Herança indivisa; dívidas da herança;
legitimidade passiva*
1. O sumário de RP 4/11/2019 (1136/18.7T8VFR.P1) é o seguinte:
I - Os titulares dos direitos e deveres da herança aceite mas que se mantém indivisa, em comum e sem determinação de parte, são os herdeiros/sucessores do autor daquela herança.
Não a própria herança aceite mas indivisa, a qual não é sujeito de direitos, não dispõe de personalidade judiciária e como tal não pode ser parte ativa nem passiva.
Só quem é parte pode ser condenado ou absolvido.
II - Pelos encargos da herança, incluindo as dívidas do falecido responde o património autónomo constituído pelos bens da herança indivisa.
Sendo para esse fim demandados os herdeiros/sucessores nessa qualidade.
III - Em ação na qual são RR. os herdeiros/sucessores do autor de herança indivisa e aceite, em que a A. alega ser credora da herança e demandar os herdeiros (nessa qualidade) para que possa obter a responsabilização daquela herança “R”, é de entender que o pedido formulado pela A., embora imperfeitamente expresso, é o de condenação dos RR. na qualidade em que são demandados a reconhecer a existência do crédito reclamado da responsabilidade da herança.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"In casu a A. instaurou, corretamente, atenta a reconhecida indivisão da herança aceite, a ação contra os herdeiros do autor de tal herança.
E nessa medida verificam-se os pressupostos processuais da personalidade e capacidade judiciária, bem como da legitimidade.
A questão – fundamento da decisão recorrida – baseou-se na entendida desadequação do pedido formulado perante as partes e causa de pedir identificados pela autora.
Esta autora, não obstante ter instaurado a ação contra os herdeiros da herança indivisa – que na p.i. identificou como RR. - terminou formulando pedido condenatório contra a “R.”.
Após terem sido pedidos esclarecimentos à A., pelo tribunal a quo, sobre “contra quem deduz o pedido”, nomeadamente se o faz “contra a herança indivisa não partilhada deixada por óbito de (…) devidamente representada por todos os herdeiros” ou “se o faz individualmente contra cada um dos herdeiros” - esclarecendo que no último caso é fundamental que a herança tenha já sido partilhada e no primeiro caso que os herdeiros “apenas podem ser condenados a reconhecer a existência de crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança” – e consequentemente endereçado convite à correção do pedido formulado “(…) nessa conformidade” (sublinhados nossos), respondeu a A.:
- ser responsável pelos alegados danos a herança aberta por óbito de D…;
- ter a herança sido aceite e permanecer indivisa, pelo que “a autora intentou a ação contra todos os seus herdeiros”.
Não formulou a A. qualquer correção ao pedido, na sequência do por si informado, em conformidade com o que o tribunal a quo antes havia expresso ser o seu entendimento para esta última hipótese.
Certo sendo que do esclarecimento prestado ficou também claro que a A. não deduziu o pedido contra cada um dos herdeiros indicados e muito menos pretende a condenação destes a título individual [porquanto afirma a responsabilidade da herança].
Ao invés tendo demandado estes, conforme esclareceu, na qualidade de herdeiros porquanto pelos danos de que pretende ver-se ressarcida, afirma ser responsável a herança aberta por óbito de D…, herança que assim pretende ver condenada. Por tanto e para tanto tendo instaurado a ação contra todos os seus herdeiros (entende-se herdeiros do de cujus).
A pretensão da recorrente é clara: que seja o património autónomo a responder pelas dívidas da responsabilidade do de cujus. [...]
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Em sede de recurso (vide as conclusões supra transcritas) a recorrente reitera que intentou a ação contra todos os herdeiros do de cujus para assegurar a respetiva legitimidade processual, mas não a legitimidade substantiva a qual está adstrita à herança.
Sendo esta – herança – a responsável pela dívida.
Nunca tendo sido pretensão da autora responsabilizar os herdeiros diretamente pela dívida [entende-se responsabilidade a título individual].
Motivo por que “peticionou a condenação da Ré (herança) e não dos Réus (herdeiros)”.
Tendo efetivamente pedido “a condenação da Ré (herança)” por ainda não ter ocorrido a partilha.
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Dos despachos e requerimentos a que acima fizemos alusão, incluindo conclusões de recurso, extrai-se que não obstante a A. ter corretamente intentado a presente ação contra todos os herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de D…, repetidamente afirmou pretender a condenação da Ré herança.
Mas igualmente afirmou que demandou todos os herdeiros do de cujus na medida em que pelas dívidas da herança responde a herança.
O que é correto perante o disposto nos artigos 2068º e 2097º do CC já supra citados.
É ponto assente que a herança – indivisa mas aceite – não dispõe de personalidade judiciária e não é sujeito de direitos [Vide Ac. TRL de 17/03/2011, nº processo 57/10.6TBVPT.L1-2 in www.dgsi.pt].
Herança que também é claro não foi demandada – demandados são os herdeiros do de cujus.
A demanda da herança aliás só seria possível em caso de herança jacente por via da extensão da personalidade judiciária prevista no artigo 12º do CPC. Só nesta situação sendo possível condenar a R. herança. [Cfr. Ac. TRG de 02/06/2016, nº processo 72/15.3T8VPA.G1 [...] ].
A questão que analisamos não é de legitimidade processual, mas de procedência do pedido.
O tribunal a quo, em observância do dever de gestão processual, sobrepondo e bem o fundo à forma, esclareceu a A. sob os pressupostos condenatórios e moldes em que o pedido formulado poderia ser procedente [se demonstrados os pressupostos para tanto alegados] e convidou a A. a corrigir o seu pedido em conformidade com o que indicara antes.
A A. sem proceder a qualquer correção do pedido, alegou numa primeira resposta ser responsável pelos danos a herança e justificou por tal razão ter demandado os herdeiros do de cujus.
O assim declarado deixa margem para uma interpretação conforme à condenação dos RR. enquanto herdeiros a reconhecer a existência do crédito reclamado. Crédito este da responsabilidade da herança.
E assim entendido o pedido, ao tribunal incumbiria numa eventual procedência da ação, precisar os termos condenatórios, nomeadamente clarificando que o crédito seria satisfeito pelas forças da herança, ou seja que a satisfação daquele estaria limitado pelos bens que constituem o acervo hereditário.
O tribunal a quo, numa interpretação excessivamente rígida e formal concluiu que o pedido condenatório foi formulado - stricto sensu - contra a herança.
A qual não só não é parte, como não tem suscetibilidade de o ser [atento o facto de não ter personalidade judiciária].
E por esta via concluiu pela improcedência do pedido, porquanto ao tribunal está vedado condenar em objeto diverso do pedido.
A questão convoca as regras da interpretação definidas no CC, de acordo com as quais a declaração vale com o sentido que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário poderá deduzir do comportamento do declarante (art.º 236º do C.C.).
“A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante” [Ant. Varela in C.C.Anot., 4ª ed. P. 223 – nota 4].
No contexto acima já especificado quer quanto à pretensão concreta expressa pela autora, isto é, qual o fim último visado com a ação instaurada; quer quanto aos esclarecimentos que a autora e recorrente foi prestando no processo a solicitação do tribunal, ficou claro que a mesma não pretendia a condenação dos herdeiros a título individual. Ainda que a demanda dos mesmos resultou justificada pelo facto de serem os herdeiros do de cujus, pretendendo a responsabilização de toda a herança.
Resultando a demanda dos herdeiros portanto do facto de serem estes os titulares do direito à herança, em comum e sem determinação de parte
Tendo presente:
- que os RR. são efetivamente os herdeiros do de cujus, e de tal não há dúvida porquanto foram os demandados e citados para os termos da ação, que aliás contestaram sem que a qualidade em que foram demandados lhes tenha suscitado dúvidas, atentos os termos em que contestaram.
- que é certo ter a A. reafirmado pretender a condenação da “R” herança o que também explicou no contexto de responsabilidade da herança pelas dívidas do falecido nos termos legais já supra citados;
- que a herança não é parte por não ser sujeito de direitos e assim não podendo ser condenada, sendo antes os RR. quem são os titulares do direito à herança nos termos também já referidos;
- que a A. expressou de forma clara qual era o sentido das suas declarações e por tanto qual a pretensão jurídica deduzida;
justificava-se a nosso ver, numa sobreposição do fundo sob a forma, que o tribunal a quo tivesse considerado precisamente que o pedido formulado pela autora era o de condenação dos RR. – pois são estes os demandados - a reconhecer a existência do crédito reclamado da responsabilidade da herança.
Note-se que o assim determinado não viola o princípio do dispositivo de acordo com o qual está o tribunal vinculado a resolver o conflito que as partes sujeitam à sua apreciação – delimitado pela causa de pedir e pedido formulados, os quais definem o objeto do processo – porquanto embora imperfeitamente expresso, é claro o sentido do pedido formulado pela autora.
Nesta perspetiva, entende-se assistir razão à recorrente, implicando a revogação da decisão a qual deverá ser substituída por outra que – após considerar que o pedido formulado pela autora é o de condenação dos RR. enquanto herdeiros na herança aberta por óbito de D…, a reconhecer a existência do crédito reclamado pela autora e da responsabilidade da herança – determine o prosseguimento dos autos para apreciação das demais questões suscitadas.".
*3. [Comentário] A RP decidiu bem.
A herança indivisa é responsável pelos
encargos da herança, entre os quais se incluem as suas dívidas (art.
2068.º CC). No entanto, a herança indivisa, ao contrário da herança jacente, não é um património sem titulares, mas antes um património que tem como contítulares, numa situação de comunhão de mão comum, os herdeiros. É, aliás, por isso que é necessário atribuir personalidade judiciária à herança jacente (art. 12.º, al. a), CPC) -- que é um património sem titulares --, mas não à herança indivisa -- que é um património com vários titulares.
Assim, a alternativa não é entre pedir a condenação da herança indivisa ou pedir a condenação dos herdeiros, mas entre pedir a condenação dos herdeiros a título pessoal ou pedir a condenação dos herdeiros como contitulares da herança indivisa. Esta última teria sido a escolha correcta.
MTS