"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/04/2020

Jurisprudência 2019 (213)

 
Alteração da matéria de facto;
dupla conforme

 
1. O sumário de STJ 7/11/2019 (2449/15.5T8PDL.L1.S1) é o seguinte:
 
I. Para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode ser atribuído significado a alterações irrelevantes e sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).

II. A alteração de um único ponto da decisão sobre a matéria de facto que visa precisar ou explicitar o teor de um facto provado e não tem reflexo na decisão não é apta a descaracterizar a dupla conformidade, verificando-se, da mesma forma, este bloqueio recursório.

2. Na fundamentação do acórdão escreve-se o seguinte:

"Como acontece sempre, antes de se conhecer do objecto do recurso, deve o Relator apreciar a sua admissibilidade.

No caso em apreço é particularmente visível a necessidade desta apreciação. Não é por acaso que ambas as partes suscitaram (e trataram) a questão da admissibilidade do recurso: os recorrentes alegam que, apesar das aparências, a dupla conforme não existe e por isso o recurso é admissível; a recorrida alega exactamente o contrário,

Mais precisamente, entendem os recorrentes que o Tribunal da Relação julgou parcialmente procedente a apelação e é por isso que não se verifica o bloqueio recursivo da dupla conforme.

Mas, com o devido respeito, não lhes assiste razão.

Foi a seguinte a decisão dos Exmos. Juízes Desembargadores do Tribunal a quo: “[e]m face do exposto, acordam em alterar a matéria de facto nos termos expostos e em julgar, no mais, improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida”.

A alteração da matéria de facto esgotou-se na alteração (rectius: precisão) de um – um único – dos pontos da factualidade provada, mais precisamente, o ponto 9.

Inicialmente constava deste ponto 9 da matéria de facto:

- “O veículo ...-...-DL circulava a reduzida velocidade mas encontrava-se carregado de bilhas de leite”

Depois da alteração passou a constar deste mesmo ponto 9:

- “O veículo ...-...-DL circulava, no início dos rastos de travagem, a uma velocidade não inferior a 61 Km/h e não superior a 75 Km/h e no ponto de impacto a uma velocidade não inferior a 42 Km/h e não superior a 52 Km/h, e encontrava-se carregado de bilhas de leite”.

Para os presentes efeitos, interessa averiguar a natureza e, principalmente, o contributo desta alteração para decisão do julgador, ou seja, a susceptibilidade de ela funcionar como elemento determinante ou fundamento da decisão.

Como se assinalou em anterior Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça [Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.04.2019, Proc. 5293/15.6T8VNG.P1 [...]], para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode, compreensivelmente, atribuir-se significado a alterações meramente secundárias ou marginais, sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).

Ora, aquilo que pode verificar-se, no caso em apreço, é, em primeiro lugar, que a questão procedente se prende com a mera alteração de teor de um único ponto da matéria de facto.

Aquilo que pode verificar-se, em segundo lugar, é que a alteração em causa, ou seja, a precisão de que a velocidade reduzida do veículo se fixava em certa velocidade estimada máxima e mínima estimada, foi absolutamente irrelevante para a decisão do Tribunal recorrido.

Diz, a propósito, Abrantes Geraldes, que “[a] expressão 'fundamentação essencialmente diferente' pode porventura, confrontar-nos com o relevo a atribuir a uma eventual modificação da decisão da matéria de facto empreendida pela Relação, ao abrigo do art. 662.º. Todavia, tal evento não apresenta verdadeira autonomia. Uma modificação da matéria de facto provada ou não provada apenas será relevante para aquele efeito na medida em que também implique uma modificação essencial da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da diversidade ou da conformidade das decisões centrada na respetiva motivação” [Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 364-365 [...]].
 
Quer dizer: apesar da alteração factual, o Tribunal a quo confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (a alteração do ponto 9 da matéria de facto não prejudica a identidade da fundamentação em que se apoiou a decisão de ambas as instâncias).

Configura-se, assim, o bloqueio recursório do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, tornando-se, consequentemente, inadmissível o presente recurso de revista."
 
[MTS]