"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/06/2020

Jurisprudência 2020 (20)


Pluralidade subjectiva subsidiária;
ineptidão parcial da petição inicial


I. O sumário de RL 4/2/2020 (13977/17.8T8LSB.L1-7) é o seguinte:

1. A pluralidade subjectiva subsidiária prevista no art. 39º do CPC tem de ser alegada na petição inicial, concretizando-se os factos que se subsumem à dúvida fundamentada e finalizando com o pedido formulado de acordo com essa dúvida;

2. A mera apresentação de contestação não basta para fundamentar a aplicação do art. 186º, nº 3 do CPC, sendo também necessário que se perceba que o R. interpretou convenientemente a petição inicial e a pretensão do A.;

3. Quando o pedido deduzido não seja inteligível existe uma situação de ineptidão da petição inicial por falta de pedido, nos termos do art. 186º, n.º 2, al. a), 1 ª parte, do CPC, a qual não é suprível através do convite ao aperfeiçoamento previsto no art. 590º do CPC.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Pretende a apelante a procedência do presente recurso, defendendo que a ineptidão da petição inicial é uma nulidade sanável, nos termos do disposto no art. 193º, 3 do CPC, ocorrendo a respectiva sanação com a prática de actos processuais da R. ou das RR., a saber, a apresentação de contestação; arguição da ineptidão; verificação que a R., ou as RR., interpretaram convenientemente a PI e audição do A., condições estas que, cumulativamente, se verificam nos presentes autos.

Mais defende que, mesmo que não se entendesse assim, a nulidade em causa era sanável, devendo existir um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

Nos presentes autos, a A. peticiona a anulação de negócio celebrado entre o A. e R. por erro na base do negócio, condenando-se o R. na devolução de € 80 000,00, e juros, ou, se assim não se entender, a pagar ao A. uma indemnização no valor de € 80 000,00, acrescido de juros, com fundamento em incumprimento dos deveres a que o R. estava obrigado, conforme os arts. 304.º, 304.º-A, 311.º, 312.º, 312.º-B, 312-C a 312.º-G, 314.º, ss, todos do CVM; ou, caso assim não se entenda, que se resolva o contrato celebrado por alteração superveniente das circunstâncias, condenando-se o R. à devolução de € 80 000,00, acrescido de juros.

Entendeu a sentença recorrida que “se a pretensão era deduzir pedido diverso ou o mesmo pedido contra R. subsidiário, sempre seria dever da Autora identificar qual o R. a título principal e qual o subsidiário, o que não é feito em sede de petição inicial.

Considerando a causa de pedir formulada pela Autora e o pedido, tem de concluir-se não ser possível saber qual dos RR é responsável pela restituição da quantia monetária peticionada, nem qual deles é responsável pelo cumprimento do contrato celebrado. 

De tudo o que se deixou exposto, há-de concluir-se que, quer o pedido, quer a causa de pedir são, afinal, ininteligíveis, o que gera a ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto no art.º 186º, nº2, al.ª a) do CPC. (…)

No caso concreto, não estamos perante uma deficiência na indicação de factos, mas antes perante uma ausência de alegação dos mesmos que compromete o conhecimento do mérito da causa.

Afigura-se que a única decisão processualmente correcta é a de concluir pela ineptidão da petição inicial (sem convite ao aperfeiçoamento). 

Em face do exposto, o Tribunal julga procedente a excepção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial e, consequentemente, absolvem-se os RR. da instância. (arts.186º, nº2, al.ª a), 278º, nº1, al.ª b), 576º, nº2 e 577º, al.ª b) do CPC)”. [...]

Tal como referido na sentença recorrida, a A. propôs a presente acção contra dois RR., mantendo essa intenção em todo o processo e em todas as suas intervenções processuais, embora refira no início da petição inicial ter tido conhecimento da compra e venda de activos e passivos ocorrida entre os RR. e termine o seu pedido com a menção a um único R..

Nos termos do pedido principal deduzido, pretende a A. a anulação de um negócio celebrado entre A. e R. por erro na base do negócio, levando essa anulação à condenação do R. à devolução de € 80 000,00 e juros, mais resultando da petição inicial que este negócio é a subscrição das obrigações com a descrição PT 2016 6,25%, alegando a A. no art. 16º que foi o R. o responsável pela intermediação da subscrição dos indicados títulos.

Na tese da A., explanada na petição inicial, os factos por si alegados levam à responsabilização do R. por violação dos seus deveres de intermediação na sua actividade financeira, assim levando à devolução do dinheiro por si investido no negócio de subscrição de obrigações em causa nos autos.

Todavia, não está alegada a existência de um qualquer contrato celebrado com o R. Bankinter no âmbito da intermediação financeira.

Por esse motivo, a sentença recorrida concluiu pela impossibilidade de determinar a quem se dirigem os pedidos, o que redunda numa situação de inintigibilidade do pedido.

Da leitura da petição inicial resulta que, de facto, assim é, na medida em que, nesta peça processual não resulta, com clareza, contra qual dos RR. é dirigida a pretensão de ressarcimento do crédito invocado, nomeadamente por se tratarem de duas entidades bancárias distintas, cuja responsabilização terá de ser claramente diferenciada.

Refira-se que não tem aplicação ao caso dos autos o disposto no art. 39º do CPC, tal como parece defender a A. nas suas alegações (embora tal não tenha sido vertido de forma cabal para as conclusões), por não estar em causa qualquer dúvida sobre o sujeito da relação material controvertida.

Nos termos do art. 39º do CPC há lugar à dedução de um mesmo pedido por autor ou contra réu diverso do que aquele que demanda ou é demandado a título principal, nos casos em que exista dúvida fundada sobre os sujeitos que são titulares da relação material controvertida.

Como se refere no Ac. TRE, de 07-06-2018, proc. 2279/15.4T8EVR-A.E1, relator Tomé de Carvalho, “haverá litisconsórcio subsidiário quando o mesmo pedido é deduzido por ou contra uma parte a título principal e por ou contra outra a título subsidiário. Na opinião de Remédio Marques «trata-se de situações em que, por um lado, (1) o credor da pretensão ignora, sem culpa, a que título ou em que qualidade o devedor interveio no acto ou no facto que serve de causa de pedir; e, por outro, de eventualidades em que o (2) o credor da pretensão ignora se é titular activo dela ou se é o único titular activo» (…) A este respeito, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre afiançam que «na base do litisconsórcio subsidiário pode estar a necessidade de apurar quem disparou o tiro ou atropelou o autor (dúvida sobre factos, se o autor ou o réu principal interveio em certo contrato em nome próprio ou em nome alheio (dúvida sobre factos ou sobre a interpretação da norma aplicável) ou se a cessão de crédito do autor principal em data em que ainda não se constituíra» ”.

Diz a apelante, que “pretendeu deduzir, a título principal, os pedidos contra a R. Barclays, por ser aquela que terá praticado os atos que sustentam o pedido. Pretendendo deduzir, a título subsidiário, os pedidos contra a R. C, atenta a dúvida fundamentada vertida no art. 4º da PI, e que é um requisito legal, conforme previsão no art. 39º CPC”.

Ora, não tendo a apelante alegado a existência da pluralidade subjectiva subsidiária prevista no art. 39º do CPC, nem tendo invocado as razões dessa pluralidade e os fundamentos de responsabilização de ambos os RR., não s epode concluir nesse sentido.

Por outro lado, a dúvida fundamentada não resulta dos factos alegados, mas sim da alegação efectuada pela A., que refere o contrato de compra e venda de activos e passivos ocorrida entre ambos os RR., situando-o no tempo, sem que avance quaisquer factos relativos a essa dúvida ou a reflicta no pedido deduzindo a sua pretensão contra ambos os RR. ao abrigo do disposto no art. 39º do CPC.

Acresce que não pode a apelante recorrer a este mecanismo processual apenas em sede de recurso, sem possibilitar a discussão sobre a sua admissibilidade processual, nem sobre a existência dos seus pressupostos no caso concreto.

Considerando que a causa de pedir é, juntamente com o pedido, um dos elementos fundamentais da petição inicial, nos termos do art. 552º, nº 1, als. d) e e) do CPC, não tendo a A. alegado os factos constitutivos essenciais do direito por si alegado, formulando de forma clara a sua pretensão, verifica-se uma situação de ininteligibilidade da causa de pedir, tal como decidido em primeira instância.

Aqui chegados, e atendendo às questões a decidir tal como as mesmas resultam das conclusões formulados, importa averiguar se ocorreu a sanação desta nulidade, nos termos alegados pela A., e se, não tendo ocorrido, deveria ou não ter existido um convite do tribunal com vista ao aperfeiçoamento da petição inicial.

No que se refere à sanação da nulidade invocada, defende a A. que as RR. interpretaram convenientemente a petição inicial, tendo contestado de forma abundante, alegando o referido vício.

Nos termos do art. 186º, nº 3 do CPC, “Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

Há que relembrar que a A., apesar de notificada para se pronunciar sobre as excepções deduzidas, nada fez ou requereu, não permitindo ao tribunal perceber o alcance do pedido e dissipar as dúvidas dele resultantes, em particular quanto à responsabilização do R. C e a aplicação aos autos do disposto no art. 39º do CPC.

Com efeito, e indo de encontro ao já antes decidido no processo supra citado, “não basta a existência de uma contestação, ainda que apresentando factos ou impugnando a versão dada pelo A., ou até requerendo a intervenção de terceiros, para se concluir pela sanação pretendida. Ao invés, ouvido o A. e analisada a petição inicial e a resposta à contestação subsequente é que se poderá apurar se o R. percebeu bem ou não a petição inicial e, consequentemente, concluir pela sanação do aludido vício”.

Donde, sendo impossível concluir que os RR. apreenderam tudo aquilo que vem espelhado na contestação, não se mostra possível recorrer ao citado art. 186º, nº 3, e consequentemente, dizer que o vício em causa se mostra sanado, nomeadamente quanto ao R. C.

No que diz respeito à prolação de despacho de aperfeiçoamento, ao abrigo do disposto no art. 590º, nº 4 do CPC, importa referir que a decisão sobre tal questão depende do vício existente. [...]

Relativamente a esta questão, defendeu o tribunal recorrido a impossibilidade de convidar a A. a suprir as falhas apontadas.

Haverá, antes de mais, que salientar que o raciocínio do tribunal recorrido é perfeitamente exacto para situações de total inexistência de factos.

Tal como se pode ler no Ac. TRL de 07-11-2019, relator Manuel Rodrigues, proc. 14013/17.0T8LSB.L1, no qual está também em causa uma situação como a dos autos, e no qual se decidiu que a petição inicial é inepta apenas quanto ao R. C, que assim deverá ser absolvido da instância, prosseguindo os autos quanto ao R. B, “O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essências e estruturantes da causa de pedir.

Tal convite, destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada.

As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC)”. [...]

Entendendo, como se explanou, que está em causa a ausência total de indicação de pedido quanto ao R. B, ter-se-á de concluir pela impossibilidade de convite ao aperfeiçoamento, nos termos expostos.

Porém, verificando-se que essa deficiência não existe quanto ao R. Barclays, ter-se-á de determinar o prosseguimento dos autos, já que não está em causa a ininteligibilidade do pedido contra este deduzido, o qual é claro, no contexto dos factos alegados, não cumprindo aqui analisar a qualificação jurídica efectuada.

Do que se vem de expor, resulta que a presente apelação terá de ser julgada parcialmente procedente, determinando-se que os autos prossigam quanto ao R. Barclays, com a análise das excepções deduzidas e eventual suprimento, e estabilização da instância relativamente aos pedidos de intervenção deduzidos, mas mantendo-se a decisão em causa no que tange ao R. C, assim não se tornando necessário apreciar o pedido deste nos termos do art. 665º, nº 2 do CPC."

[MTS]