Obrigação cambiária;
aval; título executivo
1. O sumário de RP 14/1/2020 (3231/19.6T8PRT-A.P1) é o seguinte:
I - O aval é um ato cambiário que origina uma obrigação autónoma independente, cujos limites são aferidos pelo próprio título.
II - Extinta a obrigação cambiária por prescrição, apenas poderá ser reconhecida a exequibilidade do título de crédito como quirógrafo da obrigação extra - cartular.
III - Estando em causa o aval – figura típica do direito cambiário – este não se mostra transmutável fora desse enquadramento cambiário, pois que, para que a obrigação cambiária do avalista, possa servir de título executivo como quirógrafo, necessário seria que do requerimento executivo resultasse que o avalista/executado se quis obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, sendo que a obrigação de prestar fiança tem de ser expressamente declarada.
I - O aval é um ato cambiário que origina uma obrigação autónoma independente, cujos limites são aferidos pelo próprio título.
II - Extinta a obrigação cambiária por prescrição, apenas poderá ser reconhecida a exequibilidade do título de crédito como quirógrafo da obrigação extra - cartular.
III - Estando em causa o aval – figura típica do direito cambiário – este não se mostra transmutável fora desse enquadramento cambiário, pois que, para que a obrigação cambiária do avalista, possa servir de título executivo como quirógrafo, necessário seria que do requerimento executivo resultasse que o avalista/executado se quis obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, sendo que a obrigação de prestar fiança tem de ser expressamente declarada.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Face ao regime legal em vigor, nada impede que um título cambiário que não possa valer como título executivo (no caso por a obrigação cambiária se mostrar prescrita), possa ter validade como quirógrafo, “desde que neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”, nos termos do que dispõe o art. 703º nº 1 al c) do CPC.
Vale isto dizer que, os títulos de crédito, desprovidos dos requisitos que permitiriam a aplicação do regime de abstração substantiva previsto na respetiva Lei Uniforme, podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à respetiva emissão – beneficiando do regime de presunção de causa afirmado pelo art. 458º do CC quando, atenta a sua natureza material, se consubstanciarem em atos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação, sem indicação da respetiva causa - Ver neste sentido o acórdão do STJ 7.5.2014. [...]
Apenas com uma imposição que resulta hoje de consagração expressa na lei adjetiva: a parte que quer prevalecer-se do título, invocado como quirógrafo da obrigação causal subjacente à sua emissão tem o ónus de alegar, na petição inicial ou no requerimento executivo, os factos essenciais constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, desprovido de valor nos termos da respetiva LU, identificando adequadamente essa relação subjacente, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao demandado/executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, (como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º do CC., pode ler-se no citado acórdão do STJ).
Ora, na situação em apreço, não só o Exequente não identifica devidamente a relação subjacente á emissão do aval pela Executada, relevante para o eventual reconhecimento de uma dívida daquele, como não identifica os inerentes factos constitutivos, limitando-se a “concluir” que, não obstante a prescrição se mantinha intacta a obrigação causal.
Parece-nos inegável, lido o requerimento executivo, que o mesmo não cumpre com o requisito contido no art. 703º nº 1 al c) do CPC de indicação dos factos constitutivos da relação subjacente, de resto, como se entendeu na sentença sob recurso.
Ora, com a reforma processual de 2013 [Citado a pg. 147, LULL anotada, 6ª ed., de Abel Delgado], apesar da drástica limitação do elenco dos títulos executivos não judiciais – deixando, em regra, de revestir as características da exequibilidade os meros documentos particulares, assinados pelo devedor, que não sejam títulos de crédito, - a alínea c) do nº1 do art. 703º manteve a orientação jurisprudencial maioritária, consagrando expressamente que valem como títulos executivos os títulos de crédito, que, embora desprovidos dos requisitos legais para incorporarem uma obrigação cartular, literal e abstrata, podem valer como meros quirógrafos da obrigação exequenda, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, se não constarem do próprio documento, sejam alegados no requerimento executivo.
A possibilidade legal do título constituir título executivo, no caso do título de crédito se mostrar imprestável, por carência dos requisitos legais, para suportar o típico regime de abstração substantiva, tem sempre de ser complementado com a alegação dos factos constitutivos da relação subjacente que não constem do documento.
Ora no caso em apreço o Exequente não cumpre tal requisito.
Na verdade, lido o requerimento executivo, do mesmo apenas decorre que as duas livranças exequendas onde consta o aval da Executada foram emitidas e entregues ao D…, SA associadas é garantia bancária nº …/2006-P e …./2007-P que aquele banco prestou a favor da sociedade E…, SA.
Aplicando este entendimento ao caso dos autos, conclui-se que estava o Exequente efetivamente onerado com a alegação dos factos constitutivos essenciais da relação causal à subscrição das livranças, desprovidas dos requisitos para valerem como título cambiário, de modo a identificar adequadamente essa relação causal subjacente.
A falta de alegação dos factos constitutivos da relação causal que se verifica relativamente á Executada/embargante seria suficiente para determinar quanto a si a extinção da execução.
Mas na situação em apreço, o que se verifica é que a existir uma obrigação causal subjacente á declaração de aval, ela não decorre dos títulos em execução.
Com efeito, no caso em apreço, a obrigação cartular da Executada era constituída por dois avales.
O emitente da livrança é o obrigado principal e é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (cfr. art. 78º da LULL).
Conforme ensina Pereira Coelho [sic], [Citado a pg. 147, LULL anotada, 6ª ed., de Abel Delgado] “O aceitante assume com o aceite uma obrigação abstrata que nasce exclusivamente do ato formal da sua assinatura”.
De acordo com o disposto no art. 31º da LULL aplicável às livranças por força do disposto no art. 77º ultima parágrafo da mesma lei, o aval é escrito na própria letra ou em folha anexa e exprime-se pelas palavras bom para aval ou por qualquer fórmula equivalente.
O aval caracteriza-se por ser um terceiro - avalista - a facilitar a circulação da letra caucionando ao seu portador o pagamento de uma determinada operação cambiária (saque, endosso), ou o seu reconhecimento pelo aceite (art. 31, § 4º da LULL).
O aval é um ato cambiário que desencadeia uma obrigação independente [Cfr. o Prof. Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial”, III, “Letra de Câmbio”, 1956, p. 197 ss.].
E a sua responsabilidade nãos e confunde com a do fiador.
A responsabilidade do avalista é solidária, que não subsidiária da do avalizado, pelo que o avalista não goza do benefício da prévia excussão; a nulidade intrínseca da obrigação avalizada não se comunica à do avalista; este tem direito de regresso contra os signatários anteriores ao avalizado. [Ver os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2004 e de 24 de Outubro de 2002 disponíveis in loc. citado]
E o avalista (não sendo sujeito da relação jurídica entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas de uma relação subjacente à obrigação cambiária entre si e o seu avalizado) presta uma garantia de natureza pessoal geradora de uma obrigação autónoma.
Daí que se responsabilize pela pessoa que avalizou assumindo uma responsabilidade, objetiva e abstrata, pelo pagamento do título, já que acaba por ser responsável nos mesmos termos em que o é a pessoa que garante por qualquer acordo de preenchimento concluído entre este e o portador.
No caso dos autos, a executada ao dar o seu aval à sociedade subscritora das livranças, garantiu a confiança do crédito que esta lhe merecia e que a mesma honraria o cumprimento pontual do crédito cambiário na data do vencimento.
A obrigação cambiária é de natureza formal e abstrata e portanto independente de qualquer causa debendi, válida por si e pelas estipulações nela expressas, ficando o signatário vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título. Ver Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, 2º, fascículo II, As Letras, pg 45.
O aval, enquanto obrigação cambiária, tem por finalidade garantir o pagamento da letra ou livrança – cfr artº 30º da LULL - sendo por isso sustentado que a vinculação típica do aval se esgota no título cambiário (ver Ac. Rel. Coimbra 21 de maio de 2013,disponível in www.dgsi.pt).
É porém incontornável que o aval, como os demais atos cambiários, tem subjacente uma determinada relação material ou fundamental estabelecida entre o avalista e o avalizado, que está na origem do mesmo, e que normalmente se reconduz à intenção de garantir o cumprimento da obrigação por parte do avalizado.
Só que, como bem se salienta no Acórdão desta Relação do Porto de 8 de novembro de 2018, [...] “Essa relação material subjacente não é confundível com a relação material subjacente à do avalisado e que possa estar na origem da emissão da letra ou livrança. Desde logo porque, a não ser nos casos em que o aval é dado por quem já está obrigado na letra ou livrança, o avalista não é sujeito da relação jurídica entre o portador e o subscritor da livrança.
E acresce, “Assim que, não sendo o aval por si reconduzível à fiança, para que a livrança, prescrita a obrigação cambiária do avalista, possa servir de título executivo como quirógrafo, necessário será que do requerimento executivo resulte que o avalista/executado se quis obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental.
Sendo que, como decorre do artº 628º, nº 1 do CC, a vontade de prestar fiança tem de ser expressamente declarada.”
No caso em apreço tal não ocorre manifestamente, pelo que temos de concluir, como bem se concluiu na sentença sob recurso que “Assim sendo, constata-se que a aqui embargante, enquanto avalista, não reconheceu qualquer obrigação cambiária perante o exequente com base na relação causal que esteve na génese da emissão das livranças dadas á execução, daqui resulta então, que a embargante não está vinculada a qualquer obrigação pecuniária face á exequente na medida em apenas era avalista nas livranças e enquanto título de crédito.”
[MTS]