Embargos de terceiro;
impugnação pauliana; requisitos; reconvenção
1. O sumário de STJ 7/11/2019 (363/14.0TCFUN-C.L1.S1) é o seguinte:
I - São incompatíveis com a penhora, o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, viriam a extinguir-se com a venda executiva (art. 824-2 CC), bem como, quando a penhora incida sobre um direito, a titularidade deste de que um terceiro se arrogue.
II - Os embargos de terceiro configuram uma verdadeira acção declarativa com o escopo de verificar a existência de um direito ou duma posse, a tal não obstando a circunstância de o código os inserir no seio dos incidentes da instância.
III - É lícito ao embargado cruzar, em sede reconvencional, nos embargos de terceiro, acção de impugnação pauliana contra o embargante, pedindo a declaração de ineficácia de determinado negócio jurídico, de modo a assegurar a satisfação do seu crédito contra este.
IV - Na impugnação pauliana, o requisito da má fé só releva se for oneroso o acto que se pretende ver declarado ineficaz; sendo gratuito esse ato, dispensa-se tal requisito, procedendo a pauliana ainda que as partes nele interveniente se encontrem de boa fé.
V - É questionável a natureza, onerosa ou gratuita, da partilha de herança ou da comunhão conjugal, dúvida essa resultante do facto de não existir neste acto plurilateral uma verdadeira troca de prestações, mas sim uma modificação de direitos, nomeadamente quanto ao seu objeto e conteúdo.
VI - Deve ser considerado como acto gratuito, o acordo de partilha, homologado por sentença, em que à embargante foram atribuídos bens no valor global de € 618.358,24, ao embargado, seu marido, bens e direitos no valor de € 79.653,38 e, não obstante a tamanha disparidade de valores, embargante e embargado declararam que o passivo existente em € 111.346,00, «se mantém comum».
I - São incompatíveis com a penhora, o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, viriam a extinguir-se com a venda executiva (art. 824-2 CC), bem como, quando a penhora incida sobre um direito, a titularidade deste de que um terceiro se arrogue.
II - Os embargos de terceiro configuram uma verdadeira acção declarativa com o escopo de verificar a existência de um direito ou duma posse, a tal não obstando a circunstância de o código os inserir no seio dos incidentes da instância.
III - É lícito ao embargado cruzar, em sede reconvencional, nos embargos de terceiro, acção de impugnação pauliana contra o embargante, pedindo a declaração de ineficácia de determinado negócio jurídico, de modo a assegurar a satisfação do seu crédito contra este.
IV - Na impugnação pauliana, o requisito da má fé só releva se for oneroso o acto que se pretende ver declarado ineficaz; sendo gratuito esse ato, dispensa-se tal requisito, procedendo a pauliana ainda que as partes nele interveniente se encontrem de boa fé.
V - É questionável a natureza, onerosa ou gratuita, da partilha de herança ou da comunhão conjugal, dúvida essa resultante do facto de não existir neste acto plurilateral uma verdadeira troca de prestações, mas sim uma modificação de direitos, nomeadamente quanto ao seu objeto e conteúdo.
VI - Deve ser considerado como acto gratuito, o acordo de partilha, homologado por sentença, em que à embargante foram atribuídos bens no valor global de € 618.358,24, ao embargado, seu marido, bens e direitos no valor de € 79.653,38 e, não obstante a tamanha disparidade de valores, embargante e embargado declararam que o passivo existente em € 111.346,00, «se mantém comum».
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), passam pela análise e resolução da única questão jurídica por ela colocada a este tribunal e que consiste em determinar se existem fundamentos para a procedência da impugnação pauliana em relação à partilha dos bens comuns do casal, realizada no âmbito do processo para separação de meações que correu termos por apenso a um outro processo judicial, no que respeita aos dois imóveis que foram objecto de penhora na execução de que os presentes embargos de terceiro constituem apenso, com especial enfoque para o requisito da má fé. [...]
É incontroverso que, no caso, com a sentença homologatória da partilha levada a cabo no âmbito do processo de separação de meações, proferida em 30-06-2015 e já transitada em julgado, a recorrente, ora embargante, adquiriu, por força da adjudicação, o direito de propriedade sobre os imóveis melhor identificados no ponto 3. da factualidade provada, bens esses que vieram a ser penhorados nos autos principais de execução (cf. pontos 9., 10., 12., 13.) – arts. 408.º, 1316.º, 1317.º, al. a), e 1689.º, do CC. Em consequência, sendo esse seu direito incompatível com a penhora efectuada na execução de que os presentes embargos são apenso, dúvidas não restam de que a embargante deve ser considerada “terceiro”, tanto mais que não é parte nessa execução – arts. 342.º, e 343.º do CPC.
Sucede, porém, que tendo o Banco embargado deduzido pedido reconvencional no sentido de ver declarada, em relação a si, a ineficácia da supra referida partilha no que se refere aos ditos bens, na medida necessária ao pagamento do seu crédito, mister se torna apreciar se os requisitos de que depende a impugnação pauliana se mostram preenchidos, posto que, em caso de procedência desta, tendo o credor direito à restituição dos bens na medida do seu interesse e podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, a penhora terá de manter-se – art. 616.º, n.º 1, do CC.
É, assim, na verificação dos pressupostos da impugnação pauliana e, em concreto, na qualificação do acto impugnado – partilha – como oneroso ou gratuito, que reside o nó górdio da revista, posto que foi na resposta dada a essa questão que as instâncias divergiram, dela dependendo, portanto, a sorte do litígio.
Com efeito, debruçando-se sobre tais pressupostos, o tribunal de 1.ª instância entendeu que, sendo a partilha de qualificar como acto oneroso, se exigia igualmente, para a procedência da impugnação pauliana, a má fé da embargante e do embargado e que, não tendo a mesma ficado provada, se impunha julgar improcedente a reconvenção e procedentes os embargos de terceiro, com o consequente levantamento da penhora incidente sobre os bens adquiridos pela embargante no âmbito do processo de separação de meações. Ao invés, o Tribunal da Relação considerou que tal requisito será, no caso, de dispensar por se estar, afinal, perante um acto gratuito, e, em consequência, julgou improcedentes os embargos e procedente a reconvenção, com a consequente declaração de ineficácia, em relação ao Banco embargado, da aludida partilha, no que àqueles dois bens se refere, até ao limite de metade do valor de cada um deles.
É, pois, contra esta decisão e contra este específico entendimento que se insurge a recorrente, sustentando que a razão está do lado do tribunal de 1.ª instância, cuja sentença, assim sendo, pretende repristinar.
Adianta-se, todavia, desde já, que não lhe assiste razão.
Como já se deixou explanado [No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13-09-2018, Revista n.º 3622/15.1T8STS.P1.S2 [...], a impugnação pauliana (azione revocatória, acción revocatória, action paulienne, Gläubigeranfechtung), referida nos arts. 610.º e ss. do CC, permite aos credores, mesmo de direitos ainda não exigíveis, reagir contra actuações jurídicas do devedor que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito [...]. Constitui um instrumento jurídico conferido aos credores, com vista à conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações, com ele se tutelando o interesse daqueles contra o desvio do património pelo devedor que implique obstáculo absoluto à satisfação dos seus créditos ou o seu agravamento [...].
A sua procedência depende, segundo o disposto nos arts. 610.º a 612.º do CC, da verificação cumulativa dos seguintes requisitos [...]:
(i) Realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito (eventus damni) e não seja de natureza pessoal;
(ii) Anterioridade do crédito em relação ao acto ou, sendo ele posterior, prática do acto dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
(iii) Natureza gratuita do acto ou, sendo ele oneroso, que alienante e adquirente tenham agido de má fé; e
(iv) Impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade.
Na impugnação pauliana estão, pois, em causa actos que se repercutem em termos negativos no património do devedor, quer em virtude do aumento do seu passivo, quer da diminuição do seu activo. No fundo, o que se exige é que o acto envolva diminuição da garantia patrimonial ou, dito de outro modo, a diminuição dos valores patrimoniais que, no âmbito do art. 601.º do CC, respondem pelo cumprimento da obrigação.
Além disso, o crédito tem que ser anterior ao acto impugnado ou, sendo posterior, o acto tem de ter sido dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor. E compreende-se que assim seja, já que é no momento da constituição do crédito que o credor toma normalmente em consideração a situação patrimonial do devedor, sendo com essa situação que deve poder contar para efeitos da garantia geral.
Contudo, sendo o acto posterior, já não poderá dizer-se que se alterou a garantia patrimonial com que o credor contava, quando o crédito se constituiu. Daí a ressalva da hipótese do acto anterior ao crédito, mas dolosamente praticado com a finalidade de “impedir a satisfação do direito do futuro credor” – art. 610.º, al. a), segunda parte, do CC.
Não há, no entanto, que conjecturar tal eventualidade, dado que está assente nos autos quer a existência do crédito do Banco embargado, quer a sua anterioridade relativamente ao acto impugnado (partilha), anterioridade essa que, de resto, não suscita qualquer dúvida.
Na verdade, mesmo considerando a data de vencimento (24-04-2012) da livrança dada à execução, que foi avalizada pelo executado BB, ou até mesmo a data em este foi interpelado (09-06-2013) para proceder ao seu pagamento (e não a data em que o mesmo prestou o seu aval[10]), sempre o crédito seria – como está demonstrado que é – anterior à partilha impugnada, posto que foi realizada em 30-06-2015.(cf. pontos 1., 13., 22., 24. e 25.da factualidade provada) – arts. 30.º a 32.º, e 77.º da LULL.
É igualmente indubitável que a partilha – efectuada por acordo entre a embargante e o embargado BB e homologada por sentença –, não tendo natureza pessoal, ao ter “deslocado” os bens do património comum do casal para o património exclusivo de cada um deles, diminuiu a garantia patrimonial do crédito do Banco embargado, tanto mais que ao executado couberam bens de valor muito inferior àquele que corresponderia a sua meação nos bens comuns (pontos 9. a 13. da factualidade provada).
Deste modo, forçoso é concluir que se mostram preenchidos os requisitos enunciados no art. 610.º, al. a), do CC, quer no que se refere à existência e à anterioridade do crédito, quer ao facto de ter sido realizado pelo devedor um acto (partilha) que, não tendo natureza pessoal, diminuiu a garantia patrimonial daquele crédito.
Mas a par dos analisados requisitos gerais, exige ainda a lei que, sendo o acto oneroso, o devedor e o terceiro tenham agido de má fé, sendo esta entendida como a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor; pelo contrário, sendo o acto gratuito, a impugnação procederá, ainda que um e outro tenham agido de boa fé –art. 612.º do CC.
Neste particular e como se colhe dos ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 628.], a diversidade de regimes tem explicação fácil: sendo o acto gratuito, há sempre prejuízo para o credor, e prejuízo injustificável, porque quem procura interesses (certat de lucro capiendo, como diziam as fontes romanas) deve ceder a quem procura evitar prejuízos (certat de damno vitando): nemo liberalis nisi liberatus: sendo o acto oneroso, em tese geral não há prejuízo para o credor, porque à prestação cedida há-de corresponder, por conceito, uma prestação de valor equivalente. Deve, portanto, exigir-se mais alguma coisa. E essa mais alguma coisa é a má fé.
Aludindo a esta diferenciação tradicional de regime, também Menezes Cordeiro [[António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações, Garantias, Almedina, Coimbra, 2015], p. 377 e 378] a explica através de duas considerações elementares:
- o devedor que aliena gratuitamente os seus bens, ao ponto de impossibilitar a satisfação integral do direito do credor ou de agravar essa impossibilidade, fá-lo, com uma probabilidade razoável, precisamente ou para prejudicar o credor (dolo directo) ou para pôr os bens a salvo da execução (dolo necessário): a má fé pauliana está largamente preenchida, pelo seu lado;
- o terceiro que adquire gratuitamente alguns bens não merece, no confronto com os interesses dos credores, melhor tutela do que estes: não realizou esforços económicos capazes de alicerçar um investimento de confiança.
A diferença de regime a que se vem aludindo impõe, assim, a prévia qualificação do acto impugnado como oneroso ou gratuito - distinção esta que, assumindo, nesta sede, uma importância fundamental, suscita, na sua aplicação prática, as maiores divergências e dúvidas em relação a algumas categorias de negócios.
Diz-se [...] oneroso o contrato em que a atribuição patrimonial efectuada por cada um dos contraentes tem por correspectivo, compensação ou equivalente a atribuição da mesma natureza proveniente do outro. Para alcançar ou manter a atribuição patrimonial da contraparte, cada contraente tem (o ónus hoc sensu) de realizar uma contraprestação. Por seu turno, é gratuito o contrato em que, segundo a comum intenção dos contraentes, um deles proporciona uma vantagem patrimonial ao outro, sem qualquer correspectivo ou contraprestação. [...]
Neste campo, interessa a qualificação como onerosos ou gratuitos dos actos em que o devedor diminui o seu património, importando, pois, verificar se o terceiro beneficiado por essa diminuição prestou ou não alguma contrapartida.
Quando essa contrapartida é de tal modo insignificante perante o valor da prestação que visa retribuir, situando o negócio numa zona de “lusco-fusco” entre a gratuitidade e a onerosidade, a irrelevância do sacrifício do terceiro adquirente deve-nos impelir para a aplicação da regra do art. 612.º, n.º 1, do C.C., prevista para os negócios gratuitos – a boa fé das partes não obsta ao funcionamento da impugnação pauliana. Os interesses do credor que viu ferido o seu direito de garantia devem-se sobrepor às expectativas do terceiro que enriqueceu à custa de uma contrapartida desprezível (sublinhado e negrito nossos).
Porém, tal como refere João Cura Mariano [[João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, 2008], p. 221], se os negócios como os de compra e venda, locação, mútuo, doação ou testamento não suscitam especiais dificuldades, o mesmo não se pode dizer de outros actos que, pelo seu conteúdo especial ou pela sua conexão com outros, vêm desde há muito a suscitar acesas polémicas. Um desses actos é precisamente a partilha da comunhão conjugal, dado que se mostra necessário questionar a sua natureza para aferir da necessidade de demonstrar, ou não, a má fé dos seus outorgantes, quando desse acto tenha resultado debilitado o património garante, designadamente quando o devedor ficou com bens de valor inferior ao da sua quota ou com bens dificilmente apreensíveis.
A dúvida deriva, nestes casos, da circunstância de não existir no dito acto plurilateral – à semelhança do que sucede na divisão de coisa comum – uma verdadeira troca de prestações, mas antes uma modificação de direitos, nomeadamente quanto ao seu objecto e conteúdo. Resultando dos actos em questão, para todos os outorgantes, a transformação de um direito indiviso sobre uma totalidade num direito exclusivo sobre uma parte daquela, ou o seu equivalente, verifica-se que à “saída” de um direito corresponde a “entrada” de outro, na esfera jurídica de todos os participantes e daí que, à luz desta concepção [...], o acto deva, em regra, ser considerado oneroso [...].
Todavia, nem sempre será assim.
É que se é verdade que, havendo tornas (ou outras contrapartidas, como, por exemplo, assunção de dívidas), o carácter oneroso da partilha dos bens comuns do casal (ou da herança deixada por morte) será inequívoco [,,,], já o mesmo não sucede nos casos em que não houve tal contrapartida e em que há uma desproporção de relevo entre os bens que, por força daquela, couberam a cada um dos cônjuges (ou a cada um dos herdeiros).
Perfilhando este entendimento, o Supremo Tribunal de Justiça afirmou, no acórdão de 07-04-2005 [ Revista n.º 4649/04 – 6.ª Secção [...]], que a partilha se poderá reconduzir tanto a uma alienação (na parte do quinhão preenchida com tornas), como a uma doação (na parte concernente à diferença entre os valores reais das verbas recebidas e do respectivo quinhão, quando tal diferença não é compensada com tornas).
Aliás, igual posição fora já sufragada no aresto deste Supremo Tribunal de 05-06-2003 [Revista n.º 1579/03 – 7.ª Secção [...]], citado no acórdão posto em crise, aí se sublinhando que, havendo tornas, não há como não reconhecer à partilha o carácter oneroso que deriva precisamente de aquelas corresponderem ao preço do direito do beneficiário delas sobre o conjunto dos bens do património autónomo partilhado que, de certa forma, alienou. No entanto, quando a partilha serve uma intenção liberal, então, é também um negócio gratuito e, nessa medida, está sujeito à reacção dos credores do interessado que efectuou a gratuita atribuição patrimonial.
Ora, retomando o caso ajuizado e analisando, para tanto, o acervo factual provado à luz dos considerandos doutrinários e jurisprudenciais que se vêm expendendo, resulta ser evidente que a partilha impugnada não pode deixar de ser qualificada, in casu, como acto gratuito.
Na verdade, conforme se observou no acórdão recorrido, está assente que, no âmbito do acordo de partilha dos bens comuns do casal, realizada pela embargante e pelo embargado João da Silva, foram atribuídos à primeira bens no valor global de € 618.358,24, ao passo que ao segundo couberam bens e direitos que apenas ascendem a € 79.653,80, sem que o mesmo tenha recebido qualquer contrapartida pela parte da sua meação a que, em virtude desse acordo, necessariamente renunciou.
Acresce que, a par da dita “distribuição”, manifestamente desigual, foi ainda acordado entre o casal que: (i) o passivo constante da relação de bens, consistente numa dívida ao Banco GG que, em 16-05-2013, se cifrava em € 111.346,00, se mantinha em comum para ambas as partes; e que (ii) nada mais era devido entre a embargante e o embargado BB, no que respeita à comunhão do casamento, o que não pode deixar de significar – conforme concluiu, acertadamente, a Relação, que o embargado declarou prescindir do direito a tornas (cf. pontos 9. a 13. do quadro fáctico provado).
Neste contexto, sendo gritante a desproporção verificada no aludido acordo, sem que tenha existido qualquer contrapartida, é evidente o espírito de mera liberalidade que, necessariamente, lhe esteve subjacente, pelo menos em parte.
Com efeito, tendo presente o conceito de acto gratuito que atrás se dilucidou, dúvidas não restam que a partilha impugnada nele se enquadra inteiramente, pois que à vantagem patrimonial, proporcionada pelo embargado BB à embargante (que viu, em muito, “aumentada” a sua meação no património comum do casal), não correspondeu igual compensação ou correspectivo. [...]
Deste modo, é de concluir, sem necessidade de mais longas considerações, que, no caso, constituindo a partilha um acto gratuito, não há que averiguar do requisito da má fé, não podendo vingar, quanto a este aspecto, a tese pela qual a recorrente se bate com veemência – art. 612.º, n.º 1, 2.ª parte, do CC. [...]
Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões da recorrente, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta, nem viola as disposições legais que indica."
[MTS]
É incontroverso que, no caso, com a sentença homologatória da partilha levada a cabo no âmbito do processo de separação de meações, proferida em 30-06-2015 e já transitada em julgado, a recorrente, ora embargante, adquiriu, por força da adjudicação, o direito de propriedade sobre os imóveis melhor identificados no ponto 3. da factualidade provada, bens esses que vieram a ser penhorados nos autos principais de execução (cf. pontos 9., 10., 12., 13.) – arts. 408.º, 1316.º, 1317.º, al. a), e 1689.º, do CC. Em consequência, sendo esse seu direito incompatível com a penhora efectuada na execução de que os presentes embargos são apenso, dúvidas não restam de que a embargante deve ser considerada “terceiro”, tanto mais que não é parte nessa execução – arts. 342.º, e 343.º do CPC.
Sucede, porém, que tendo o Banco embargado deduzido pedido reconvencional no sentido de ver declarada, em relação a si, a ineficácia da supra referida partilha no que se refere aos ditos bens, na medida necessária ao pagamento do seu crédito, mister se torna apreciar se os requisitos de que depende a impugnação pauliana se mostram preenchidos, posto que, em caso de procedência desta, tendo o credor direito à restituição dos bens na medida do seu interesse e podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, a penhora terá de manter-se – art. 616.º, n.º 1, do CC.
É, assim, na verificação dos pressupostos da impugnação pauliana e, em concreto, na qualificação do acto impugnado – partilha – como oneroso ou gratuito, que reside o nó górdio da revista, posto que foi na resposta dada a essa questão que as instâncias divergiram, dela dependendo, portanto, a sorte do litígio.
Com efeito, debruçando-se sobre tais pressupostos, o tribunal de 1.ª instância entendeu que, sendo a partilha de qualificar como acto oneroso, se exigia igualmente, para a procedência da impugnação pauliana, a má fé da embargante e do embargado e que, não tendo a mesma ficado provada, se impunha julgar improcedente a reconvenção e procedentes os embargos de terceiro, com o consequente levantamento da penhora incidente sobre os bens adquiridos pela embargante no âmbito do processo de separação de meações. Ao invés, o Tribunal da Relação considerou que tal requisito será, no caso, de dispensar por se estar, afinal, perante um acto gratuito, e, em consequência, julgou improcedentes os embargos e procedente a reconvenção, com a consequente declaração de ineficácia, em relação ao Banco embargado, da aludida partilha, no que àqueles dois bens se refere, até ao limite de metade do valor de cada um deles.
É, pois, contra esta decisão e contra este específico entendimento que se insurge a recorrente, sustentando que a razão está do lado do tribunal de 1.ª instância, cuja sentença, assim sendo, pretende repristinar.
Adianta-se, todavia, desde já, que não lhe assiste razão.
Como já se deixou explanado [No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13-09-2018, Revista n.º 3622/15.1T8STS.P1.S2 [...], a impugnação pauliana (azione revocatória, acción revocatória, action paulienne, Gläubigeranfechtung), referida nos arts. 610.º e ss. do CC, permite aos credores, mesmo de direitos ainda não exigíveis, reagir contra actuações jurídicas do devedor que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito [...]. Constitui um instrumento jurídico conferido aos credores, com vista à conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações, com ele se tutelando o interesse daqueles contra o desvio do património pelo devedor que implique obstáculo absoluto à satisfação dos seus créditos ou o seu agravamento [...].
A sua procedência depende, segundo o disposto nos arts. 610.º a 612.º do CC, da verificação cumulativa dos seguintes requisitos [...]:
(i) Realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito (eventus damni) e não seja de natureza pessoal;
(ii) Anterioridade do crédito em relação ao acto ou, sendo ele posterior, prática do acto dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
(iii) Natureza gratuita do acto ou, sendo ele oneroso, que alienante e adquirente tenham agido de má fé; e
(iv) Impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade.
Na impugnação pauliana estão, pois, em causa actos que se repercutem em termos negativos no património do devedor, quer em virtude do aumento do seu passivo, quer da diminuição do seu activo. No fundo, o que se exige é que o acto envolva diminuição da garantia patrimonial ou, dito de outro modo, a diminuição dos valores patrimoniais que, no âmbito do art. 601.º do CC, respondem pelo cumprimento da obrigação.
Além disso, o crédito tem que ser anterior ao acto impugnado ou, sendo posterior, o acto tem de ter sido dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor. E compreende-se que assim seja, já que é no momento da constituição do crédito que o credor toma normalmente em consideração a situação patrimonial do devedor, sendo com essa situação que deve poder contar para efeitos da garantia geral.
Contudo, sendo o acto posterior, já não poderá dizer-se que se alterou a garantia patrimonial com que o credor contava, quando o crédito se constituiu. Daí a ressalva da hipótese do acto anterior ao crédito, mas dolosamente praticado com a finalidade de “impedir a satisfação do direito do futuro credor” – art. 610.º, al. a), segunda parte, do CC.
Não há, no entanto, que conjecturar tal eventualidade, dado que está assente nos autos quer a existência do crédito do Banco embargado, quer a sua anterioridade relativamente ao acto impugnado (partilha), anterioridade essa que, de resto, não suscita qualquer dúvida.
Na verdade, mesmo considerando a data de vencimento (24-04-2012) da livrança dada à execução, que foi avalizada pelo executado BB, ou até mesmo a data em este foi interpelado (09-06-2013) para proceder ao seu pagamento (e não a data em que o mesmo prestou o seu aval[10]), sempre o crédito seria – como está demonstrado que é – anterior à partilha impugnada, posto que foi realizada em 30-06-2015.(cf. pontos 1., 13., 22., 24. e 25.da factualidade provada) – arts. 30.º a 32.º, e 77.º da LULL.
É igualmente indubitável que a partilha – efectuada por acordo entre a embargante e o embargado BB e homologada por sentença –, não tendo natureza pessoal, ao ter “deslocado” os bens do património comum do casal para o património exclusivo de cada um deles, diminuiu a garantia patrimonial do crédito do Banco embargado, tanto mais que ao executado couberam bens de valor muito inferior àquele que corresponderia a sua meação nos bens comuns (pontos 9. a 13. da factualidade provada).
Deste modo, forçoso é concluir que se mostram preenchidos os requisitos enunciados no art. 610.º, al. a), do CC, quer no que se refere à existência e à anterioridade do crédito, quer ao facto de ter sido realizado pelo devedor um acto (partilha) que, não tendo natureza pessoal, diminuiu a garantia patrimonial daquele crédito.
Mas a par dos analisados requisitos gerais, exige ainda a lei que, sendo o acto oneroso, o devedor e o terceiro tenham agido de má fé, sendo esta entendida como a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor; pelo contrário, sendo o acto gratuito, a impugnação procederá, ainda que um e outro tenham agido de boa fé –art. 612.º do CC.
Neste particular e como se colhe dos ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 628.], a diversidade de regimes tem explicação fácil: sendo o acto gratuito, há sempre prejuízo para o credor, e prejuízo injustificável, porque quem procura interesses (certat de lucro capiendo, como diziam as fontes romanas) deve ceder a quem procura evitar prejuízos (certat de damno vitando): nemo liberalis nisi liberatus: sendo o acto oneroso, em tese geral não há prejuízo para o credor, porque à prestação cedida há-de corresponder, por conceito, uma prestação de valor equivalente. Deve, portanto, exigir-se mais alguma coisa. E essa mais alguma coisa é a má fé.
Aludindo a esta diferenciação tradicional de regime, também Menezes Cordeiro [[António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações, Garantias, Almedina, Coimbra, 2015], p. 377 e 378] a explica através de duas considerações elementares:
- o devedor que aliena gratuitamente os seus bens, ao ponto de impossibilitar a satisfação integral do direito do credor ou de agravar essa impossibilidade, fá-lo, com uma probabilidade razoável, precisamente ou para prejudicar o credor (dolo directo) ou para pôr os bens a salvo da execução (dolo necessário): a má fé pauliana está largamente preenchida, pelo seu lado;
- o terceiro que adquire gratuitamente alguns bens não merece, no confronto com os interesses dos credores, melhor tutela do que estes: não realizou esforços económicos capazes de alicerçar um investimento de confiança.
A diferença de regime a que se vem aludindo impõe, assim, a prévia qualificação do acto impugnado como oneroso ou gratuito - distinção esta que, assumindo, nesta sede, uma importância fundamental, suscita, na sua aplicação prática, as maiores divergências e dúvidas em relação a algumas categorias de negócios.
Diz-se [...] oneroso o contrato em que a atribuição patrimonial efectuada por cada um dos contraentes tem por correspectivo, compensação ou equivalente a atribuição da mesma natureza proveniente do outro. Para alcançar ou manter a atribuição patrimonial da contraparte, cada contraente tem (o ónus hoc sensu) de realizar uma contraprestação. Por seu turno, é gratuito o contrato em que, segundo a comum intenção dos contraentes, um deles proporciona uma vantagem patrimonial ao outro, sem qualquer correspectivo ou contraprestação. [...]
Neste campo, interessa a qualificação como onerosos ou gratuitos dos actos em que o devedor diminui o seu património, importando, pois, verificar se o terceiro beneficiado por essa diminuição prestou ou não alguma contrapartida.
Quando essa contrapartida é de tal modo insignificante perante o valor da prestação que visa retribuir, situando o negócio numa zona de “lusco-fusco” entre a gratuitidade e a onerosidade, a irrelevância do sacrifício do terceiro adquirente deve-nos impelir para a aplicação da regra do art. 612.º, n.º 1, do C.C., prevista para os negócios gratuitos – a boa fé das partes não obsta ao funcionamento da impugnação pauliana. Os interesses do credor que viu ferido o seu direito de garantia devem-se sobrepor às expectativas do terceiro que enriqueceu à custa de uma contrapartida desprezível (sublinhado e negrito nossos).
Porém, tal como refere João Cura Mariano [[João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, 2008], p. 221], se os negócios como os de compra e venda, locação, mútuo, doação ou testamento não suscitam especiais dificuldades, o mesmo não se pode dizer de outros actos que, pelo seu conteúdo especial ou pela sua conexão com outros, vêm desde há muito a suscitar acesas polémicas. Um desses actos é precisamente a partilha da comunhão conjugal, dado que se mostra necessário questionar a sua natureza para aferir da necessidade de demonstrar, ou não, a má fé dos seus outorgantes, quando desse acto tenha resultado debilitado o património garante, designadamente quando o devedor ficou com bens de valor inferior ao da sua quota ou com bens dificilmente apreensíveis.
A dúvida deriva, nestes casos, da circunstância de não existir no dito acto plurilateral – à semelhança do que sucede na divisão de coisa comum – uma verdadeira troca de prestações, mas antes uma modificação de direitos, nomeadamente quanto ao seu objecto e conteúdo. Resultando dos actos em questão, para todos os outorgantes, a transformação de um direito indiviso sobre uma totalidade num direito exclusivo sobre uma parte daquela, ou o seu equivalente, verifica-se que à “saída” de um direito corresponde a “entrada” de outro, na esfera jurídica de todos os participantes e daí que, à luz desta concepção [...], o acto deva, em regra, ser considerado oneroso [...].
Todavia, nem sempre será assim.
É que se é verdade que, havendo tornas (ou outras contrapartidas, como, por exemplo, assunção de dívidas), o carácter oneroso da partilha dos bens comuns do casal (ou da herança deixada por morte) será inequívoco [,,,], já o mesmo não sucede nos casos em que não houve tal contrapartida e em que há uma desproporção de relevo entre os bens que, por força daquela, couberam a cada um dos cônjuges (ou a cada um dos herdeiros).
Perfilhando este entendimento, o Supremo Tribunal de Justiça afirmou, no acórdão de 07-04-2005 [ Revista n.º 4649/04 – 6.ª Secção [...]], que a partilha se poderá reconduzir tanto a uma alienação (na parte do quinhão preenchida com tornas), como a uma doação (na parte concernente à diferença entre os valores reais das verbas recebidas e do respectivo quinhão, quando tal diferença não é compensada com tornas).
Aliás, igual posição fora já sufragada no aresto deste Supremo Tribunal de 05-06-2003 [Revista n.º 1579/03 – 7.ª Secção [...]], citado no acórdão posto em crise, aí se sublinhando que, havendo tornas, não há como não reconhecer à partilha o carácter oneroso que deriva precisamente de aquelas corresponderem ao preço do direito do beneficiário delas sobre o conjunto dos bens do património autónomo partilhado que, de certa forma, alienou. No entanto, quando a partilha serve uma intenção liberal, então, é também um negócio gratuito e, nessa medida, está sujeito à reacção dos credores do interessado que efectuou a gratuita atribuição patrimonial.
Ora, retomando o caso ajuizado e analisando, para tanto, o acervo factual provado à luz dos considerandos doutrinários e jurisprudenciais que se vêm expendendo, resulta ser evidente que a partilha impugnada não pode deixar de ser qualificada, in casu, como acto gratuito.
Na verdade, conforme se observou no acórdão recorrido, está assente que, no âmbito do acordo de partilha dos bens comuns do casal, realizada pela embargante e pelo embargado João da Silva, foram atribuídos à primeira bens no valor global de € 618.358,24, ao passo que ao segundo couberam bens e direitos que apenas ascendem a € 79.653,80, sem que o mesmo tenha recebido qualquer contrapartida pela parte da sua meação a que, em virtude desse acordo, necessariamente renunciou.
Acresce que, a par da dita “distribuição”, manifestamente desigual, foi ainda acordado entre o casal que: (i) o passivo constante da relação de bens, consistente numa dívida ao Banco GG que, em 16-05-2013, se cifrava em € 111.346,00, se mantinha em comum para ambas as partes; e que (ii) nada mais era devido entre a embargante e o embargado BB, no que respeita à comunhão do casamento, o que não pode deixar de significar – conforme concluiu, acertadamente, a Relação, que o embargado declarou prescindir do direito a tornas (cf. pontos 9. a 13. do quadro fáctico provado).
Neste contexto, sendo gritante a desproporção verificada no aludido acordo, sem que tenha existido qualquer contrapartida, é evidente o espírito de mera liberalidade que, necessariamente, lhe esteve subjacente, pelo menos em parte.
Com efeito, tendo presente o conceito de acto gratuito que atrás se dilucidou, dúvidas não restam que a partilha impugnada nele se enquadra inteiramente, pois que à vantagem patrimonial, proporcionada pelo embargado BB à embargante (que viu, em muito, “aumentada” a sua meação no património comum do casal), não correspondeu igual compensação ou correspectivo. [...]
Deste modo, é de concluir, sem necessidade de mais longas considerações, que, no caso, constituindo a partilha um acto gratuito, não há que averiguar do requisito da má fé, não podendo vingar, quanto a este aspecto, a tese pela qual a recorrente se bate com veemência – art. 612.º, n.º 1, 2.ª parte, do CC. [...]
Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões da recorrente, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta, nem viola as disposições legais que indica."
[MTS]