"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/07/2020

Jurisprudência 2020 (37)


Execução; habilitação;
insolvência*


1. O sumário de RC 18/2/2020 (2746/14.7TBLRA.C1) é o seguinte:


I- Numa execução em que falecendo o executando se procede a habilitação dos sucessores da parte falecida, para com eles prosseguirem os termos da demanda, se um dos habilitados se encontrar declarado insolvente em processo de insolvência a correr os seus termos, tal circunstância não determina a suspensão, por esse motivo, da execução.

II- Não sendo, nem passando a ser com a habilitação, os habilitados os executados, nem respondendo directamente os seus bens pela dívida exequenda, não são aplicáveis as disposições dos arts. 88º do CIRE que determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente, obstando ao prosseguimento da execução, que tem como pressuposto que seja o insolvente o executado o que no caso em decisão não ocorre.

III- Como a execução contra o executado falecido na sua pendência não se pode desdobrar em duas instâncias de cobrança do crédito exequendo, uma (a insolvência) para o habilitado insolvente, e outra para os restantes habilitados (a execução que prosseguiria contra eles), admitir-se que a execução deveria sustar-se nos termos do art. 88º do CIRE teria como significado aceitar que a própria execução teria de terminar e todo o crédito ser reclamado na insolvência, não já contra o património do executado mas sim contra o habilitado.

IV- A eventualidade de ser necessário realizar as operações de partilha para que possa proceder-se à cobrança do crédito exequendo no património do executado falecido, a determinar a suspensão da instância, reporta a um momento e um fundamento diverso daquele que ora se discute e que é apenas o de saber se a circunstância de um sucessor do executado falecido, por se encontrar declarado insolvente, determina ipso facto que a execução seja declarada suspensa e se transfira o crédito exequendo (no todo ou em parte) para a insolvência.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:


"[...] o objecto do recurso suscita como única questão a de saber se numa execução, falecendo o executado e tendo sido habilitado, entre outros, um herdeiro que se encontra declarado insolvente, a execução se deve suspender e ser reclamado o crédito exequendo pelo exequente na insolvência ou se a execução deve prosseguir os seus termos. [...]

O incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual para operar a modificação subjectiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respectivos sucessores na relação substantiva em litígio (artigo 262.º do Código de Processo Civil).

Trata-se, portanto, de uma excepção ao princípio da estabilidade da instância caracterizada pelo falecimento da parte e transmissão por via sucessória da posição que ela ocupava na relação substantiva e tem como requisitos o falecimento de uma parte na acção e que a relação substantiva de que ele era titular não se tenha extinto com o respectivo óbito. Os sucessores da parte falecida são chamados a substituir a parte falecida porque lhe sucederam na titularidade da relação substantiva em litígio e por isso têm interesse em ocupar a posição de parte.

A decisão de habilitação na execução tem, pois, por efeito e alcance o fazer prosseguir a acção executiva, colocando na posição do Executado os habilitados, porquanto o processo se não extingue por perda de utilidade ou por extinção do seu objecto,[,,,] garantindo (a habilitação) o prosseguimento de uma instância que se suspendeu ope legis (artigo 276º, nº 1, a) do CPC) e só reinicia a sua marcha “[…] quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida […]” (artigo 284º, nº 1, alínea a) do CPC)[ É neste sentido que a habilitação é qualificada nestes casos de obrigatória (Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 5ª ed., Coimbra, 2008, p. 244).], tudo isto, enfim, no quadro geral da efectivação do direito de acção, aqui materializado na tutela executiva conferida ao credor.

É neste sentido, como indica Salvador da Costa, fraseando a definição de Castro Mendes, que a habilitação corresponde “[…] fundamentalmente, [à] prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade de um direito ou complexo de situações jurídicas, independentemente da sua existência efectiva”[Incidentes…, cit., p. 243, cfr. “Obras completas do Professor Doutor João de Castro Mendes”, Direito Processual Civil, Vol. II, Lisboa, 1987, p. 294.].

Assim, atento o alcance sinalizado da habilitação, essa decisão nada disciplina ou dispõe, por se tratar de matéria totalmente fora do respectivo objecto, sobre que bens respondem pela dívida do Executado ou em que circunstâncias se efectuará a responsabilidade dos herdeiros por essa dívida [...], tal como não dispõe sobre quais os bens que podem – agora numa execução que prossegue contra os herdeiros – ser penhorados.

Satisfazendo os imperativos antes sublinhados, de fazer prosseguir a acção executiva suspensa por óbito do executado, com a habilitação fica preenchida essa necessidade mas não se procede à substituição processual do executado por um outro e isto porque, nos termos do art. 2031 do CCivil, a sucessão se abre com a morte do seu autor, mas essa circunstância não confere aos sucessores, até à partilha, (tenham ou não já aceite a herança) mais que o direito a uma quota ideal.

A herança é uma universalidade jurídica de bens, pelo que, cada interessado, não tem uma quota-parte em cada um de todos esses bens mas sim uma quota referida àquela universalidade, ao conjunto de todos os bens, só pela partilha se determinando aqueles em que se concretiza a quota-parte ou quinhão de cada interessado. Até à partilha, essa quota ideal traduz-se, em termos processuais, num direito de acção e herança, de onde resulta que, na insolvência, apenas o quinhão hereditário do insolvente numa herança indivisa pode ser apreendido como activo enquanto não se efectivar a partilha, não se realizando qualquer trânsito dos bens da herança para a insolvência de forma a provocarem o fim da execução. É que, como parece ficar esclarecido, não só o insolvente habilitado não era nem passou a ser executado como, também, não são os seus bens (do habilitado) que respondem pela dívida do executado [...].

Neste particular radica a questão em litígio no recurso. Enquanto o recorrente entende que por um dos habilitados ter sido declarado insolvente a execução não terá de ser suspensa nem o crédito exequendo ser reclamado no processo de insolvência, a decisão recorrida e o recorrido defendem que, precisamente por um dos habilitados do executado ser insolvente a execução deve ser sustada nos termos do art. 793 do CPC e art. 88 nº 4 do CIRE, e que os valores suportados pelo exequente com a presente execução sejam dívidas da massa insolvente (nº 3 dos artigos 140º e 51º do CIRE), e devam ser por aquele reclamados junto do processo.

Analisando estes argumentos, o que o art. 793 do CPC prevê é a suspensão da execução por declarada insolvência do executado e, uma vez mais o repetimos, no caso em decisão, não foi o executado quem foi declarado insolvente mas sim um habilitado que não tem, nem ganha, com a habilitação, a qualidade de executado. Por outro lado, o art. 88 do CIRE disciplina o efeito da declaração de insolvência nas acções, mas naquelas em que seja executado o próprio insolvente e, só quando tal aconteça, a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.

Uma vez mais o argumento decisivo continua a ser o de nenhum dos habilitados ser ou ter passado a ser o executado e, como assim, não haver fundamento para que, quanto a qualquer deles, a execução se suste e não prossiga.

A interacção que existe, no caso em decisão, entre a execução e a insolvência faz concluir que, efectivamente, o habilitado insolvente não pode dispor da quota ideal (do direito de acção e herança) de que seja titular e, depois da partilha, não poderá dispor dos bens que eventualmente lhe venham a caber na sucessão do executado e é isso que se pode retirar do art. 149 e 46 nº1 do CIRE que estão dirigidos à dimensão patrimonial activa do insolvente, ou seja, disciplinam a indisponibilidade do insolvente sobre os seu património entendido este como todo aquele que possua à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que adquira. Porém, se este sentido securitário de indisponibilidade está conjugado com a finalidade do processo de insolvência que visa apurar e fixar o activo do devedor e o seu passivo, de forma a decidir a forma e a medida em que os seus bens podem responder pelas suas dívidas, concluímos que só as dívidas do próprio insolvente possam ser reclamadas na insolvência (e não as daquele de quem ele seja herdeiro). Da mesma forma que a liquidação das dívidas do insolvente, na medida em que venha a ser possível, se fará no processo de insolvência, porque só por essas ele é responsável, também a dívida de que o executado de quem o insolvente é herdeiro/habilitado, só no processo de execução se realiza e só pelas forças dos bens deste pode ser cobrada.

Se depois da habilitação, quem representa o insolvente é o administrador e se aceitamos que o que pode ser apreendido para a insolvência é o direito de acção e herança correspondente a uma quota ideal e não nenhum bem em concreto, a verdade é que se declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente art. 81 do CIRE), estando os bens que integram o património a partilhar incluídos numa herança por partilhar, é o respectivo administrador quem terá legitimidade para diligenciar pela partilha.

Mas este poder a quota ideal que o herdeiro declarado insolvente tenha na herança ser apreendida para massa insolvente não implica nem traduz em consequência que a execução tenha, mais que se sustar, de terminar relativamente ao habilitado insolvente. Veja-se que, tendo sido solicitado e decidido nos autos executivos que os mesmos fossem suspensos em virtude de um dos habilitados ter sido declarado insolvente, nada se referiu quanto à situação em que ficaria a execução quanto aos restantes habilitados. [...]

Renovando com maior clareza o que dissemos, o que tem de advertir-se como central à decisão a proferir é que o sucessor insolvente habilitado não é devedor do exequente e, a entender-se doutro modo, resultaria paradoxal ter de concluir que quando o executado morresse e tivesse vários herdeiros que houvessem sido habilitados na execução, bastaria que um deles fosse declarado insolvente para que a execução tivesse de cessar. E a pretender argumentar-se que, afinal, a execução continuaria apenas contra os sucessores habilitados não insolventes mas, nesse caso, seria impositivo questionar como é que uma dívida, de uma única pessoa (o executado falecido) e pela qual respondem apenas os bens de uma única pessoa (os bens da herança do executado falecido), podia ser desmembrada por dois processos distintos (o de execução e insolvência) contra a evidência legal de, até à partilha, nenhum direito que não o de uma quota ideal, os herdeiros têm sobre os bens concretos.

Estas observações normativas servem apenas para sublinhar a falta de fundamento legal para que se tenha decidido a suspensão da execução e remetido os termos da cobrança da quantia exequenda para a insolvência do habilitado.

Acresce que questão distinta da de saber se a execução deve suspender-se por um dos habilitados do executado se encontrar declarado insolvente, e que já nos mereceu resposta negativa, é a de decidir como é que, na execução, o exequente poderá obter a satisfação do seu crédito quando o executado faleceu, a sucessão se abriu e ainda não se encontram realizadas as pastilhas. Mas a resposta a dar a essa matéria, nomeadamente se será de, por essa outra razão, vir a suspender os termos da execução até a partilha, não cabe neste momento decisório nem no objecto do recurso, no qual a única questão suscitada é a de decidir se a circunstância de, tendo falecido o executado numa execução, se for habilitado como herdeiro para prosseguir na execução alguém que tenha sido declarado insolvente, determina, por esse motivo, a suspensão da execução (bem melhor seria dito o término pois é disso que se trata) e, a essa questão, a resposta é negativa."

*3. [Comentário] a) O acórdão da RC só é aceitável cum granum salis. Não é correcto dizer que os habilitados numa execução por falecimento do executado não são eles próprios executados. Como é claro, o executado falecido não continua executado e não é concebível uma execução sem executado.

O que sucede é que, apesar da habilitação dos herdeiros do executado, a execução só pode recair sobre os bens do executado inicial (art. 744.º, n.º 1, CPC). Mais em concreto: se na execução pendente já se tinha procedido à penhora de bens, a circunstância de se ter verificado depois disso a habilitação dos herdeiros do executado em nada altera essa penhora.

b) Sendo assim, não se aplica o disposto no art. 88.º, n.º 1, CIRE, pela simples razão de que, atendendo à diferenciação patrimonial entre bens da herança (que respondem na execução pendente) e bens do executado insolvente (que respondem na insolvência, também pendente segundo se julga), aqueles bens não integram a massa insolvente deste executado.

MTS