"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/06/2020

Jurisprudência 2020 (16)


Hipoteca; venda executiva;
contrato de arrendamento; caducidade*


1. O sumário de RE 30/1/2020 (38/19.4T8EVR.E1) é o seguinte:

Os contratos de arrendamento e de subarrendamento que tenham por objeto imóveis hipotecados caducam por força da venda judicial efetuada no âmbito do processo executivo, por força do disposto no art.º 824.º, n.º 2, do Código Civil, quando hajam sido celebrados em momento posterior ao registo da hipoteca.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A única questão que cumpre decidir é a seguinte: saber se os contratos de arrendamento e subarrendamento, respetivamente, que tiveram por objeto os dois imóveis hipotecados melhor identificados nos autos, caducaram, ou não, por força da venda judicial efetuada no âmbito do processo executivo, em conformidade com o regime previsto no art. 824.º, n.º 2, do Código Civil.

Como nos dão conta o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30.05.2019, processo n.º 701/16.1T8PTG-C.E1 (relator Rui Machado Moura) e o acórdão do STJ de 18.10.2018, processo n.º 12/14.7TBEPS-A.G1.S2, ambos publicados em www.dgsi.pt., a questão sob análise, nos últimos anos, tem sido decidida, uniformemente pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que com a venda judicial de imóvel hipotecado que haja sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, o direito do respetivo locatário caduca nos termos do art. 824.º, n.º 2, do Código Civil.

Para além do acórdão do STJ acima mencionado, encontrámos na jurisprudência daquele Tribunal, entre outros, os seguintes acórdãos que decidiram em sentido idêntico:

- O acórdão de 09.01.2018, processo n.º 732/11.8TBPDL-A.L1S1, em cujo sumário se escreveu: «[…] III. A venda judicial, em processo executivo, de um prédio hipotecado faz caducar o seu arrendamento, não registado, mas sujeito a registo, quando celebrado, posteriormente, à constituição e registo da aludida hipoteca, ainda que, em data antecedente à do registo da penhora, em virtude de, quanto a esta última situação, na expressão “direitos reais”, constante do art. 824.º, n.º 2, do CC, se incluir, por analogia, a situação do arrendamento. IV - O locatário de prédio sujeito a registo, mas não registado, não é titular de um direito oponível e prevalente sobre a coisa penhorada na execução, com hipoteca constituída e registada, em data anterior à do contrato de locação, a favor do adquirente do bem em venda executiva, ou seja, de um direito que, nos termos do estipulado pelo art. 824.º, subsista após esta, não sendo aplicável ao caso a previsão do art. 1057.º, ambos do CC, transmitindo-se o bem adquirido, em venda judicial, pelo credor com garantia real, seu novo proprietário, livre e desembaraçado, do ónus locatício»;

- O acórdão 16.09.2014, processo n.º 351/09.9TVLSB.L1.S1, no qual se escreveu: «A primeira e principal questão reporta-se, como definido na decisão que admitiu o respetivo recurso e a enuncia o Recorrente, ao destino do contrato de arrendamento celebrado posteriormente ao registo de hipoteca, e antes da penhora, perante a venda executiva do imóvel objeto desse contrato, isto é, se contrato de locação caduca ou se se mantém oponível ao adquirente do imóvel.

Como nos autos se encontra abundantemente refletido, quer por referência das Partes quer por via de citação nas decisões proferidas pelas Instâncias, a questão proposta não é inteiramente líquida, tanto na doutrina como na jurisprudência.

No Supremo Tribunal de Justiça, as decisões mais recentes (relativas, pelo menos, aos últimos 5-6 anos) vão, ao que se conhece, na generalidade no sentido de que a venda judicial do imóvel hipotecado faz caducar o contrato de arrendamento que tenha por objeto esse imóvel, por dever considerar-se abrangido pela norma do n.º 2 do art. 824º do Código Civil.

Esta Conferência posiciona-se também nesse entendimento (não sem que se diga que o ora relator já subscreveu, enquanto adjunto, diferente posição no acórdão de 27/3/2007, posição que, entretanto, reconsiderou tendo em atenção, que, não obstante manter o entendimento de que o arrendamento não assume a natureza de um direito real, a tese que então se acolheu, porventura mais fiel aos princípios e conceitos convocáveis, não é a que melhor responde às exigências de justiça nem aos interesses teleologicamente detetáveis no referido n.º 2 do art. 824º, cujo espírito ou ratio é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer encargos (cfr., também agora neste sentido, P. ROMANO MARTINEZ, “Da Cessação do Contrato”, 321). Assim sendo, ter-se-á por afastada a taxatividade das causas de caducidade do contrato de arrendamento com assento no art. 1051º C. Civil, considerando que o mesmo também pode caducar, entre outras causas – atente-se, v.g., no caso de impossibilidade da prestação (art. 795º CC), como apreciado no ac. desta Conferência de 08/5/2013 – proc. 9304/09.6YYPRT-A.P1.S1) -, por via da aplicação do art. 824º-2 citado, bem como a regra emptio non tollit locatum, que o art. 1057º, também do C. Civil, acolhe ao prever, ipso jure, a transmissão da posição jurídica do locador para o novo adquirente quando se transmita o bem com base no qual foi celebrado o contrato, inaplicável em caso de venda executiva […]»;

- O sumário do acórdão de 18.10.2018, processo n.º 12/14.7TBEPS-A.G1.S2, tem o seguinte teor: «I. O contrato de arrendamento, na medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do respetivo proprietário devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, deve estar sujeito ao regime previsto no art. 824º, nº 2 do Código Civil, cujo espírito ou ratio é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer encargos. II. Não se trata, porém, de estender, por via analógica, o efeito extintivo previsto neste art. 824º, nº 2 a direitos de natureza obrigacional, mas apenas de considerar aplicável esse efeito a direitos não reais relativamente aos quais, pela sua especificidade possam proceder as mesmas razões justificativas da extinção. III. A interpretação dada ao nº 2 do art. 824º do Código Civil, no sentido de que o mesmo abrange também o contrato de arrendamento, é a que melhor responde às exigências de justiça e aos interesses teleológicos nele subjacentes, na medida em que assegura um equilíbrio adequado e proporcional entre os vários interesses em jogo: o interesse do proprietário do bem hipotecado, em celebrar o contrato de arrendamento; o interesse do arrendatário, que sabe ou pode saber pela publicidade registral que o bem objeto do arrendamento está sujeito à execução e o interesse do credor hipotecário, que não vê o bem hipotecado sofrer desvalorização em consequência do arrendamento. IV. A relação locatícia estabelecida após constituição de hipoteca sobre o imóvel objeto do contrato, por aplicação do art.824º, nº 2, do Código Civil, caduca automaticamente com a venda do imóvel arrendado no processo executivo, inviabilizando, por isso, a dedução dos embargos por parte do arrendatário, de harmonia com o disposto no art. 344º, nº 2, 2ª parte, do CPC»;

- O sumário do acórdão de 22.10.2015, processo n.º 896/07.5TBSTS.P1.S1 refere: «IV. Quer se considere a dimensão real do arrendamento quer tão só e apenas a dimensão obrigacional do contrato que o substancia, o que importa é definir se o ónus ocorreu antes ou depois do arresto, penhora ou garantia com os quais o credor/exequente se protegeu. V - O STJ, preocupado sobretudo com a dimensão real do arrendamento, vem decidindo uniformemente que com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca caduca o direito do respetivo locatário, nos termos do n.º 2 do art. 824.º do CC»;

- No acórdão de 09.07.2015, processo n.º 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1 decidiu-se também que com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respetivo locatário, nos termos do n.º 2 do art. 824.º do CC.

Na doutrina, o mesmo entendimento é defendido, entre outros, por Rui Pinto e pelo prof. Oliveira Ascensão.

Refere o primeiro dos autores mencionados: «[…] na verdade, o arrendamento que seja posterior à garantia prioritária não pode deixar de caducar, seja qual for a natureza jurídica que se lhe possa atribuir. É que se for um direito real menor de gozo não poderia deixar de ser assim, como já se viu; se for um direito pessoal de gozo, por maioria de razão, caducará por extinção do objeto da prestação.

E efetivamente, como escreveu Vaz Serra, “não há razão para o submeter a regime diferente do aplicável aos direitos reais”. Na verdade, não se pode deixar de considerar que a regra do art. 1057.º CC não é absoluta e conhece os mesmos limites para tutela dos credores e adquirentes – terceiros à relação locatícia – que os próprios direitos reais sofreriam. In casu, a caducidade ex vi art. 824.º, n.º 2, CC.

Em consequência, no plano processual o preceito substantivo do art. 1057.º CC não pode, senão, implicar que se dê à locação um tratamento semelhante ao de um direito real de gozo menor em sede de relação com a venda executiva. Em termos simples: a locação não pode ter um regime mais favorável, nem mais desfavorável que um direito real de gozo menor. Por isto, se a locação do bem penhorado for anterior à garantia prioritária, o art. 1057.º CC dita a permanência da locação mesmo após a venda executiva. O adquirente passará, então, a ser o novo locatário, e a locação será um ónus do prédio.

Já se a locação for posterior à garantia prioritária, caducará ex vi art. artigo 824.º, n.º 2, CC.» [A Ação Executiva, 2019, AAFDL Editora, pp. 906-907]

Oliveira Ascensão, a partir do teor e ratio dos arts. 1057.º, 695.º e 824.º, n.º 2, todos do Código Civil, conclui que o arrendamento está contido no art. 824.º, n.º 2, do Código Civil. Escreveu aquele ilustre professor: «A lei admite que os bens hipotecados sejam arrendados, permitindo que o hipotecador deles tire proveito, mas só o admite porque o arrendamento caduca nos casos de venda judicial. A isso leva a teleologia do art. 695.º, que ficaria frustrada se o arrendamento não ficasse compreendido entre as onerações que se preveem. […]. O art. 824.º, n.º 2, com a sua referência dos direitos reais quer abranger aquelas mesmas onerações que atingem a posição real adquirida pelo credor hipotecário. Os direitos que aqui se referem são necessariamente direitos que seguem a coisa, de maneira a serem oponíveis ao adquirente dos bens. São necessariamente direitos inerentes. Sejam, ou não, direitos reais, só os direitos inerentes são oponíveis ao adquirente dos bens em processo executivo.

[…] o arrendamento é um direito inerente e isto sempre abstraindo da sua qualificação como direito real. Pois assim se traduz a sua característica de gravar quem quer seja o titular do gozo do prédio. Se a lei quer que os bens passem livres dos direitos que os oneram, assegurando o valor dos bens em processo executivo, seria incompreensível que deixasse subsistir o arrendamento […]. O art. 1057.º do CC tornou o arrendamento um direito inerente, seja qual for a precisa estrutura jurídica do fenómeno que desenhe. Em consequência, não pode deixar de ficar submetido ao art. 824.º/2» [Locação de bens dados em garantia-natureza jurídica da locação, ROA, ano 45, volume II, Setembro].

A orientação supra referida é aquela que melhor conjuga os interesses em jogo e respeita a ratio dos arts. 824.º, n.º 2 e 695.º, ambos do Código Civil que, por conseguinte, perfilhamos. Com efeito, ela permite, por um lado, que o proprietário do bem continue a retirar vantagens económicas do mesmo apesar de este ser objeto de garantia, e, por outro, não diminui o valor do bem no caso da sua venda em processo executivo porque a oneração em que se traduz o arrendamento não é oponível ao credor hipotecário. Ademais, sendo a hipoteca objeto de registo, também o arrendatário tem a possibilidade de tomar conhecimento de que o bem que pretende tomar de arrendamento está onerado com hipoteca e de acautelar, em conformidade, os seus interesses.

Retornando ao caso em apreço, resulta dos autos que a hipoteca que incide sobre ambos os prédios em causa nos autos foi registada em 30.05.2008 (cfr. documento n.º 5 anexo à contestação) e que os contratos de arrendamento e de subarrendamento foram outorgados, respetivamente, em 02.10.2012 e 28.06.2013, logo em momentos posteriores ao do registo da hipoteca. Por conseguinte, por força do art. 824.º, n.º 2, do Código Civil aquelas relações locatícias caducaram com a venda dos referidos imóveis no processo de execução que correu os seus termos sob o n.º 122/13.8TBARL, no Juízo de Execução de Montemor-o-Novo.

*3. [Comentário] A RE decidiu bem. O acórdão fornece uma boa panorâmica sobre a jurisprudência e a doutrina relativa ao problema.

MTS