"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/06/2020

Jurisprudência 2020 (3)


Processo executivo;
intervenção de terceiros*


1. O acórdão de RP 9/1/2020 (6837/14.6T8PRT-B.P1) é o seguinte: 

I - A tutela multinível através do direito fundamental de acesso à justiça, conjugada com a garantia de acesso aos tribunais através do processo executivo, a possibilidade legal de na fase de execução haver a intervenção de terceiros, desde que esta esteja legalmente ancorada, seja a nível adjetivo, seja a nível substantivo, admite a possibilidade legal de existir a intervenção principal provocada no decurso de uma execução.

II - A procedência de uma ação de impugnação pauliana constitui título executivo contra o adquirente dos bens ou direitos transmitidos, podendo esses mesmos bens ou direitos ser penhorados no decurso da ação executiva movida contra o primitivo devedor, devendo para o efeito ser suscitada e admitida a intervenção principal nessa mesma ação executiva daquele adquirente.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No âmbito do regime processual da ação executiva e de modo a reforçar a referida garantia de acesso aos tribunais, o NCPC veio consagrar certas regras para a intervenção de terceiros, que correspondem a desvios à determinação da legitimidade, sendo uma delas com carácter geral e outra com carácter específico, porquanto incide apenas sobre a penhora. Assim, de acordo com o artigo 54.º, consagra-se, entre outro enunciado, que “A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor” (n.º 2) e “Quando a execução tenha sido movida apenas contra o terceiro e se reconheça a insuficiência dos bens onerados com a garantia real, pode o exequente requerer, no mesmo processo, o prosseguimento da ação executiva contra o devedor, que é demandado para completa satisfação do crédito exequendo” (n.º 3). Mais acrescentou-se que “Pertencendo os bens onerados ao devedor, mas estando eles na posse de terceiro, pode este ser desde logo demandado juntamente com o devedor.” (n.º 4). Uma outra possibilidade é a exequibilidade da sentença contra terceiros (artigo 55.º do NCPC). Por sua vez e no que concerne à penhora o artigo 735.º, n.º 2 do NCPC, confere a possibilidade de que “Nos casos especialmente previstos na lei, podem ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução tenha sido movida contra ele”. E a referência a bens de terceiros estende-se aos direitos de terceiros (artigo 778.º do NCPC).

No que concerne à impugnação pauliana, a sua procedência conduz à ineficácia dos actos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito (610.º Código Civil), porquanto, tal como decorre do artigo 616, n.º 1 Código Civil, “Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.”, sendo certo, de acordo com o subsequente n.º 4, que “Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”. E mais adiante na disciplina da realização coactiva da prestação, estipula-se no artigo 818.º, que “O direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente praticado”. Podemos aqui encontrar na lei substantiva uma possibilidade legal de um terceiro ser demandado para satisfazer um direito de crédito, relativamente ao qual e ab initio o mesmo não era o sujeito passivo dessa relação creditícia, mas cujo património que lhe foi transmitido passou igualmente a responder pela dívida do devedor primitivo. Trata-se como que de uma “garantia real específica” e respeitante a um património de terceiro, que devido à ineficácia relativa dessa transmissão, passa a poder ser executada na medida do interesse do credor. No âmbito da impugnação pauliana, tem sido entendimento da jurisprudência que a sentença condenatória aí proferida, constitui título executivo contra o terceiro adquirente – Ac. TRP de 23/fev./2012 (Des. Maria Adelaide Domingues, acessível em www.dgsi.pt, assim como os demais a que se fizer referência).

A jurisprudência tem vindo ultimamente a ser mais compreensiva na admissibilidade da intervenção de terceiros no âmbito das ações executivas, como de modo persuasivo ficou expresso no Ac. TRC de 04/jun./2013 (Des. Carvalho Martins), ao considerar que “A admissibilidade dos incidentes de intervenção de terceiro no âmbito da acção executiva e respectiva oposição tem que ser analisada em face das circunstâncias do caso concreto, com vista a apurar se, nessas circunstâncias, estão ou não verificados os respectivos pressupostos legais e se a intervenção tem ou não a virtualidade de satisfazer um qualquer interesse legítimo e relevante e ainda se a intervenção implica ou não com a estrutura e a finalidade da acção executiva.” – no mesmo sentido expressou-se mais recentemente o Ac. TRG de 17/jan./2019 (Des. Fernando Fernandes Freitas). A propósito da existência uma garantia real por parte do credor/exequente o Ac. TRC de 17/jun./2014 (Des. Catarina Gonçalves), sustentou que “Pretendendo o exequente fazer valer, no processo de execução que instaurou contra o devedor, a garantia real do seu crédito e constatando-se que o bem sobre o qual incide essa garantia havia sido transferido para terceiro em momento anterior à propositura da execução, pode o exequente recorrer ao incidente de intervenção principal provocada para fazer intervir o aludido terceiro (que poderia ter demandado inicialmente) tendo em vista o prosseguimento da execução contra o devedor e contra o titular do bem onerado com a garantia real”. E perante uma garantia de terceiros, o Ac. TRC de 20/mar./2018 (Des. Jorge Arcanjo) alinhou neste posicionamento ao estatuir que “O art. 54º, nºs 2 e 3, do NCPC (chamamento do devedor) prevê uma situação de litisconsórcio voluntário, pelo que podendo a execução ser instaurada inicialmente contra a devedora, em litisconsórcio voluntário passivo, e alegando os executados (terceiros garantes) interesse atendível no chamamento, em face da compensação de créditos, deve admitir-se o incidente de intervenção principal provocada da devedora na acção executiva”. E mais recentemente num caso de impugnação pauliana o Ac. TRL de 07/jun./2018 (Des. Arlindo Crua), veio considerar numa situação semelhante à aqui em recurso, que “na pendência de processo de execução, impugnado, em competente acção de impugnação pauliana, procedentemente o acto de doação praticado em prejuízo do credor, ora Exequente, o direito de execução pode incidir sobre tal bem, ainda que pertencente a um terceiro (cf., artº. 818º, do Cód. Civil); - e, pretendendo-se obter o pagamento do crédito em execução através do património da obrigada à restituição, ou seja, perante um bem de terceira à relação obrigacional, esta tem necessariamente que figurar como demandada ou sujeito passivo na execução, sob pena do seu bem não poder ser penhorado – cf., artº. 735º, nº. 2, do Cód. de Processo Civil; - o que constitui situação análoga à legalmente prescrita no nº. 2, do artº. 54º, do mesmo diploma, como um desvio à regra geral de determinação da legitimidade no processo executivo; - pelo que, tendo sido a acção de impugnação pauliana intentada após a instauração da acção executiva, o Exequente pode requerer a intervenção principal da terceira adquirente para assegurar os efeitos da impugnação e poder prosseguir a execução.”

Nesta conformidade, atenta a tutela multinível anteriormente traçada a nível normativo, que passa pelo direito fundamental de acesso à justiça, a garantia de acesso aos tribunais através do processo executivo, a possibilidade legal de na fase de execução haver a intervenção de terceiros, desde que esta esteja legalmente ancorada, seja a nível adjetivo, seja a nível substantivo, como tem sido ultimamente acolhido pela jurisprudência, de que demos conta, não vemos razões para obstar à existência da intervenção principal provocada no decurso de uma execução. E como se pode constatar na situação em apreço, o que a recorrente pretende é executar o direito ao quinhão sobre certa herança que foi procedentemente impugnado, sendo considerada ineficaz em relação àquela a mencionada transmissão. Daí que o presente recurso, tenha plena procedência, impondo-se a revogação da decisão recorrida."

3. [Comentário] A acórdão trata de uma questão interessante.

Na verdade, não há nenhuma razão para não admitir, nos termos gerais dos arts. 311.º ss. CPC, a intervenção de terceiros no processo executivo, Na obra Acção Executiva Singular (1998), 152 ss, procurou-se, contrariando o entendimento comum na altura, fazer uma primeira sistematização das hipóteses de intervenção de terceiros no processo executivo. Como se refere no acórdão, a jurisprudência tem enriquecido o tema.

MTS