"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/06/2020

Jurisprudência 2020 (6)


Objecto do processo;
excesso de pronúncia; nulidade da sentença


1. O sumário de RE 16/1/2020 (1195/08.0TVLSB.E2) é o seguinte:

I - Incumbindo ao autor alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e formular o pedido, de harmonia com o disposto no artigo 552.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC, não tendo este alegado factos tendentes a apurar a responsabilidade pela ocorrência do acidente, cuja determinação fundou no acordo de repartição firmado entre a seguradora e o FGA, e tendo concretamente restringido o pedido formulado contra a ré seguradora a metade do valor das despesas que suportasse, não podia a Senhora Juíza, com base no apuramento da responsabilidade pela ocorrência do acidente, na sequência de outra relação material controvertida conexa, ter condenado a Ré ora Recorrente ao pagamento da indicada quantia global à autora, com base em fundamento não alegado pela parte sobre a qual tal ónus recaía, nos termos também definidos no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, e em pretensão que pela mesma não foi integralmente deduzida contra esta parte.

II - Consequentemente, a sentença recorrida é nula, por violação do princípio dispositivo, concretamente dos limites da condenação definidos no artigo 609.º, n.º 1, do CPC, segundo o qual a sentença não pode exceder os limites quantitativos do pedido, condenando em quantidade superior à pretensão deduzida pelo Autor contra a ora Apelante, e incorrendo na nulidade prevenida no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, o que impõe a sua alteração em sede do presente recurso, nos termos previstos no artigo 665.º, n.º 1, da codificação processual civil.

III - Na parte não impugnada por qualquer das partes, a decisão proferida na primeira sentença transitou em julgado e adquiriu força de caso julgado material, porquanto recaiu sobre a relação material controvertida existente entre o A. e os RR. da acção principal e passou a ser obrigatória dentro do processo e fora dele, nos termos dos artigos 619.º, n.º 1, e 621.º do CPC. (sumário da relatora)

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Conforme expressa nas conclusões das suas alegações de recurso, a Apelante discorda da sua condenação no pagamento ao Polo de Lisboa do Hospital das Forças Armadas da quantia de 342 588,91€, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal a contar da citação até integral pagamento, por entender que tal decisão padece de um notório erro de julgamento, afirmando que «a sentença recorrida é ineficaz por violação de caso julgado material, contraditória tendo em conta o teor da matéria de facto provada e a decisão, nula por condenação em quantidade superior ao pedido, nula por constituir uma decisão-surpresa e nula por omissão de pronúncia».

Para decisão dos vícios apontados à decisão recorrida, cumpre relatar as incidências processuais relevantes, para além das que acima já se elencaram no relatório, seguindo de perto o enquadramento prévio efectuado pela Apelante no corpo das suas alegações, recordando aqui o histórico dos autos, por ser a única forma de compreender a sua tramitação e aquilatar se a sentença padece ou não, desde logo, da apontada nulidade por condenação para além do pedido. [...]

Olhando as relações jurídicas complexas e entrecruzadas que temos em presença, podemos sintetizar o caso, nos moldes assinalados pela Apelante, dizendo que efectivamente o lesado O…, foi vítima de acidente de viação, ocorrido em 16.03.2003, no qual foram intervenientes os veículos de matrícula …UD, cuja responsabilidade civil se encontrava transferida para ora Recorrente, e o veículo …CZ, alegadamente sem seguro válido.

Tendo o A. Hospital das Forças Armadas prestado cuidados médicos, internamento e tratamentos ao lesado, veio pedir o pagamento dos respetivos valores, àqueles que tinha como sendo os responsáveis para as suportar. Note-se que o podia ter feito dizendo que a Apelante e o FGA terão assumido por acordo o pagamento de 50% das mesmas, mas que a sua responsabilidade pelo pagamento seria aquela que se viesse a apurar no julgamento dos factos correspondentes à dinâmica do acidente. Porém, não o fez, e claramente deduziu um pedido conjunto, imputando a cada um dos réus a correspondente quota-parte de metade das despesas efectuadas. Por seu turno, o FGA, não contestou aquela repartição de responsabilidade, apenas trazendo à demanda a relação jurídica que lhe importava do ponto de vista do exercício do direito de sub-rogação quanto aos responsáveis civis das quantias que viesse a suportar.

Portanto, podemos concluir, com a Apelante, que em nenhum dos processos a causa de pedir foi a responsabilidade pela ocorrência do invocado acidente de viação.

Na realidade, no processo n.º 1195/08.0TVLSB, a causa de pedir é a prestação, pelo A. Hospital, de cuidados médicos, internamento e tratamentos ao lesado, sendo a realização dessas despesas que sustenta o pedido de condenação dos RR. no reembolso das mesmas, e no processo apenso, com o n.º 472/10.5TBACN, a causa de pedir é constituída pelos factos relativos à alegada regularização, por parte do ali A. FGA, de metade dos danos decorrentes do sinistro, nomeadamente ao nível da indemnização paga ao lesado a título de dano biológico e danos não patrimoniais.

Assim, quando no processo n.º 1195/08.0TVLSB, o objecto do litígio foi definido como a responsabilidade dos RR. GNB e FGA pelo pagamento ao A. Hospital das despesas hospitalares por este suportadas para tratar o lesado, esta só pode ser entendida na economia dos autos como o apuramento do montante a pagar por cada R., na proporção de metade, para cada um, daquele valor que viesse a ser apurado, porque era este que se encontrava controvertido, já que ambas as partes impugnaram parcialmente as despesas invocadas pelo Hospital como fundamento dos valores peticionados quanto a cada um dos RR. na acção principal.

Na realidade, como enfatiza a Apelante, o único pedido contra si apresentado nos autos foi o constante no ponto 1. do relatório, de a mesma ser condenada no pagamento ao A. Hospital do valor de metade do total despendido com a prestação de cuidados médicos ao lesado, nunca tendo o FGA apresentado qualquer pedido contra a ora Recorrente GNB. Daí, e concordantemente, ter sido dado como facto assente na audiência prévia referida em 8. que o FGA e a GNB, por acordo, assumiram, cada um 50% da responsabilidade, em consequência do acidente ocorrido entre os veículos de matrícula …UD e …CZ, uma vez que a tramitação processual evidencia que tal acordo não ficou sujeito a qualquer condição, nomeadamente a de vir a apurar-se diversa responsabilidade pelo sinistro. […]

Aqui chegados, basta o caminho percorrido para que se imponha a conclusão de que a Apelante não podia ter sido condenada no valor global do pedido deduzido pelo Hospital com fundamento na prestação de cuidados de saúde ao soldado que foi vítima do acidente de viação, desde logo, pela simples mas evidente razão de que foi o Autor quem limitou a responsabilidade da ré seguradora a metade (50%) do valor das despesas por si realizadas.

Ora, a respeito do vício da nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia rege actualmente o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na redacção introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, os qual integral correspondência com as previsão anteriormente constante nos artigo 668.º, n.º 1, alínea d), mantendo-se consequentemente válidas todas as considerações que já se encontravam sedimentadas a respeito da respectiva interpretação.

Dispõe o referido o preceito legal citado que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Esta causa de nulidade da sentença consiste, portanto, na omissão de pronúncia, sobre as questões que o tribunal devia conhecer; ou na pronúncia indevida, quanto a questões de que não podia tomar conhecimento [...], sendo este segmento do preceito o único que ora importa considerar..

É entendimento pacífico que «[n]ão podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art. 608-2), é nula a sentença em que o faça.
É também nula a sentença que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância (…), não observe os limites impostos pelo art. 609-1, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido» [Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 737.].

Revertendo este entendimento à situação em presença, atenta a causa de pedir invocada pelo Hospital autor em fundamento da condenação da companhia de seguros ora Recorrente, e a conformação do pedido contra si formulado, cujos termos foram reiterados aquando da alteração do pedido formulado, tanto na vertente da sua redução como da respectiva ampliação, sempre na proporção de 50% do valor peticionado, tendo-se apurado que o Hospital Autor, suportou a quantia global de 364.907,81€ (facto 45) com os cuidados de saúde prestados ao soldado vítima do acidente de viação, que a GNB já pagou a quantia de 22.318,89€ e o FGA não efectuou qualquer pagamento (factos 46 e 47), urge concluir que a sentença que condenou a Apelante a pagar ao autor a quantia de 342.588,91€, é, sem dúvida, uma decisão que «condena em quantidade superior ao pedido» formulado pelo Autor contra esta seguradora, violando consequentemente o preceituado no artigo 609.º, n.º 1, do CPC, quanto aos limites da condenação.

Isto posto, não pode deixar de concluir-se que a sentença recorrida enferma de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Efectivamente, o entendimento que era pacífico no domínio do artigo 264.º do anterior CPC, não foi postergado pelo actual artigo 5.º do CPC o qual, pese embora atribua ao juiz um poder mais interventor, não significa, «porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório, uma vez que continua a caber às partes a definição do objecto do litígio, através da dedução das suas pretensões e da alegação dos factos que integram a causa de pedir ou suportam a defesa» [Cfr. Ac. STJ de 10-09-2015, Revista n.º 819/11.7TBPRD.P1.S1 - 2.ª Secção].

Consequentemente, tendo o Hospital Autor restringido a pretensão deduzida contra a Ré Seguradora ao pagamento de metade das despesas comprovadamente por si suportadas, estava vedado ao tribunal recorrido condená-lo em quantia superior ao que se apurasse ser aquela quota-parte da sua responsabilidade pelo pedido deduzido. Igualmente lhe estava vedado fazer repercutir na condenação desta Ré a determinação da percentagem da responsabilidade do seu segurado pela ocorrência do acidente de viação, já que tal conhecimento não decorreu da alegação factual efectuada pelo Autor, na qual fundou a responsabilidade desta Ré, não respeitando à relação material controvertida entre ambos estabelecida, mas sim, àqueloutra que decorreu da defesa apresentada pela Ré Fidelidade no âmbito da pretensão contra si deduzida pelo FGA. […]"

[MTS]