"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/04/2020

Jurisprudência 2019 (214)


Prova;
princípio inquisitório*

1. O sumário de RP 21/10/2019 (18884/18.4T8PRT-A.P1) é o seguinte: 

I - O princípio do inquisitório, a operar no domínio da instrução do processo, consagrado no art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente, pois, de solicitação das partes.

II - Destarte, não se excluem, para o despoletar, alertas, sugestões e, mesmo, requerimentos, a apresentar pela parte nelas interessadas, tendo, cada uma delas o direito de influenciar o Tribunal em busca de decisão, a si, favorável.

III - O art. 526º, do CPC, materializando aquele princípio, visa salvaguardar a possibilidade de se inquirir uma pessoa sobre quem se gerou a convicção de o seu depoimento se revelar importante para a boa decisão da causa, por dos autos (dos articulados da causa ou de qualquer meio de prova produzido ao longo do processo e não, meramente, em audiência de julgamento) decorrer a presunção de conhecer os factos em discussão, impondo-se, nesse caso, ao juiz que ordene a sua notificação para depor.

IV - Tal imposição é independente e autónoma da posição que as partes tenham tomado quanto à seleção de meios de prova e da possibilidade, que tenha havido, de indicação do concreto meio em causa, bastando que objetivamente se revele necessário à realização dos referidos fins.

V - A inobservância do inquisitório, a gerar nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC - porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa –, pode, validamente, ser suscitada no recurso da decisão interlocutória de não audição, apelação autónoma e imediata da decisão de rejeição de meio de prova (al. d), do nº2, do art. 644º, do CPC).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Da conjugação dos artigos 411º e 526º, este que constitui mais uma materialização do princípio do inquisitório, resulta que o juiz deve exercitar os seus poderes inquisitórios, que são poderes vinculados (nunca discricionários), embora “preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade”[6], quando concluir pela necessidade ou conveniência, ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, de realização de diligências de prova suplementares às promovidas pelas partes.

Assim, a “intervenção oficiosa do juiz deve assumir uma natureza complementar relativamente ao ónus da iniciativa da prova que impende sobre cada uma das partes, não podendo servir para superar, de forma automática, falhas processuais reveladas designadamente através da omissão de apresentação do requerimento probatório em devido tempo ou sequer da alteração do rol de testemunhas até ao limite definido pelo art. 598º, nº 2 [[António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina] pág. 577]. O art. 526º visa salvaguardar a possibilidade de se inquirir uma pessoa sobre quem, ao longo do processo (primordialmente, numa fase em que já não há possibilidade de as partes a arrolarem como testemunha) se gerou a convicção de o seu depoimento se revelar importante para a boa decisão da causa, por ter conhecimento de factos relevantes, em discussão.

Ora, é precisamente o que se verifica in casu. Apesar de a questão “se existiu, ou não, a funcionária” (D…) se poder ter colocado muito antes de designada a audiência de julgamento e de a Autora ter tido a possibilidade de a indicar como testemunha e o não ter feito, tal não constitui impedimento de, apesar de a Autora a já não poder indicar, vir alertar, sugerir ou mesmo requerer ao Tribunal que, lançando mãos dos seus poderes inquisitórios, proceda à sua inquirição. Questão diversa da referida pelo Tribunal a quo - a de a funcionária e as suas funções ter sido debatida nos respetivos articulados e que terá sido opção da Autora não a arrolar como testemunha - é a de o juiz, ao abrigo do disposto no nº1, do artigo 526º, chamar pessoas a depor. Não é necessário que a “revelação dos conhecimentos possuídos acerca da questão debatida” surja “no âmbito da audiência final”, sendo isso que decorre da expressão constante do referido preceito “Quando, no decurso da ação”. Basta que o juiz (por si ou alertado para isso, mesmo que por requerimento) constate, objetivamente, ser a situação presumida a de que “determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa” para que se lhe imponha o desencadear dos seus poderes-deveres de inquisitoriedade e, com vista à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, oiça quem já não podia validamente ser indicado como testemunha pelas partes(v. preceito “deve o juiz ordenar que seja notificada para depor”).

Na verdade, os referidos poderes-deveres do juiz decorrentes da inquisitoriedade – art. 411º - “não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, como mostra o segmento “mesmo oficiosamente”. Ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que necessárias ao apuramento da verdade ou à justa composição do litígio” [[José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição, Almedina], pág 208].

E a “inquirição oficiosa não tem lugar apenas quando o conhecimento da importância da testemunha chegue ao juiz através de outros depoimentos (de parte ou de testemunha: ver o ac. do TRE de 1/4/85, CJ, 1985, II, p.289) que a tenham referido, afirmando que ela observou também os factos, também os ouviu narrar (…). Qualquer meio probatório (um documento; uma alegação confirmada pela parte contrária ou por ela não impugnada; uma confissão espontânea) pode servir de veículo de transmissão desse conhecimento, seja qual for o momento processual em que ele seja apresentado ou produzido. Embora continue a ser sobretudo em audiência que a iniciativa oficiosa é exercida, nada impede que, verificados os respetivos requisitos, o seja antes, proporcionando a notificação da pessoa a inquirir para o primeiro dia designado para a audiência”.

Por outro lado, antes de ser ouvida a pessoa em causa, é prematuro dizer que o juiz é confrontado com o seu conhecimento dos factos. Desde que haja elementos do processo que levem a crer que esse conhecimento existe, tal é suficiente para que, considerada a relevância dos factos (ainda não inequivocamente esclarecidos ou suscetíveis de ser postos em causa pelo depoimento da testemunha) para a decisão da causa, o depoimento seja ordenado [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág.208].

A jurisprudência vem, também, seguindo esta orientação [Cfr. Ac. da RP de 16/12/2009, Proc.577/08.2TBVNG-A.P1.dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição revista e ampliada, Março de 2017, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, pág. 691, onde se decidiu que a inquirição oficiosa de testemunhas deixou de ser uma faculdade e passou a ser um poder-dever a que ele fica vinculado, sempre que se verifique a condição de que depende o seu exercício – haver razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa].

Ora, a inquirição oficiosa da pessoa referida pela Autora impõe-se, in casu, por as funções acometidas pela Ré à mesma, a experiência profissional no desempenho daquelas funções e a formação profissional que a pessoa em causa possui poderem relevar para a decisão da causa e decorrer dos autos, designadamente da alegação fáctica das partes nos articulados, haver razões para presumir que a mesma, que não foi ouvida, tem conhecimento de factos, em discussão, importantes para a boa decisão da causa.

A inobservância do inquisitório gera nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC, porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa. (ac. do TRC de 14.10.15, Carvalho Martins, www.dgsi.pt, proc. 507/10) [Ibidem, pág. 208]. E apesar da nulidade processual, decorrente do não uso do poder inquisitório, conferido pelo art. 411º e 526º, relativamente à produção oficiosa de determinada prova testemunhal, dever ser suscitada antes de a audiência de julgamento terminar, nos termos da regra do art. 199º, sendo extemporânea a arguição da mesma apenas em sede de recurso da decisão da causa [Ac. da RE de 29/9/2016, Processo 299/10.dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição revista e ampliada, Março de 2017, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, pág. 603], a nulidade processual por inobservância, pelo juiz, dos poderes instrutórios, pode ser suscitada no recurso da decisão interlocutória de não audição, apelação autónoma e imediata da decisão de rejeição de meio de prova (al. d), do nº2, do art. 644º, do CPC).

Procedendo as conclusões da apelação, por ocorrer violação princípio do contraditório, consagrado nos artigos 411º e 526º, que permite que o Tribunal, por iniciativa sua ou das partes, oiça a pessoa que, dos autos, resulta decorrer a convicção de ter conhecimento de factos importantes para a decisão da causa e à descoberta da verdade material, deve a decisão recorrida ser revogada e determinada a sua inquirição."

*3. [Comentário] Sobre o problema da omissão dos poderes processuais do juiz, cf. Jurisprudência 2019 (196)

[MTS]