"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/04/2020

Jurisprudência 2019 (222)

 
Litigância de má fé;
garantia do contraditório
 

1. O sumário de STJ 21/11/2019 (1986/06.7TVLSB-C.L1.S2) é o seguinte:

I. De acordo com o despacho proferido nos autos, no presente caso em que a decisão de condenação por litigância de má-fé integra a decisão que põe termo ao processo, não está em causa uma decisão interlocutória, mas antes uma parte ou extensão da decisão de mérito; assim, e ainda que não se ignore existirem, a esse respeito, divergências na jurisprudência do STJ, considerou-se ser a decisão recorrível nos termos gerais do nº 1 do art. 671º do CPC.

II. Incindindo a decisão de condenação por litigância de má-fé sobre os “representantes legais da autora”, os actos de notificação da própria sociedade autora não podem valer como notificação pessoal dos seus representantes legais; nem tampouco o conhecimento pessoal que estes possam ter dos factos provados relevantes, nos quais a sobredita condenação se fundou, pode suprir a falta de notificação pessoal, se tal falta tiver ocorrido.

III. Assim, comprovando-se que um dos recorrentes (i) não foi nominalmente notificado; (ii) à data da notificação dos despachos em causa, não era já representante legal da autora; (iii) não veio aos autos apresentar resposta aos despachos da 1ª instância que ordenaram a notificação do “representante legal” da autora; forçoso é concluir não ter o mesmo recorrente sido pessoal e devidamente notificado.

IV. Compulsado o processo, verifica-se que, por acórdão anterior da Relação, foi definida – e não impugnada – a aplicação do regime da condenação por litigância de má-fé anterior à reforma do CPC (introduzida pela Lei nº 41/2013, de 26/06), de acordo com o qual, quando a parte for uma pessoa colectiva, a responsabilidade pelas custas, multa e indemnização inerentes à condenação recai sobre o representante legal da mesma; na medida em que os ora recorrentes, na primeira vez que vieram ao processo, não invocaram qualquer nulidade processual – designadamente pelo facto de o direito aplicável ter sido definido antes de terem sido pessoalmente notificados, não lhes tendo sido dada oportunidade de se pronunciarem sobre a questão da própria determinação de tal regime – formou-se a esse respeito caso julgado formal.

V. Quanto à alegada inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do regime dos arts. 456º e ss do CPC antigo, por violação do princípio da retroactividade das normas sancionatórias de conteúdo mais favorável, mostra-se evidente, a partir da conclusão do ponto IV, que o acórdão recorrido não interpretou nem aplicou as normas em causa, antes se limitou a considerar ter-se formado caso julgado formal a respeito da aplicação de tais normas. Pelo que não padece o acórdão recorrido da invocada inconstitucionalidade.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"7. Quanto à questão da alegada violação do princípio do contraditório por falta de notificação do Recorrente EE, consideremos os termos em que o acórdão recorrido apreciou a questão:

“Relativamente à invocada nulidade da decisão, e salvo novamente o devido respeito, se há direito que foi respeitado em todo este processado foi o do contraditório, conhecendo as partes as decisões proferidas pelos Tribunais de recurso quanto a este particular aspeto e tendo, nessa sequência, sido notificadas, mais do que uma vez, para se pronunciarem sobre essa mesma litigância de má-fé.

Acresce que a matéria de facto fixada nas decisões acima mencionadas e que fundam a condenação como litigantes de má-fé dos aqui Apelantes, não foram objeto de alteração, nem em sede dos recursos anteriormente suscitados, nem no presente, mantendo-se, assim, inalterados e sendo também incontornável que foi sobre essa mesma materialidade que o Tribunal de 1ª Instância, na decisão aqui sob recurso, sustentou a respetiva condenação.

Neste contexto, a simples invocação pelos Apelantes de estarem perante uma decisão surpresa – a que foi proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e está aqui em apreciação
, constitui, só por si, um comportamento que não é compatível com o da lisura processual que se impõe às partes no processo.

Com efeito, a presente ação foi instaurada em 23 de Março de 2006 sendo certo que a procuração mencionada nos autos foi outorgada pelo aqui Apelante EE, com data de 16 de Maio de 2000, na qualidade de sócio e gerente da A. e com poderes para o acto e em representação da A. – alínea B) dos Factos Provados.

A factualidade com interesse para a compreensão da ação está basicamente contida nas alíneas H), I), N), O), P), U), Y) e Z) dos Factos Provados, dali se aferindo o papel preponderante que o Apelante Vítor Santos sempre teve na condução dos factos que precederam a instauração desta ação, quer como sócio maioritário e único gerente da A., enquanto sociedade por quotas, obrigando sozinho esta sociedade, quer depois da sua transformação em sociedade anónima, quando passa a ocupar o lugar de Presidente do Conselho de Administração e onde os demais Apelantes ocupam o lugar de vogais. Estes, por sua vez, ocupavam o lugar de gerentes da A. em 16 de Maio de 2000, quando aquela era uma sociedade por quotas, intervindo nessa qualidade na escritura pública mencionada sob a alínea K).

Podemos facilmente concluir pela leitura de toda a materialidade dada como provada que todos os Apelantes intervieram nos actos em que a A. fundou a presente ação tendo, assim, pleno conhecimento dos mesmos e que exerceram as suas funções na realização dos interesses daquela e dos mesmos, confundindo-se em ambos o prosseguimento de toda asta atividade que, objetivamente, tem lançado os Apelados num verdadeiro “calvário” jurídico que perdura há mais de sete anos, apenas para apuramento da má-fé processual dos Apelantes.

Improcede, pois, a invocada nulidade da decisão.”


Constata-se que, efectivamente, a Relação entendeu não ter ocorrido desrespeito do princípio do contraditório na condenação dos Recorrentes, enquanto representantes legais da A., atendendo, por um lado, a que, ao longo das múltiplas vicissitudes do processado, as partes foram por diversas vezes notificadas para se pronunciarem sobre a possibilidade de condenação por litigância de má-fé; e, por outro lado, a que os Recorrentes têm conhecimento pessoal dos factos que conduziram à condenação por litigância de má-fé.

Não pode acompanhar-se este entendimento que se afigura padecer de ilegalidade e de inconstitucionalidade.

Com efeito, incindindo a decisão de condenação por litigância de má-fé sobre os “representantes legais da A.” (a sociedade AA - Administração de Propriedades, Lda.), os actos de notificação da própria autora não podem valer como notificação pessoal dos seus representantes legais. Nem tampouco o conhecimento pessoal que estes possam ter dos factos provados relevantes, nos quais a sobredita condenação se fundou, pode suprir a falta de notificação pessoal, se tal falta tiver ocorrido.

Assim, importa verificar se o aqui Recorrente EE foi ou não pessoalmente notificado para se pronunciar sobre a possibilidade de condenação por litigância de má-fé.

Compulsados os autos, verifica-se que, por despachos da 1ª instância de fls. 2333 e de fls. 2721 (do processo principal), foi determinada a notificação do “legal representante” da A. para se pronunciar sobre a existência de má-fé e consequências respectivas, sem se identificar a pessoa ou pessoas em causa, e sem se especificar que se tratava dos representantes legais da A. à data da propositura da acção.

GG e FF vieram aos autos apresentar resposta a cada um dos referidos despachos, respectivamente, a fls. 2359 e a fls. 2726 (do processo principal).

Comprovando-se que EE: (i) não foi nominalmente notificado; (ii) à data da notificação dos despachos em causa, não era já representante legal da A. (cfr. certidão do registo comercial junta com o recurso de apelação); (iii) não veio aos autos apresentar resposta aos despachos da 1ª instância de fls. 2333 e de fls. 2721 (do processo principal); forçoso é concluir não ter este sido pessoal e devidamente notificado.

Conclui-se, assim, ter sido desrespeitado o princípio do contraditório por falta de notificação pessoal do Recorrente EE."
 
[MTS]