"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/06/2020

Jurisprudência 2020 (4)


Escritura de justificação notarial;
valor probatório


1. O sumário de RL 23/1/2020 (6192/19.8T8LRS.L1-8) é o seguinte;

I. A realização da escritura de justificação notarial para reatamento do trato sucessivo integra o exercício de um direito do interessado, não consubstanciando a necessidade da acção de impugnação da escritura qualquer lesão grave e irreparável do direito do titular inscrito.

II. A notificação feita pelo Notário, nos termos do art. 99.º do Código do Notariado, destina-se apenas a dar conhecimento ao titular inscrito da pretensão do interessado em realizar a escritura de justificação, não se verificando qualquer lacuna na lei que deva ser suprida através do recurso a uma providência cautelar antecipatória para impedir a realização da escritura.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Conforme resulta da matéria de facto fixada na sentença recorrida, o apelante tem a seu favor inscrita a aquisição, por compra, do prédio relativamente ao qual o B pretende outorgar escritura de justificação notarial, com base em usucapião, para reatamento do trato sucessivo, tendo para o efeito declarado que o recebeu por doação meramente verbal há mais de vinte anos feita pelo titular inscrito. O apelante beneficia da presunção derivada do registo, nos termos do art. 7.º do Código do Registo Predial, conforme expresso na sentença, e o Partido Comunista pretende exercer o seu direito de fazer uma escritura de justificação notarial para reatamento do trato sucessivo, com base em usucapião.

O apelante requereu a condenação do Partido Comunista a não realizar a escritura invocando que a outorga da escritura de justificação incidente sobre o prédio conduz ao respectivo registo e averbamento de novo proprietário afastando o predialmente inscrito, sustentando que a única possibilidade de tutela do seu direito é impedir a outorga de um tal instrumento.

Sem razão, no entanto.

A escritura de justificação notarial, enquanto um dos modos necessários para o estabelecimento ou reatamento do trato sucessivo no registo predial, encontra acolhimento legal no art. 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, bem como nos arts. 89.º a 91.º, 96.º, n.º 1, e 101.º do Código do Notariado.

Como refere José Alberto Vieira (“Registo de usucapião titulada por escritura de justificação notarial e presunção de titularidade do direito – Anotação ao AUJ n.º 1/2008, de 04-12-2007”, Cadernos de Direito Privado, n.º 24, Outubro/Dezembro de 2008, págs. 21 a 42) “quando o interessado pretende promover o registo de qualquer um destes factos (v.g., usucapião) está obrigado a providenciar um título escrito para ele (art. 43.º, n.º 1, do CRP). Ora, dentro dos meios dispostos pela ordem jurídica portuguesa para este efeito, das três uma: Recorre a juízo para obter a declaração judicial do facto a registar; Promove a celebração de uma escritura pública de justificação notarial; Instaura processo de justificação registal, nos termos do Código do Registo Predial”.

Concretamente (op. cit., pág. 37) a escritura de justificação notarial “tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão”. A justificação notarial associa-se, assim, à dinâmica do registo predial, mormente à prova documental do facto jurídico a registar, imprescindível para o registo (art. 43.º, n.º 1, do CRP).

Nos termos do disposto no art. 99.º do Código do Notariado, no caso de reatamento do trato sucessivo ou de estabelecimento de novo trato, quando se verificar a falta de título em que tenha intervindo o titular inscrito, a escritura não pode ser lavrada sem a sua prévia notificação, efectuada pelo notário, a requerimento, escrito ou verbal, do interessado na escritura (n. º1), devendo, quando o pedido seja formulado verbalmente, ser reduzido a auto (n. º2). A notificação não admite qualquer oposição (n.º 8), devendo constar da escritura a menção de que foi efectuada (n.º10).

Sustenta o apelante que, não podendo deduzir oposição no procedimento de justificação notarial, o não decretamento da providência conduzirá à outorga da pretendida escritura de justificação e, consequentemente, à remoção registal da propriedade correctamente declarada na sentença.

Ora, da realização da escritura de justificação notarial, que consiste em declarações feitas pelo interessado perante o Notário (arts. 89.º a 91.º do Código do Notariado), não decorre automaticamente qualquer alteração registal. E o facto de a notificação do titular inscrito prevista no art. 99.º do Código do Notariado não admitir oposição não significa que o facto justificado não possa ser impugnado, como resulta expressamente do art. 101.º do mesmo Código sob a epígrafe Impugnação:

1 - Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da acção.

2 - Só podem ser passadas certidões de escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o extracto for publicado, se dentro desse prazo não for recebida comunicação da pendência da impugnação.

3 - O disposto no número anterior não prejudica a passagem de certidão para efeito de impugnação, menção que da mesma deve constar expressamente.

4 - Em caso de impugnação, as certidões só podem ser passadas depois de averbada a decisão definitiva da acção.

5 - No caso de justificação simultânea, nos termos do artigo 93.º, não podem ser extraídas quaisquer certidões da escritura sem observância do prazo e das condições referidos nos números anteriores.

A notificação feita pelo Notário destina-se apenas a dar conhecimento ao titular inscrito da pretensão do interessado em realizar a escritura de justificação, não se verificando nenhuma lacuna na lei que deva ser suprida através do recurso a uma providência cautelar antecipatória para impedir a realização da escritura. Realizada a escritura é publicado um extracto do seu conteúdo, iniciando-se o prazo para a sua impugnação em acção judicial. A lei prevê, assim, o mecanismo de tutela do direito do titular inscrito no registo.

A escritura pública de justificação constitui um documento autêntico que faz prova plena do facto jurídico que titula (artºs 363.º, n.º 2, e 371.º, n.º 1 do Código Civil) sendo passível, como qualquer outro acto jurídico, de ser impugnada judicialmente por parte de quem tenha legitimidade para tal. A sua força probatória plena só abrange os factos que nela se referem como praticados pela autoridade ou oficial público, assim como os factos que nesse documento são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, não fazendo prova plena das declarações prestadas pelos outorgantes, as quais são livremente impugnáveis pela parte contrária, cabendo então aos respectivos declarantes o ónus da sua prova (artº 371º do Código Civil). Pelo AUJ n.º 1/2008, de 4.12.2007, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63, de 31.03.2008, o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência no sentido de que: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.º 1 do CRP e 89.º e 101.º do CN, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do art. 7.º do CRP”. Esta jurisprudência permanece actual e tem sido acompanhada em vários Acórdãos do STJ, designadamente nos de 27.01.2010, 7.04.2011, 13.09.2011 e 19.02.2013 – cfr. acórdão do TRG de 7.06.2018.

*3. [Comentário] A RL decidiu bem.

Aproveita-se para chamar a atenção para uma confusão frequente: no ordenamento jurídico português, as providências cautelares não se destinam a obter uma tutela de urgência, mas antes a acautelar o efeito útil da tutela definitiva (art. 2.º, n.º 2, CPC). Não se vendo que a tutela definitiva da propriedade do recorrente se torne inútil no momento em que venha (eventualmente) a ser obtida, não é realmente justificada, neste momento, nenhuma providência cautelar.

MTS