ser essenciais para a improcedência da acção com base naquela excepção.

MTS