"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/04/2020

Jurisprudência 2019 (208)

 
Embargos de terceiro;
mera detenção


1. O sumário de RP 19/19/2019 (2819/05.7TBAVR-B.P1) é o seguinte:
 
I – Celebrado um contrato de permuta nos termos do qual os embargantes declaram transferir para os embargados/executados o terreno de construção do qual viria a ser destacados o prédio objeto da penhora, em troca da entrega por estes últimos de uma moradia que se comprometiam a construir no lote correspondente aquele prédio, as correspondentes prestações a que as partes se obrigaram, ainda que ligadas por uma relação de reciprocidade e interdependência, concretizam-se em momentos distintos. A transmissão da propriedade do terreno, no momento da celebração do contrato, enquanto a transmissão da propriedade da moradia a construir apenas se concretizará após a construção dessa mesma moradia e com a aceitação da obra – artº 408º, nº 2 e artº 1212º, nº 1, ambos do C. Civil.

II - Com a transmissão do direito de propriedade sobre o terreno operada por mero efeito do contrato de permuta, transmitiu-se também sobre tal terreno apesar de continuar a ser ocupado pelos transmitentes, configurando a forma de aquisição derivada da posse que a lei nos artºs 1263º, alínea a) e 1264º, nº 1, do C.Civil designa por constituto possessório, em virtude do qual os embargantes continuando a ocupar o prédio vendido, fazem-no agora a título de mera detenção.

III – Os embargos de terceiro improcedem assim, por um lado porque os embargantes transmitentes do terreno, continuando a ocupar o prédio, a partir do contrato de permuta o fazem como meros detentores, não podendo como tal invocar a posse ou a usucapião fundada na mesma, e por outro não estando alegada nem provada a aceitação da moradia, ou sequer que esteja terminada, não podem alegar a aquisição do direito de propriedade sobre o terreno em que tal moradia foi construída.

2, Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"II – Para além da posse os embargantes invocavam, como fundamento dos embargos de terceiro, o direito de propriedade adquirido por usucapião.

É inquestionável que os embargos de terceiro podem ter como fundamento, para além da posse, qualquer outro direito incompatível com a realização da penhora ou ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens – cfr nº 1 do artº 342º do CPC.

No entanto, tendo-se concluído, como se concluiu, que desde 05/01/1999 a posse sobre o terreno em causa se encontra transferida para os embargados/executados, e que tendo os embargantes continuado a ocupar o prédio em causa o fazem agora como meros detentores, é evidente que também este fundamento os embargos de terceiro terão de improceder, uma vez que só a posse, entendida nos termos em que se prevê no artº 1251º, do C.Civil, ou seja ou seja a atuação material correspondente ao exercício do direito de propriedade, acompanhada do correspondente animus poderia conduzir à aquisição por usucapião.

Nas suas alegações de recurso – mas só nesse momento - a recorrente vem ainda invocar como fundamento dos embargos de terceiro o direito de propriedade sobre o prédio penhorado que se sustenta deve considerar-se transmitido para si no momento em que a então futura moradia nele entretanto construída passou a ser “determinada com conhecimento de ambas as partes” – o que teria acontecido com a celebração da escritura de permuta, em 05.01.1999.

Este fundamento não foi invocado perante o tribunal da 1ª instância, não tendo sido por isso objeto de apreciação na decisão recorrida. E por isso nunca poderia servir de fundamento à decisão a proferir neste tribunal da Relação ao qual, enquanto instância de recurso apenas cabe reapreciar decisões proferidas pelo tribunal recorrido sobre questões que as partes colocaram à apreciação daquele tribunal, e não conhecer de questões novas só suscitadas em sede de recurso.

Sempre se dirá em todo o caso, e no seguimento do que se disse já anteriormente, que relativamente à transmissão do direito de propriedade sobre a moradia que os embargados/executados se comprometeram construir no referido lote, porque se tratava de coisa futura a construir em terreno entretanto transmitido para aqueles embargados/executados, a transmissão do direito de propriedade sobre a moradia a construir operada pelo contrato de permuta só se efetivaria com a aceitação da obra – nº 1 do artº 1212º do CC - o que à luz dos fatos provados não pode afirmar-se ter acontecido, tanto mais que são os próprios embargantes quem alegam – e ficou a constar como provado – que a obra em causa ainda lhes não foi entregue.

A sentença recorrida fez por isso correta interpretação e aplicação do Direito, e a conclusão a que nela se chegou, muito embora parecendo injusta, é inerente à aleatoriedade de um contrato em que as partes acordam em permutar um bem existente por um bem futuro a construir, sujeitando-se às contingências que possam ocorrer entretanto."
 
[MTS]