"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/06/2020

Jurisprudência 2020 (15)


Função jurisdicional;
responsabilidade civil do Estado*


I. O sumário de RE 30/1/2020 (89/19.9T8TMR.E1) é o seguinte:

1 – O art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31.12 exige que o erro de julgamento seja demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido o erro e por via dos meios impugnatórios que, in casu, forem admissíveis.

2 – Só assim não será se o erro de julgamento consistir na violação de Direito Comunitário – que tem de ser invocada na ação de responsabilidade civil proposta contra o Estado e houver sido cometido por tribunal que haja decidido em último grau de jurisdição.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Está em causa nos autos a (eventual) responsabilidade do Estado Português e subsequente obrigação de indemnização por um pretenso erro de julgamento do tribunal de primeira instância que, no âmbito de um processo de inventário para partilha de bens em casos especiais, proferiu uma decisão em que determinou a transferência de uma dívida à Caixa Geral de Depósitos para o recorrente, sem que tivesse havido autorização expressa daquela entidade bancária para tal desiderato, e declarou, concomitantemente, que o aqui autor/recorrente ficava desvinculado do respetivo débito junto daquela entidade bancária.

O tribunal de primeira instância entendeu que do disposto no art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31.12 decorre que para o reconhecimento do direito indemnizatório reclamado pelo autor, com fundamento em erro judiciário, a ilicitude tem de estar previamente demonstrada no próprio processo judicial em que foi cometido o erro e por via dos meios impugnatórios que, in casu, forem admissíveis. Consequentemente, aquele tribunal decidiu que, não tendo a decisão alegadamente errada e em que se funda a presente ação sido objeto de qualquer recurso ou reclamação, ou seja, não tendo sido revogada, não se mostra verificada a condição essencial à ação prevista no citado art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007.

Liminarmente se dirá que não nos merece censura a interpretação da norma em causa nos termos em que foi empreendida pelo juiz a quo.

Apreciando.

Não é controvertido que a decisão judicial proferida no âmbito do processo de partilha de bens em casos especiais não foi objeto de recurso ou de reclamação, pelo que transitou em julgado.

Sendo imputado à referida decisão um erro de julgamento, há que chamar à colação o art. 13.º da Lei n.º 67/2007 que, sob a epígrafe Responsabilidade por erro judiciário, dispõe o seguinte:

«1 – Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.

2 – O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.»

O referido normativo define os pressupostos materiais da responsabilidade do Estado por erro judiciário em relação a todos os casos que não se reconduzam às situações específicas de privação inconstitucional ou ilegal de liberdade e de condenação injusta. [...]

O n.º 2 do art. 13.º impõe que o requisito da “ilicitude” – consubstanciado na existência de um erro de julgamento – seja demonstrado, não através da ação de responsabilidade civil que se destine a efetivar o direito de indemnização pelo exercício da função jurisdicional, mas no próprio processo judicial em que foi cometido o erro e por via dos meios impugnatórios que, no caso, forem admissíveis. Ou seja, o reconhecimento judicial do erro tem de ser empreendido pelo tribunal superior com competência para proferir, na respetiva ordem jurisdicional, a decisão definitiva sobre o caso concreto.

Por outras palavras, a verificação do requisito da “ilicitude” exige a existência de uma decisão que, com efeitos de caso julgado, determine a revogação da decisão que haja incorrido em erro de julgamento.
Naquele preceito normativo o legislador estatuiu uma condição de procedência da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário. Pelo que a ausência de revogação da decisão danosa fundada num vício de julgamento qualificável como erro judiciário determina, só por isso, a improcedência da ação [...].

Assim, não estando provada nos autos a revogação da decisão que haja incorrido em erro judiciário, a ação teria necessariamente de improceder, como julgou o tribunal de primeira instância."

*III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, a RE não interpretou adequadamente o disposto no art. 13.º RRCE. O preceito não se destina a permitir a indemnização de um lesado por uma decisão não final que foi revogada por um tribunal superior, mas antes a permitir a indemnização de um lesado por uma decisão final.

Não se afasta que uma decisão não final que venha a ser posteriormente revogada possa causar danos susceptíveis de ser indemnizados. Mas não é esse o sentido do disposto no art. 13.º RRCE. Aliás, seria incoerente estabelecer que o lesado pode ser indemnizado pelos prejuízos causados por uma decisão não final posteriormente revogada e não se estabelecer que o lesado pode ser indemnizado pelos danos originados por uma decisão final insusceptível de ser revogada por qualquer recurso ordinário. O potencial ofensivo de uma sentença final é, naturalmente, muito maior do que o de uma sentença não final que foi revogada por um tribunal superior, pelo que seria incongruente regular o caso anornal e não regular o caso normal.

Aliás, para se perceber o sentido do disposto no art. 13.º RRCE bastaria ter atendido às alterações introduzidas pela L 117/2019, de 13/9 (aliás, já em vigor no momento do proferimento do acórdão). Pela primeira vez na ordem jurídica portuguesa, os novos art. 696.º, al. h), 696.º-A e 701.º CPC prevêem um regime de revogação de uma decisão final que é susceptível de -- se vier a revogada no juizo rescidente -- constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado.

Era isto que faltava no ordenamento jurídico português, como se reconheceu em TJ 9/9/2015 (C‑160/14, Ferreira da Silva e Brito et al./Estado português), aliás, estranhamente ignorado no acórdão da RE:

O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional [in casu, a portuguesa] que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída.

b) Apesar de tudo, a RE decidiu bem, dado que o alegado prejudicado não interpôs recurso da decisão eventualmente (mas dificilmente) geradora de responsabilidade civil do Estado.

MTS