"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/06/2020

Jurisprudência 2020 (13)


Segurança social; quotizações;
competência material*


1. O sumário de RC 21/1/2020 (1231/18.2T8GRD-A.C1) é o seguinte:

A ação pela qual a entidade patronal pretende obter do trabalhador o reembolso do que pagou à Segurança Social a título de quotizações que eram responsabilidade daquele, sem que tenha procedido ao respetivo desconto na respetiva remuneração, é da competência dos tribunais comuns.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O juiz a quo declarou a competência dos tribunais comuns com fundamento em que não nos encontramos perante uma relação entre a entidade empregadora e a Segurança Social, em que se discuta o dever legal de pagar ou qualquer pedido de reconhecimento perante a administração fiscal, mas perante um pedido de indemnização formulado contra o trabalhador formulado com fundamento numa contribuição por si feita à Segurança Social e que em parte seria responsabilidade do trabalhador.

A Ré Apelante, ignorando a fundamentação em que se baseou a decisão recorrida, vem dela recorrer argumentando que o tribunal dos conflitos vem decidindo há muito que é da competência dos tribunais tributários conhecer da ação intentada pelo trabalhador contra a entidade patronal, pedindo a condenação a proceder aos pagamentos contributivos considerados em falta.

Como foi sustentado na decisão recorrida, não nos encontramos perante uma ação pela qual o trabalhador pede a condenação da entidade patronal a cumprir a sua obrigação contributiva junto da segurança social ou sequer pela qual pede a condenação da entidade patronal ao pagamento pelos danos por si sofridos na sequencia do incumprimento de tal obrigação – ação essa para a qual teriam competência os tribunais administrativos e fiscais.

Na presente ação, a entidade patronal, alegando ter procedido ao pagamento das quotizações para a Segurança Social, na íntegra – ou seja, não só a parte que lhe competia, a si, diretamente, mas também a parte que competia ao trabalhador e que lhe devia ter descontado no respetivo salário –, pretende com a presente ação a condenação da Ré, trabalhadora, no reembolso das quantias por si já pagas, na quota-parte em que eram da responsabilidade da Ré.

A Ré fundamentou a invocação da exceção de incompetência material e a atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais, no artigo 4º e 49º, nº 1, al. c), do ETAF, por versar “sobre a relação jurídica contributiva e apela à interpretação e aplicação de normas de natureza tributária”.

Sendo residual a competência atribuída aos tribunais judiciais – tendo competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art. 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e art. 66º do CPC) – averiguemos se existe alguma norma que atribua a competência para julgar a presente ação aos tribunais administrativos.

Embora a Ré não invoque expressamente em qual das situações previstas nas várias alíneas do nº 1 ou no 2 do artigo 4º do ETAF, faz assentar a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais deduzimos que se queira referir à competência definida pela al. o) do seu nº 1, segundo a qual “1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.”

O pagamento a que a autora foi obrigada a proceder à segurança social e cujo reembolso parcial aqui pretende obter do trabalhador, encontra o seu fundamento legal no artigo 56º, nº 1 da Lei de Bases da Segurança Social (aprovada pela Lei nº 4/2007, de 16-01), segundo o qual “os beneficiários e, no caso de exercício da atividade profissional subordinada, as respetivas entidades empregadoras, são obrigadas a contribuir para os regimes da segurança social “, dispondo ainda o nº 1 do artigo 59º que “as entidades empregadoras são responsáveis pelo pagamento das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, devendo para o efeito proceder, no momento do pagamento das remunerações à retenção na fonte dos valores correspondentes.”

Por sua vez, dispõe ainda a tal respeito o artigo 10º, nº 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social (aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16-09):

“A relação jurídica contributiva consubstancia-se no vínculo de natureza obrigacional que liga ao sistema previdencial:

a) os trabalhadores e as respetivas atividades empregadoras;

b) Os trabalhadores independentes e quando aplicável as pessoas coletivas e as pessoas singulares com atividade empresarial que com eles contratam;

c) Os beneficiários do regime de seguro social voluntário”.

E segundo o artigo 39º de tal código, respeitante ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, “as entidades empregadoras, para efeitos de segurança social, são consideradas entidades contribuintes”, sendo estas entidades as responsáveis pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, descontando nas remunerações dos trabalhadores ao seu serviço o valor das quotizações por estes devidas e remetendo este valor, juntamente com o da própria contribuição, à instituição da segurança social competentes (artigo 42º, ns. 1 e 2).

Como se afirma no Acórdão desta relação de 3 de dezembro de 2019 [...], face ao disposto nas referidas normas, não há dúvida de que a relação jurídica que se estabelece entre os trabalhadores e respetivas entidades patronais, por um lado, e o sistema providencial da segurança social, por outro lado, tendo por objeto o pagamento das contribuições e quotizações devidas, é uma relação contributiva.

E, no caso do regime dos trabalhadores por conta de outrem, essa relação contributiva estabelece-se diretamente entre o sistema providencial da segurança social e a entidade empregadora, sendo esta a entidade contribuinte e a única responsável pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço.

É na sequência de tal regime que a jurisprudência vem atribuindo aos tribunais administrativos e fiscais a competência para conhecer da ação intentada pelo trabalhador contra a entidade patronal, pedindo a condenação desta a proceder aos pagamentos contributivos em falta [...].

Contudo, não [é] essa responsabilidade contributiva da entidade patronal que se encontra aqui em discussão – os montantes em dívida à Segurança Social já terão sido pagos na íntegra, quer a parte que lhe competia, quer a parte que competia ao trabalhador – pela entidade patronal, em cumprimento do citado artigo 42º. O que a autora alega é que, tendo procedido à entrega das quantias correspondentes às quotizações dos trabalhadores sem que tivesse possibilidade de proceder ao respetivo desconto na remuneração do trabalhador, terá direito ao respetivo reembolso por parte do trabalhador.

E, satisfeita a obrigação contributiva perante a Segurança Social, a jurisdição administrativa e fiscal é alheia à relação que se estabelece entre a entidade patronal e o respetivo trabalhador e o acerto de contas entre ambos que haja de haver lugar.

É certo que a apreciação da pretensão formulada pela entidade patronal passa pela aplicação de normas respeitantes ao sistema de segurança social – nomeadamente para averiguar quais os montantes que se encontrariam a cargo do trabalhador. Contudo, a necessidade de aplicação de normas respeitantes ao direito administrativo ou fiscal, não é critério bastante para a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais, sendo ainda necessário que envolva uma relação administrativa ou fiscal, o que não é o caso."

*3. [Comentário] Não se tem nenhuma objecção ao decidido pela RC, mas aproveita-se a oportunidade para chamar a atenção para um aspecto relativo à competência material.

Segundo se percebe, a acção foi proposta no tribunal cível (da Comarca da Guarda), e não no juízo de trabalho (que também existe nessa Comarca). Nada se tem contra esta solução, mas importa referir que o recente Ac. RE 19/12/2019 (435/19.5T8STR-A.E1) entendeu que, nos termos do art. 126.º, n.º 1, al. c), LOSJ, compete aos tribunais de trabalho a apreciação de uma acção na qual a mulher de uma vítima de um acidente de trabalho pede uma indemnização a uma entidade seguradora. Nesta ampla óptica da competência dos tribunais de trabalho, não é claro o motivo pelo qual a presente acção também não é da competência destes tribunais, agora segundo o disposto no art. 126.º, n.º 1, al. b), LOSJ. Em conclusão: um dos acórdãos entendeu a competência dos tribunais das respectivas acções com demasiada amplitude.

MTS