"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/07/2020

Jurisprudência 2020 (38)


Nulidade da sentença; condenação em quantia superior;
declarações de parte; apreciação*


I. O sumário de RC 11/2/2020 (286/17.1T8GVA.C1) é o seguinte:

1.- Tendo os AA dúvida quanto ao apuramento quantitativo, já possível, do dano indemnizatório verificado, tinham dois caminhos processuais a seguir: ou deduziam pedido genérico/ilíquido, nos termos conjugados dos arts. 556º, nº 2, b), 2ª parte, do NCPC (o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o art. 569º do CC) e 569º, 1ª parte, do CC (quem exija a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos); ou, então, tendo pedido quantitativo determinado reclamavam posteriormente quantia mais elevada face à revelação de dano superior, perante o relatório pericial efectuado nos autos que avaliou os trabalhos de empreitada do R. em valor inferior ao que os AA tinham inicialmente estimado, nos termos do referido art. 569º, 2ª parte, do CC (nem o facto de ter pedido determinado quantitativo impede o demandante, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos).

2.- Tendo os AA formulado o pedido de pagamento pelo R. de, pelo menos, 3.350 €, a utilização da expressão “pelo menos” (ou de outra semelhante como “no mínimo”) não retira ao pedido formulado a sua natureza de pedido específico, ao invés de genérico, e portanto a proibição de ultrapassagem desse quantitativo limite.

3.- Tendo a sentença condenado o R, a pagar aos AA o montante de 4.150 € a mesma é parcialmente nula, nos termos do art. 615º, nº 1, e), do NCPC, na parcela que excedeu o peticionado.

4.- A prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal (art. 466º, nº 3, do NCPC), e a Relação, na apreciação da impugnação da matéria de facto, age sobre o império do princípio da livre apreciação da prova, tal como a 1ª instância (ao abrigo do art. 607º, nº 5, 1ª parte, ex vi do art. 663º, nº 2, do NCPC);

5.- Se as declarações de parte não têm suficiente lastro probatório noutros meios de prova gerando sérias dúvidas sobre a realidade dos factos, então tal dúvida volve-se contra os AA, a parte a quem o facto aproveitava.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. Defende o R. que a sentença é nula, por violação do art. 615º, nº 1, e), do NCPC, por condenação em quantidade superior ao pedido (cfr. 10) e 11) das conclusões de recurso).

Os AA tinham formulado o pedido de pagamento pelo R. de, pelo menos, 3.350 €, de acordo com os factos por eles alegados: entregaram 5.450 € para os trabalhos contratados ao R., no entanto o réu apenas executou parte deles, no valor estimado de 2.100 €, pelo que pedem a condenação na diferença, os apontados 3.350 €. A utilização da expressão “pelo menos” ou de outra semelhante como “no mínimo” não retira ao pedido formulado a sua natureza de pedido específico, e portanto o seu quantitativo limite.

Os AA, para tornear a sua eventual dúvida quanto ao apuramento quantitativo, já possível, do dano indemnizatório verificado, tinham dois caminhos: ou deduziam pedido genérico/ilíquido, nos termos conjugados dos arts. 556º, nº 2, b), 2ª parte, do NCPC (o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o art. 569º do CC) e 569º, 1ª parte, do CC (quem exija a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos); ou então tendo pedido quantitativo determinado reclamavam posteriormente quantia mais elevada face à revelação de dano superior, perante o relatório pericial efectuado nos autos que avaliou os trabalhos do R. em valor ao que os AA tinham inicialmente estimado, nos termos do referido art. 569º, 2ª parte, do CC (nem o facto de ter pedido determinado quantitativo impede o demandante, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos) – vide neste sentido L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 2ª, 2ª Ed., nota 4. ao art. 471º do anterior CPC = ao actual art. 556º, pág. 266.

Porém, não usaram nenhum desses dois alternativos caminhos processuais, sendo evidente, em consequência, que se ativeram a um pedido específico/líquido, limitado a um determinado quantitativo. Ora, a ultrapassagem desse montante na condenação levada a cabo na sentença recorrida torna, por isso, parcialmente nula tal sentença, na parte excedente ao peticionado valor de 3.350 €, não podendo o R. ser condenado no montante em que o foi (4.150 €).

Procede, pois, a arguição de nulidade deduzida pelo recorrente."

*III. [Comentário] a) O acórdão da RC decidiu bem a questão da nulidade da sentença recorrida e admite-se que tenha decidido igualmente bem a apreciação da prova por declarações da parte.

b) Quanto a este aspecto, aproveita-se para salientar que a prova por declarações de parte deve ser avaliada sem qualquer parti pris. "Com especial cautela e cuidado", com certeza. Mas há alguma prova que deva ser apreciada sem especial cautela e cuidado ou apenas com uma cautela e um cuidado gerais?

Acresce que não deixa de ser um preconceito entender que, "se as declarações de parte não têm suficiente lastro probatório noutros meios de prova" (tal como se refere no "sumário elaborado pelo Relator"), então devem ser apreciadas contra o declarante. É preciso não esquecer que, à partida, não se pode excluir que a prova por declarações de parte possa servir precisamente para impugnar uma outra prova (nomeadamente, as declarações de parte realizadas pela parte contrária).

Alguma jurisprudência vem assumido uma posição de desqualificação da prova por declarações de parte que, exactamente com os mesmos argumentos, poderia ser estendida a outros meios de prova (como, por exemplo, a prova testemunhal, dado que, como se sabe, as testemunhas são indicadas pela parte interessada no seu depoimento). Ou será que a prova testemunhal só merece ser considerada quando não confirmar as alegações da parte que a indicou? E não é que, perante dois depoimentos testemunhais contraditórios, a solução é a acareação (art. 523.º CPC), e não a desqualificação, à partida, de um deles?

Em conclusão: avaliação da prova por declarações de parte segundo a "prudente convicção" (art. 607.º, n.º 5, CPC), certamente; tudo o que se acrescente a esta feliz expressão legal é totalmente desnecessário.
  
MTS