"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/06/2020

Jurisprudência 2020 (18)




Competência internacional;
princípio da coincidência*


1. O sumário de RL 6/2/2020 (25.579/16.1T8LSB-A.L1-6) é o seguinte:

I–Em matéria relativa à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial coexistem, actualmente, na nossa ordem jurídica, dois regimes gerais de aferição da competência internacional: (i) o regime emanado do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e (ii) o regime interno estabelecido nos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil.

II–O regime interno de competência internacional só será aplicável se o não for o regime comunitário, que é de fonte normativa hierarquicamente superior, face ao primado do direito europeu (cf. artigos 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e 1.ª parte do art.º 59.º do CPC).

III–Nos termos do artigo 6.º, se o réu não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro.

IV–Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar uma acção proposta por um cidadão de dupla nacionalidade brasileira e italiana contra uma sociedade comercial sediada nos Estados Unidos da América, contanto que esta sociedade tenha em Portugal uma sucursal, agencia, filial, delegação ou representação, por se verificar a coincidência entre a competência internacional e a competência interna, estabelecida no artigo 62.º, alínea a), por referência ao artigo 81.º, n.º 2, 2.ª parte, ambos do CPC.

IV–A falta de notificação do autor para se pronunciar sobre sua condenação oficiosa como litigante de má-fé configura uma nulidade principal, que pode ser invocada em qualquer estado do processo, desde que não sanada, sendo cognoscível até ao trânsito em julgado da sentença – artigos 187.º, alínea a), 188.º, n.º 1, alínea a), 189.º “a contrario”, 198.º, n.º 2 e 200.º, n.º 1, do CPC (Sumário elaborado pelo Relator)

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do artigo 4.º do Regulamento n.º 1215/2012, em regra as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro, independentemente de a sua nacionalidade corresponder ou não à do Estado-Membro do domicílio. Nos termos do artigo 6.º, se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro. Daqui resulta que o Regulamento é aplicável sempre que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro, não sendo necessário que o demandado tenha a nacionalidade desse Estado-Membro ou de qualquer outro Estado-Membro.

Temos, assim, que o regulamento estabelece, como critério geral de competência, o do domicílio do réu.

Nos termos do artigo 62.º, n.º 1, do Regulamento n.º 121/2012, para se determinar se o réu tem ou não domicílio no Estado-Membro da União Europeia onde a acção foi proposta, o juiz deve aplicar a lei interna desse Estado-Membro. No tocante às sociedades, às outras pessoas colectivas ou às associações de pessoas singulares, estas consideram-se domiciliadas no lugar onde tiverem a sua sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal (art.º 63.º, n.º 1). O critério adoptado no art.º 63.º, n.º 1 do Regulamento é, aliás, coincidente, com o critério adoptado pelos artigos 159.º do Cód. Civil e pelo art.º 12.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais.

Ora, atendendo a estas regras, tem de se concluir que a Ré Google Inc. tem domicílio na Califórnia, Estados Unidos da América, por ser este, inquestionavelmente, o local da sua sede, e que não se mostra preenchido o terceiro requisito de aplicabilidade do Regulamento n.º 1215/2012.

Conclui-se, assim, que o Regulamento n.º 1215/2012 não é aqui aplicável.

Assim, não estando a acção sujeita ao regime comunitário, resta aferir da competência internacional dos Tribunais Portugueses em função das normas do Código de Processo Civil que regem sobre esta matéria.

Como decorre desde logo do art.º 59.º do CPC importa levar em conta o art.º 62.º do mesmo diploma legal que vem elencar os factores relevantes para a atribuição de competência aos tribunais portugueses.

E foi precisamente no disposto na al. a) do artigo 62º do CPC[...], que corresponde ao anterior art.º 65.º, que o Tribunal a quo se baseou para justificar o seu entendimento (e respectiva decisão) no sentido da incompetência dos tribunais portugueses.

O artigo 62.º do CPC, com o proémio «Factores de atribuição da competência internacional», dispõe:

“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a)- Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b)- Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c)- Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.


Na sentença recorrida discorreu-se o seguinte:

“Assim e de acordo com o disposto no art.65º do CPC, os tribunais portugueses serão competentes internacionalmente se ocorrerem uma das 3 situações aí previstas.

A prevista na al. a) remete para as regras de competência em razão do território o tribunal. É o chamado critério de coincidência. Se de acordo com as regras previstas nos art.70º e seguintes do CPC, o tribunal competente é o de um lugar situado em Portugal, então existirá coincidência e os tribunais portugueses serão internacionalmente incompetentes.

Ora, no caso dos autos, estamos perante uma acção especial, que visa o decretamento de uma providência adequada a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e directa à personalidade física ou moral de ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar os efeitos de ofensa já cometida – art.878º do CPC. Não existe nenhum critério específico para este tipo de acções, sendo certo que não estamos perante nenhum procedimento cautelar seguido de uma acção declarativa em que seja pedida indemnização por responsabilidade civil extracontratual (por aplicação da regra do art.71º, nº2 ex vi do art.78º, nº1, al.c) do CPC, seria competente o tribunal onde o facto ilícito ocorreu) pelo que, de acordo com a regra geral, competente seria o do domicílio do Réu – art.80.º, nº1 do CPC.

Ora, o tribunal do domicílio do R não é português.

A este respeito, cumpre desde já salientar que, para efeitos de aplicação do princípio da coincidência, as restantes regras de recurso previstas no n.º 2 e 3 do art.80º não contam, pois esta pressupõe sempre que o tribunal português já é competente internacionalmente e limitam-se a arranjar, dentro do território português, um tribunal territorialmente competente, nem que seja o de Lisboa.

Afastamos, assim, a al.a).

No que concerne à al.b), o facto que serve de causa de pedir à acção teria de ter sido praticado em território português ou alguns dos factos que a integram, o que não é o caso, pois o A, nem sequer no que concerne aos danos, alega qualquer facto que tenha ocorrido em Portugal.

Por fim, quanto à al.c), que apela ao princípio da necessidade e que acaba por ser uma válvula de escape que visa assegurar o direito de acesso ao direito constitucionalmente garantido a todos os cidadãos, exige-se dois requisitos cumulativos:

–que o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em tribunal português (porque, por exemplo, da conjugação das regras de competência internacional dos vários países, o litígio ficaria sem tribunal competente para o apreciar) ou se verifique grande dificuldade para o A na propositura de acção no estrangeiro (uma situação de guerra, de corte de relações diplomáticas ou uma oneração excessiva do autor para se deslocar à jurisdição competente);

–desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

Vejamos, então se se verifica esta situação:

Por força dos documentos que foram juntos, verifica-se que nada obsta, como não obstou, que o A demandasse a R. nos tribunais brasileiros ou nos tribunais americanos, ou mesmo nos tribunais italianos, pois estas três jurisdições têm elementos de conexão com a causa de pedir da presente acção e com as partes envolvidas.

Assim, falece desde já o 1º requisito, pois não se verifica nem é alegada qualquer dificuldade em propor a acção em qualquer destes tribunais.

Por outro lado, existindo conexão com aquelas jurisdições, há que saber se existe alguma conexão com a portuguesa e, quanto a esta do que é alegado resulta que:

–no âmbito do seu doutoramento que ocorreu entre Maio de 2010 e Junho de 2013, o Autor esteve em 3 países, sendo que em Portugal esteve desde Fevereiro de 2012 a Fevereiro de 2013; - o A tem residência em Portugal como resulta de uma declaração e atestado que consta de fls.51 e 52.

Em nenhum outro momento da sua petição, o A faz referência a este país ou a factos neste ocorridos.

Assim, a questão resumir-se-ia em saber se o A tem domicílio em Portugal.

“Domicílio”, conforme resulta do disposto no art.82º do CC, é o lugar onde uma pessoa tem a sua residência habitual, o que o A alega mas não demonstra claramente.”

*

Excluída a possibilidade de a acção estar compreendida em alguma das situações de competência exclusiva dos tribunais nacionais previstas no artigo 63.º do Código de Processo Civil, resta a possibilidade de se verificar o preenchimento de algum dos factores de atribuição de competência internacional previstos no artigo 62.º do mesmo diploma.

Esses factores são, como se refere na decisão recorrida, os seguintes: a acção poder ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa [alínea a)]; ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram [alínea b)]; o direito invocado não poder tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real [alínea c)].

O último dos factores não foi sequer alegado, pelo que não cabe aqui apreciar. O segundo factor “ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram” também não se verifica, pois a crer na alegação do Autor e Recorrente a prática dos factos danosos, isto é, das ameaças contra a sua integridade física e das ofensas contra os seus direitos de personalidade, designadamente contra o seu bom nome, ocorreu no Japão, país onde reside presumível autor do blog/página web difamante, um tal DA...., (artigos 8.º e segs. da PI). Foi essa circunstância, aliás, que levou o Autor a apresentar a competente queixa-crime contra aquele no Japão (cfr. artigo 62.º da PI).

Resta, assim, verificar se ocorre o primeiro facto de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, segundo o regime estabelecido no CPC, ou seja, se acção poder ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.

A lei interna elege o artigo 81.º, n.º 2, do CPC como regra geral para as pessoas colectivas e sociedades, norma especial, que prevalece sobre a regra geral plasmada no art.º 80.º do CPC para as pessoas singulares, erradamente aplicada pelo Tribunal a quo.

À luz do n.º 2 do artigo 81.º do CPC, “Se o réu for [outra] pessoa colectiva ou uma sociedade, é demandado no tribunal da sede da administração principal ou da sede da sucursal, agência, filial, delegação ou representação, conforme a acção seja dirigida contra aquela ou contra estas; mas a acção contra pessoas colectivas ou sociedades estrangeiras, que tenham sucursal, agência, filial, delegação ou representação em Portugal pode ser proposta no tribunal da sede destas, ainda que seja pedida a citação da administração principal.”

Tendo a presente acção sido proposta em Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa contra uma sociedade comercial americana [Google Inc., com sede na Califórnia, EUA], com delegação ou representação em Portugal [a Google Portugal com sede na Av. da L... em Lisboa], só podemos concluir, neste caso, pelo competência internacional desse Tribunal para tramitar e julgar a acção, por se verificar a coincidência entre a competência internacional e a competência interna, estabelecida no artigo 62.º, alínea a), por referência ao artigo 81.º, n.º 2, 2.ª parte, ambos do CPC.

Logo, é de concluir, ainda que com fundamentos diferentes dos invocados pelo Recorrente, que o Tribunal a quo é foro internacionalmente competente para conhecer do litígio."

*3. [Comentário] O acórdão merece dois comentários:

1) A 1.ª instância entende que o Autor não demonstrou ter domicílio em Portugal e o acórdão afirma que o Autor tem "domicílio ocasional" em Portugal. Trata-se de um conceito com pouca precisão jurídica, porque o Autor só pode ter ou não ter domicílio em Portugal, o que, naturalmente, pode necessitar de ser demonstrado.

A importância desta circunstância reside em que a competência internacional dos tribunais portugueses depende de a causa apresentar uma conexão com a ordem jurídica portuguesa e com uma outra ordem jurídica. A conexão da causa com o ordenamento jurídico português pode ser efectuada através do domicílio do autor -- mas apenas, naturalmente, quando o autor tenha mesmo domicílio em Portugal.

Se não houver nenhuma conexão com a ordem jurídica portuguesa, não se pode sequer colocar o problema da competência internacional dos tribunais portugueses.

2) Estranha-se a facilidade com que a versão publicada do acórdão permite identificar o Autor. A circunstância de os links constantes do acórdão não estarem (aparentemente) activos não diminui a gravidade da situação.

MTS